Tribunal do Júri inova para seguir julgando crimes dolosos contra a vida em meio à pandemia

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FOTO: Divulgação/Comarca de Joinville
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O primeiro ano da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) reinventou o tribunal do júri – às vésperas de seu bicentenário -, ao modernizar uma das marcas do julgamento, que é tradicionalmente realizado de forma presencial. Impossibilitados de migrar os julgamentos de pessoas acusadas de homicídios e de tentativas de assassinato para o ambiente virtual, como ocorreu com os demais casos no Poder Judiciário durante a pandemia, tribunais e equipes da justiça criminal incorporaram o protocolo de cuidados sanitários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e recorreram à tecnologia para ouvir réus e rés presas de dentro de penitenciárias e transmitir sessões de julgamento ao vivo pela internet.

Mudar a rígida sistemática foi a solução encontrada para retomar os julgamentos que haviam sido interrompidos, como todas as demais atividades presenciais nas dependências do Judiciário, em 19 de março de 2020. Oito dias depois da declaração pública de pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o CNJ instalou o regime de Plantão Extraordinário nos tribunais brasileiros. Ficava instituído o trabalho remoto para tentar frear o contágio da nova versão do coronavírus, à época recém-descoberta. A suspensão do trabalho presencial nas unidades judiciárias impossibilitou as sessões do tribunal do júri.

Sem as sessões do júri, no entanto, começaram a se acumular os casos de homicídios e tentativas de homicídio, principais demandas levadas a júri popular no Brasil. Por ano, essas varas recebem cerca de 31 mil novos casos, de acordo com a série histórica iniciada em 2014 pelo CNJ. Em 15 de junho, depois de quase três meses de isolamento social, o CNJ autorizou a retomada de alguns julgamentos presenciais, considerados mais urgentes – entre eles os do tribunal do júri. A reabertura das instalações foi condicionada a uma série de medidas para evitar que os fóruns da Justiça se tornassem focos de disseminação da doença, que já matou mais de 300 mil brasileiros.

Salão do júri

A aplicação do protocolo sanitário no tribunal do júri mudou a disposição tanto das salas de audiência onde são ouvidas as testemunhas, na primeira fase do julgamento, quanto a dos plenários, onde ocorrem as sessões do júri, a última fase do processo. A exigência de distanciamento mínimo entre as pessoas implicou afastar fisicamente juiz e promotor, tradicionalmente posicionados lado a lado. O limite máximo de pessoas no mesmo ambiente também resultou na retirada do público das sessões, que sempre foram abertas à participação de qualquer membro da comunidade. As cadeiras até então destinadas ao público acabaram sendo ocupadas pelos jurados e juradas, que antes acompanhavam o julgamento agrupados em bancada própria, localizada na lateral do plenário.

No Brasil, o tipo de julgamento que mais preserva a história do Poder Judiciário existe desde 1832, quando foi regulamentado pelo Código de Processo Criminal. De acordo com o estudo retrospectivo do historiador Murillo Carlêto Rodrigues Moreira sobre as origens e a evolução do júri popular, os 12 membros do “Jury de Sentença” examinavam provas para formar suas convicções a respeito do crime e do acusado, depois de ouvir testemunhas e o ritual de oratória de defesa e acusação. No Brasil de 2021, a obrigação de usar máscaras nas sustentações orais, para evitar o contágio pela respiração, gerou um incômodo unânime nas sessões.

Ao final do julgamento, os jurados do Código de 1832 respondiam um questionário com perguntas sobre questões, como o “gráo de culpa” do réu e se o crime comportava pagamento de “indemnização”, a partir do qual o réu seria absolvido ou condenado. Quase 200 anos depois, um grupo de cidadãos e cidadãs ainda julga seus pares respondendo questionários semelhantes, mas com cédulas de votação que são regularmente higienizadas, para se evitar a contaminação pelas superfícies. O mesmo é feito com móveis e equipamentos que precisam ser compartilhados por testemunhas, como microfones e cadeiras.

O salão do júri de Osasco/SP devidamente adaptado para garantir o distanciamento social entre os jurados - Foto: Divulgação
O salão do júri de Osasco (SP) devidamente adaptado para garantir o distanciamento social entre os jurados. Foto: Divulgação/TJSP

Julgamentos seguem públicos

Em Curitiba (PR), o Plenário do Tribunal do Júri foi fechado para evitar aglomerações na plateia. Os julgamentos agora são transmitidos pelo canal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) no YouTube. As sessões atingiram a marca de 60 mil visualizações mensais, de acordo com o juiz da 2ª Vara Privativa do Tribunal do Júri do Foro Central de Curitiba, Daniel Ribeiro Surdi de Avelar.

Ao cumprir a exigência constitucional da publicidade dos julgamentos, as sessões transmitidas atualmente podem alcançar uma audiência muito maior do que as 300 pessoas que ocupavam os assentos do auditório antes da pandemia. O júri exibido em tempo real pode até evitar que os julgamentos sejam anulados no futuro, pois ficam armazenados no provedor de vídeos – à exceção dos trechos que são excluídos para preservar o direito à intimidade de alguma testemunha sigilosa.

