Ampliar o reconhecimento e o respeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas, implementar o formulário de risco para a comunidade LGBTQIA+ como instrumento para enfrentar a violência e ampliar o apoio institucional às políticas de cotas para a população negra e parda. Esses foram alguns dos temas tratados durante o “III Democratizando o Acesso à Justiça”, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na quarta-feira (2/2).
A terceira edição do evento reuniu autoridades, juízas, juízes e especialistas em políticas públicas de enfrentamento à discriminação, ao preconceito e a outras expressões de desigualdade de raça, gênero, condição física, orientação sexual e religiosa. O objetivo é debater iniciativas para tornar efetivas as políticas que garantem o acesso aos serviços judiciais às minorias e às pessoas mais vulneráveis.
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No painel dedicado ao tema dos direitos dos indígenas, conduzido pelo conselheiro do CNJ Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, a tônica foi a defesa dos direitos desses povos a suas áreas garantidas pela Constituição, sua pluralidade, diversidade e eventual escolha pelo isolamento voluntário. Para Bandeira, o melhor entendimento da temática indígena e das demais minorias “é uma pré-condição para a função do Estado de distribuir justiça, contribuindo para maior equidade social”.
A questão foi aprofundada pelo procurador da República Júlio José Araújo Junior, que afirmou que o Judiciário tem sido uma trincheira na garantia de direitos fundamentais dos mais vulneráveis e nos espaços de debate sobre essas questões. Ele comentou, no entanto, que há um descompasso na efetivação dos direitos desses povos em várias situações.
“Todos sabemos que a Constituição de 88 é um marco extremamente relevante na garantia dos direitos dos indígenas. Mas, ao mesmo tempo em que temos uma legislação internacional e pronunciamentos, tanto de tribunais nacionais e como internacionais, nessa matéria, muitas vezes, vivemos e assistimos nas práticas administrativas, judiciais e do Sistema de Justiça um descompasso na efetivação desses direitos em relação ao tratamento e a forma, em como vamos encarar o pluralismo e paridade processual com respeito e consideração à pluralidade dos povos indígenas do Brasil”, afirmou Araújo Junior.
Entre as várias diretrizes elencadas, ele defendeu que os indígenas têm que ser ouvidos de forma direta, sem intermediários ou representação, em qualquer debate ou questão pensada para esses povos. “Os povos indígenas falam por si e suas intervenções são extremamente necessárias para que haja a validade dos processos.”
Avaliação de risco
O enfrentamento à grave e crescente violência contra a população trans foi tema do painel que abordou a importância da implementação do Formulário de Avaliação de Risco para a População LGBTQIA+. Um dos dados mais alarmantes é que o Brasil segue líder no assassinato de transvestis e transexuais, com 140 pessoas mortas em 2021, de acordo com levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Do total das vítimas, 81% eram pessoas negras, 98% do gênero feminino com idade média de 35 anos e 77% desses atos de violência ocorreram em vias públicas.
Assessora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, Melina Machado Miranda apresentou as linhas do grupo de trabalho do CNJ que resultou na proposta de adoção de um formulário de risco para essa população e enfrentamento dessa realidade. A sugestão é adotar o Registro de Ocorrências Geral de Emergência e Risco Iminente à Comunidade LGBTQIA+, denominado Formulário Rogéria – em homenagem à atriz e cantora travesti Rogéria, ativista do movimento trans falecida em 2017.
A ideia foi proposta pela artista Daniela Mercury no Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. “O Formulário Rogéria se propõe a fazer um olhar integral para as necessidades da população LGBTQIA+, em que olhamos para a garantia de direitos e para a avaliação desses riscos a integridade dessas pessoas”, explicou Melina.
O formulário vai mapear as condições de acesso à Justiça, à saúde, à educação e à habitação, o risco de integridade física e psicológica, além do acesso à rede de apoio para as pessoas LGBTQIA+. Em fase avançada, a implantação ainda demanda a definição de alguns passos, como a extensão e aplicabilidade do formulário, a definição de escalas mais objetivas de pontuação e se o formulário será qualitativo, a realização fase de testes e análise por parte de especialistas, além do monitoramento do uso e encaminhamento.
A apresentação foi feita em painel coordenado pelo conselheiro do CNJ Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, que chamou atenção para a necessidade de ações que ajudem a enfrentar preconceito e racismo. “Se nós pensamos em um país que almeja o constitucionalismo humanitário, devemos superar os preconceitos e as desigualdades que temos acompanhado, seja aquele machismo estrutural, a homofobia estrutural, o racismo estrutural e o abandono do sistema carcerário como se não houvesse direitos.”
Políticas reparatórias
As políticas de cotas e outras reparatórias foram tratadas no painel “Acesso à justiça, cotas raciais e concursos públicos”, conduzido pelo juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) Edinaldo César Santos Júnior. No centro do debate, foi colocada a necessidade de avanço a passos mais rápidos das políticas judiciárias de igualdade racional e de enfrentamento ao racismo estrutural e racismo institucional.
Dados do Censo do CNJ de 2013 e do Perfil Sociodemográfico de 2018 mostram que não há mudança no quadro geral da magistratura nos dois períodos. Permaneceu a situação de menos de 20% de pessoas negras e pardas do total à época de 18 mil magistrados e magistradas. E o percentual de magistradas negras oscila entre 1% e 2% por ramo da Justiça.
Juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), Alcioni Escobar da Costa Alvim foi à essência da questão. “A compreensão de que o racismo pauta e nos estrutura como sociedade, que tem raízes econômicas e históricas, passa, necessariamente, pelo reconhecimento do papel do Estado na construção do quadro social. E não se consegue uma alteração desse quadro sem a construção de políticas públicas reparatórias.”
Corroborando essa visão, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2) Patrícia Almeida Ramos apresentou estatísticas da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de 2019, em que se verificaram que 1,6% dos magistrados se denominavam pretos e 17% pardos na justiça estadual. Na segunda instância, pretos eram 2,1% e pardos eram 9,8%.
A partir desse desenho, ela avaliou que a composição da magistratura reflete um quadro persistente de disparidade nas condições de vida e de acesso a direitos na população preta e parda. A considerar esse quadro e o ritmo lento de mudanças, a juíza citou que uma equivalência entre magistrados brancos e negros e pardos somente será alcançada entre 2056 e 2059. “Por que a representatividade é importante? A sociedade almeja um Poder Judiciário que seja representativo, que tenha diversidade e pluralidade. É a partir desse enfoque multifacetado que as demandas que serão a ele postas serão direcionadas de forma mais justa na igualdade material possível.”
Entre as várias demandas para acelerar e dar efetividade a políticas sociais reparadoras está o pedido de alteração da Resolução CNJ n. 75/2009 que trata das condições de ingresso na carreira da magistratura. Para o mediador do painel, é preciso usar novas lentes: lentes de gênero e lentes racionais. “Para enxergarmos o que está posto, que é o racismo, e não haverá verdadeiro acesso à justiça sem igualdade, não haverá verdadeira democracia com racismo e os concursos públicos, se efetivamente não se reestruturarem para darem acesso a todas as pessoas efetivamente, não teremos igualdade e pluralidade e uma magistratura plural.”
Luciana Otoni
Agência CNJ de Notícias
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