A discussão de avanços e desafios na porta de entrada do sistema prisional com as audiências de custódia, inclusive com uma perspectiva comparada com outros países, foram expostas no painel “Audiências de Controle de Detenção nas Américas”, que abriu a tarde do segundo dia (29/9) do 3º Fórum Nacional de Alternativas Penais (Fonape). Dos 35 países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), 27 possuem a previsão da audiência de custódia, conforme levantamento realizado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
A experiência mexicana foi detalhada pela juíza criminal Rocío Dominguez, que falou sobre a evolução de práticas no país para garantir a apresentação de pessoas presas a juízes e juízas, permitindo maior controle da prisão preventiva. “O protocolo é desenhado para que desde as primeiras instâncias da procuradoria as pessoas possam estar em liberdade. Isso tem como resultado a diminuição de casos apresentados aos juízes, evita a detenção arbitrária, a violação a direitos e privilegia medidas alternativas.”
Para o diretor do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA) Leonel Postigo, o Brasil deve discutir com urgência reformas necessárias no sistema penal que já são adotadas em outros países da América Latina. “A reforma da Justiça penal no Brasil deixou de ser uma dívida e se transformou em uma verdadeira urgência nacional. As audiências de custódia precisam ser defendidas e, para isso, entendo que devemos pensar um sistema penal acusatório e adversarial transparente, oral e com prazos efetivos.”
O juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Rodrigo Tellini ressaltou a eficiência dos centros de alternativas penais brasileiros para o controle de detenção. “Os centros de alternativas penais servem como pontes de inclusão social para aquele que comete o delito tendo como causa subjacente a drogadição, o desamparo ou o desemprego e com isso contribui com a grande possibilidade de promover a reconstrução dos laços entre a sociedade e o indivíduo tido como infrator.”
A juíza do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) Andremara dos Santos cobrou a capacitação do sistema de Justiça criminal sobre práticas que combatam o encarceramento em massa. “É necessária a capacitação sobre os preceitos constitucionais, sobre a pactuação de tratados internacionais de direitos humanos da temática e a legislação infraconstitucional. Não podemos continuar achando que o Estado não somos nós.”
Nesse painel, ainda teve o lançamento do Sumários Executivos de quatro Manuais Técnicos de qualificação das audiências de custódia lançados pelo programa Fazendo Justiça em 2020. Há versões em português inglês e espanhol.
Debates simultâneos
Na sequência da programação, três salas temáticas e simultâneas foram abertas. A primeira delas, sob o tema “Prendendo os pobres? O lugar da proteção social logo após a detenção” contou também com o lançamento de material informativo para pessoas custodiadas, elaborado pelo CNJ, no âmbito do programa Fazendo Justiça, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
O professor da Universidade de Campinas Oswaldo Giacoia Junior apontou que as políticas de encarceramento e aumento de pena incidem prioritariamente sobre a população negra e pobre e que a cidadania plena tem sido sistematicamente recusada a esta população. “Este é um desafio que apela, com urgência, para a probidade intelectual e o senso ético de todos aqueles que se sentem concernidos pela exigência de princípios de justiça política nas instituições de direito, seja no plano da teoria, seja naquele das práticas judiciais.”
Integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Rio de Janeiro, Eliene Vieira, ao falar sobre a seletividade penal como produto do racismo, pontuou que o Estado não pode ser o provocador de violações e sofrimento. “É preciso tratar as pessoas com dignidade. O Estado prefere investir em poder bélico a construir políticas promotoras de direitos humanos e cidadania.”
A juíza do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) Solange de Borba Reimberg, compartilhou as experiências de práticas de Justiça Restaurativa realizadas em Patos de Minas. “A responsabilidade sobre o estado de coisas institucional recai sobre todos os poderes e instâncias federativas”.
A supervisora de proteção social do projeto de fortalecimento das audiências de custódia do CNJ, Nara de Araújo, apontou a importância do serviço de atendimento à pessoa custodiada na aproximação do judiciário com as políticas de proteção social. “É necessária e urgente uma transposição para a lógica do cuidado, da prevenção e da inclusão social.”
Juiz do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), Fernando Mendonça lembrou que a primeira função do Estado é o dever de proteger. “A distribuição da Justiça é uma função secundária, que decorre justamente desse dever de proteção. Não se justifica o Estado se não for para proteger o cidadão.”
Dados e transparência
A mesa temática sobre dados foi iniciada com Michael Williams, do Pew’s Public Safety Performance Project. Ele afirmou que o trabalho de 12 anos da organização para reduzir o número de pessoas encarceradas a partir de políticas baseadas em evidências vem gerando resultados – atualmente os Estados Unidos gastam cerca de 100 bilhões de dólares para manter seu sistema penal. “Criamos políticas de segurança publica com foco no controle de gastos para que esse dinheiro tenha maior custo benefício. Vários estados já fizeram reformas bipartidárias, e reinvestir em programas de prevenção vem obtendo resultados melhores.”
No painel, foram lançados dois cadernos de dados produzidos pelo UNODC no contexto do programa Fazendo Justiça, com análise de dados da porta de entrada do sistema prisional durante a pandemia. A análise ocorreu no contexto de suspensão das audiências de custódia em grande parte do país.
Vinicius Couto, profissional de dados do UNODC, apresentou os materiais, que também foram comentados pelo juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), Marcelo Cardozo da Silva, que falou sobre a prisão em flagrante como porta de entrada da justiça criminal.
A professora do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Camila Hernandes, falou de pesquisa realizada em Salvador sobre o uso de medidas cautelares em audiências de custódia. Segundo ela, há necessidade de mudança de uso dessas medidas, especialmente porque há déficit de fundamentação.
Raça e Justiça criminal
A necessidade de uma agenda transformadora para erradicar o racismo sistêmico foi a tônica do diálogo da abertura da mesa sobre o tema, que contou com dados de recente relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH). “É um convite para uma resposta também sistêmica, que exige o engajamento de toda a sociedade e suas instituições”, pontuou a assessora do ACNUDH Angela Pires.
Para a promotora de Justiça da Bahia Livia Vaz o debate sobre a aplicação de alternativas penais demanda investimentos para um letramento racial do sistema de justiça. “Sem a extinção dos funis raciais que promovem a criminalização e a seletividade penal, não se muda as práticas na área”, afirmou. Foi o que também reforçou a advogada criminalista Soraia Mendes. “Para além de leis em seu caráter simbólico, é preciso que a proteção penal venha de uma modificação estrutural do sistema de justiça em suas diversas interfaces.”
O assessor de coordenação do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) Igo Ribeiro lembrou que desafios e oportunidades de atuação na área estão na agenda de trabalho do programa Fazendo Justiça.
3º Fonape
O evento integra as atividades do programa Fazendo Justiça, parceria entre o CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que trabalha 28 ações simultâneas para a superação de desafios no campo da privação de liberdade. O programa tem ainda a parceria do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) nas ações sobre audiência de custódia.
A programação continua na quinta-feira (30), com a participação de painelistas nacionais e estrangeiros, além do lançamento de produtos de conhecimento elaborados no contexto do programa Fazendo Justiça.
José Lucas Azevedo e Renata Assumpção
Agência CNJ de Notícias
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