No tribunal do júri, a defesa pode pedir a anulação de todo o julgamento sob a alegação de que alguma fala do Ministério Público, um olhar de jurado para a pessoa ré ou outro detalhe tenha comprometido o direito de defesa e influenciado o veredito, por exemplo. O pedido de nulidade é endereçado primeiro ao juiz ou juíza e, em caso de negativa, pode recorrer a instâncias superiores. Em um julgamento convencional, não gravado, o magistrado pode ter dúvidas em reconhecer ou não o motivo do pedido. Ao seu lado, só tem a própria memória da sessão (ou de um momento da sessão) ou a ata que documenta o que houve de mais importante no julgamento.

“Recentemente, em uma sessão, eu pude retroceder o vídeo da sessão e reassisti ao trecho da sessão cinco vezes para identificar o que foi dito e a forma de expressão. Não reconheci a nulidade. Uma palavra pode ter plúrimos (múltiplos) sentidos. Esse recurso possibilita até aos tribunais superiores verificarem nulidades que a ata do julgamento não pode absorver”, afirmou o juiz Daniel Ribeiro Surdi de Avelar. À frente da vara da capital paranaense desde 2008, o magistrado afirma que, mesmo com as mudanças na rotina da vara, a média de quatro julgamentos semanais realizados já foi restabelecida.

Prioridade para julgamento de réus presos

Uma das atividades essenciais do Poder Judiciário que justificou a retomada de alguns julgamentos presenciais em junho de 2020 foi o volume de processos do júri. Atualmente, são 229.852 ações penais de competência do júri em andamento, de acordo com levantamento preliminar do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ em fase de validação pelos tribunais de Justiça. Pode parecer pouco diante dos 77,1 milhões de processos que tramitam na Justiça brasileira, mas cada processo levado a júri popular tem consequências definitivas, tanto para os sobreviventes de uma tentativa de assassinato quanto para familiares, amigos e a memória de quem foi morto.

Atendendo à norma do CNJ que determinou a volta do trabalho presencial no Poder Judiciário, foram julgadas primeiro as ações que envolvessem pessoas presas. Embora minoria no universo de processos que vão a júri popular, as ações em que acusados ou acusadas estão detidos podem acabar por reverter uma prisão injusta. Em alguns casos, tratam de alguém que será inocentado e tirado de uma unidade prisional. A prioridade a esse tipo de processo é uma recomendação que o CNJ faz historicamente à Justiça Estadual e foi incorporada pelos tribunais de Justiça desde 2017 no Mês Nacional do Júri, mutirão nacional de sessões do júri realizado anualmente.

No país campeão mundial de homicídios, trata-se também de uma estratégia para conter a impunidade. Em 2020, apesar do distanciamento social causado pela pandemia, 43.892 pessoas foram assassinadas de forma violenta no Brasil – 5% a mais em relação ao ano anterior –, de acordo com o Monitor da Violência, iniciativa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do portal de notícias G1. Quando foi criado em 1822, pelo então Príncipe Regente Dom Pedro I, sob o nome “Juizes de Facto”, o júri popular era formado por “24 cidadãos escolhidos de entre os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas” e se dedicava apenas aos abusos de liberdade de imprensa, “auctores” de pasquins e  proclamações incendiarias.

Videoconferência

Para viabilizar o retorno dos julgamentos de acusados de homicídios, em julho do ano passado o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) editou norma que restringiu as sessões apenas a pessoas presas ou que tinham processo com data de prescrição próxima. No mesmo ato, determinou que videoconferências seriam usadas em processos de qualquer matéria “especialmente nos processos que envolvam réus presos e adolescentes em conflito com a lei em situação de internação”. No período entre a decretação da fase vermelha no estado de São Paulo (grau máximo de isolamento social), agosto de 2020 e fevereiro de 2021, foram realizadas 1.006 sessões do júri nas 169 comarcas do TJSP.

Introduzido no Código Penal em 2009, o uso da videoconferência em processos do tribunal do júri já era recomendado às cortes de Justiça pelo CNJ desde 2019 como forma de dar mais celeridade aos julgamentos. No entanto, a tecnologia de comunicação só ganhou espaço definitivamente no tribunal do júri em 2020. Com as restrições de mobilidade impostas pela pandemia, escoltas policiais de acusados presos entre penitenciária e fórum ficaram inviabilizadas e a videoconferência mostrou-se a alternativa para seguir com julgamentos de homicídios – tentados ou cometidos.

De acordo com o juiz auxiliar da Presidência do TJSP, Genofre Martins, alguns juízes têm introduzido soluções tecnológicas para a condução de uma sessão do júri. “A orientação foi para privilegiar ao máximo os atos virtuais, mas nos casos de audiências híbridas, recebo feedback de técnicas que os colegas estão aplicando no dia a dia. Por exemplo, alguns juízes estão fazendo a sessão do júri no plenário e com o réu no Centro de Detenção Provisória (CDP – presídio para quem foi preso e aguarda julgamento). Reserva-se uma sala, com o equipamento e conexão necessários, e o réu participa do julgamento desde uma sala virtual, mas mantém o direito (que teria na modalidade presencial) a entrevista pessoal com o seu advogado”, afirma Martins. São Paulo é o estado com a maior população carcerária do país, com 218 mil presos – 45 mil sem julgamento, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional.

CNJ regulamentou o uso da videoconferência no tribunal do júri e na justiça criminal em geral para preservar o direito da defesa e assegurar a viabilidade técnica da audiência por vídeo. A defesa, por exemplo, será intimada da videoconferência 10 dias antes da audiência. Caso não tenha condições técnicas de participar, basta informar o magistrado do impedimento que a audiência não será realizada por vídeo. No caso de réus presos, cabe ao magistrado assegurar que a sala oferecida pela administração da unidade prisional para o preso seja “ambiente livre de intimidação, ameaça ou coação”, com fiscalização dos “corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público, Defensoria Pública e pela Ordem dos Advogados do Brasil”.

Mudanças definitivas

Em Joinville, maior comarca do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), cerca de 75 julgamentos tiveram de ser adiados com a paralisação dos julgamentos presenciais em função da Covid-19. No entanto, desde que foram retomados os trabalhos, em agosto do ano passado, apenas uma sessão do júri precisou ser adiada – um advogado contraiu a Covid-19. O mérito pela volta do fluxo “normal” de julgamentos é devido, em parte, à tecnologia da informação e da comunicação.

A adoção do sistema de videoconferências, de acordo com o juiz Gustavo Henrique Aracheski, que comandou a Vara do Tribunal do Júri de Joinville durante o primeiro ano de pandemia, independe de grandes alterações na lei. “Com a concordância da defesa, tornou-se possível o julgamento com a presença virtual do acusado, especialmente o réu preso. Com o traslado entre longas distâncias prejudicado ou dificultado por causa da pandemia, a transmissão simultânea do julgamento para o réu preso fora da comarca por meio virtual é uma alternativa muito interessante.”

Para o juiz do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte – unidade do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) -, Marcelo Fioravante, a eficiência proporcionada pelas audiências virtuais “deu um dinamismo para a justiça criminal com o qual não se convivia antes”. Fioravante conduz a primeira fase do júri, em que se busca ouvir acusados e testemunhas para obter indícios que permitam apontar a materialidade e a autoria dos crimes praticados.

Na sua carreira, enviou muitas cartas precatórias pedindo providências de juízes em outros estados por causa de presos “em trânsito” e intimações de testemunhas de paradeiro móvel. Ambas demoravam a alcançar os destinatários. Hoje, esses “atos processuais” assumiram a forma virtual de e-mails e até de mensagem instantânea que surgem na tela do celular. Graças à modernização dos procedimentos do júri, a média de agendamento mensal de sessões do júri nos três plenários de Belo Horizonte manteve-se em 88 julgamentos.

A segurança exigida de uma operação de escolta de réus presos que deixam o complexo penitenciário para prestar um depoimento inicial no fórum encarece o processamento de uma ação penal do júri. “Fui diretor do Foro da Comarca de Belo Horizonte entre 2016 e 2018. Só o Fórum Criminal recebia, em média, de 80 a 100 presos por dia. Tínhamos de manter uma estrutura de carceragem, agentes prisionais e uma Companhia da Polícia Militar dentro do fórum”, afirmou. Durante a pandemia, as oitivas na modalidade virtual e híbrida (com alguns depoimentos tomados no fórum e outros, a distância) permitiram ao juiz colher todos os depoimentos em 90% das audiências.

No Rio de Janeiro, o juiz do 3º Tribunal do Júri da Capital, Alexandre Abrahão, destaca a importância da tomada de testemunhos à distância para a conclusão dos julgamentos. “O reflexo foi altamente positivo porque permitiu que as pessoas não se afastassem dos seus afazeres durante um dia inteiro para dar seus testemunhos. Essa herança seria bem-vinda, mas há de se ter em mente que as salas de audiências e plenários precisam, com urgência, de adequação tecnológica, pois o que se tem feito tem sido na base do improviso. Nesse ponto uma intervenção seria, a nosso ver, altamente positiva”, afirmou o juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

A tecnologia modernizou uma instituição mais antiga que a República, mas só o tempo dirá quais mudanças serão incorporadas às práticas diárias das centenas de varas do tribunal do júri do país. Um ano após o início dos efeitos da pandemia no Poder Judiciário, os julgamentos nos tribunais do júri dos magistrados ouvidos nesta reportagem foram novamente suspensos, desta vez por causa do recrudescimento da Covid-19 nos estados do Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias