CNJ 20 Anos: articulação do Judiciário busca humanizar sistema prisional brasileiro

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FOTO: Luiz Silveira/Ag. CNJ
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Três anos após o cumprimento da primeira pena, estabelecida em 2006, Iolanda Pires Martins voltou para a cadeia por tráfico de drogas, o mesmo motivo que a encarcerou outras duas vezes. Prestes a completar 50 anos de vida, Iolanda cumpre o resto de sua última pena na expectativa da homologação da remição computada em 2024. Iolanda agora conta com formação profissional adquirida na Unidade Prisional Regional Feminina de Formosa (GO), onde está presa há três anos e meio. A expectativa de construir uma nova história se cruza com os esforços do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao longo dos últimos 20 anos para transformar a vida de pessoas encarceradas.

“Com os cursos de manicure, de alongamento de unhas e de barista, poderei inclusive trabalhar ao lado das minhas filhas, que eram pequenas quando fui presa, mas que hoje atuam na área da beleza. A ideia é abrir um pequeno salão. Aprendi a sonhar, a acreditar em um recomeço”, conta Iolanda.

A oferta de oportunidades e a promoção dos direitos humanos são o pano de fundo de resoluções e outras inciativas voltadas ao atendimento das pessoas que cometeram crimes e, a partir de então, ficam sob a custódia do Estado. Somente nos últimos dez anos, o CNJ desenvolveu ao menos sete políticas ou programas que se tornaram marco no enfrentamento à violência e ao caos estrutural do sistema prisional brasileiro.

Impulsionadas pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), criado em 2009 por meio de lei própria, políticas diversificadas buscam equacionar as inúmeras vulnerabilidades enfrentadas pela população carcerária que, atualmente, representa mais de 852 mil presos e presas, conforme dados do Anuário do Fórum Brasileiro Segurança Pública (2024), com informações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).

Entre essas ações, estão a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, a Política de Atenção a Pessoas Egressas do Sistema Prisional, o Cadastro Nacional de Inspeções em Estabelecimentos Penais (Cniep), o Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP 3.0), o Sistema Eletrônico de Execução Unificada (Seeu) e a implementação nos estados dos serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apecs).

Soma-se a esse trabalho a previsão de que toda pessoa presa em flagrante tenha o direito de ser ouvida por um juiz ou uma juíza em uma audiência de custódia e a realização de mutirões e de inspeções que buscam combater a violação de garantias constitucionais e de direitos humanos, bem como atrasos na análise dos processos e o excesso de prazo em prisões provisórias.

Programas como o Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, têm um papel primordial nessa mudança de paradigma no campo da privação de liberdade.

Sobre essas bases e com esses reforços, juntamente com a articulação interinstitucional, o CNJ desenvolveu o plano Pena Justa, seguindo a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), em outubro de 2023, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (ADPF 347). Em 2015, o STF já havia declarado o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos, demandando a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e da sociedade para a construção de uma solução satisfatória.

Transformação

A implantação das políticas para o sistema prisional depende da mobilização do Poder Público e de uma ampla difusão dos programas existentes. Da parte do Judiciário, a parceria entre tribunais e o CNJ é fundamental, na visão da juíza titular da 2.ª Vara Criminal de Crimes Dolosos contra a Vida de Aparecida de Goiânia (GO), Christiana Nasser. “Os juízes precisam ter conhecimento sobre o que está sendo proposto, acreditar na transformação das prisões brasileiras e ter uma boa relação com a gestão dos presídios e das unidades atendidas”, disse.

A juíza atuou por dez anos na área criminal do município de Formosa (GO) e hoje integra o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), criado pelo CNJ por meio das Resoluções 96/2009 e 214/2015. A magistrada compartilha da preocupação do CNJ e dos tribunais de maneira geral em mudar não apenas as condições de cumprimento de pena, mas também a forma como essas pessoas vão viver após o cumprimento. “Há hoje um olhar diferenciado para o preso na hora em que ele sai da prisão. A diminuição da reincidência passa pelo auxílio não apenas da pessoa que cumpriu a pena, como também de sua família”, afirmou.

Juíza titular da 2.ª Vara das Garantias de João Pessoa (PB), Conceição Marsicano está à frente dos serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apecs) da capital paraibana. Para a magistrada, os esforços do CNJ em desenvolver políticas de ponta vêm surtindo efeitos significativos na humanização e na distribuição da Justiça, e os Apecs são um bom exemplo disso.

As unidades de Apec estão regulamentadas pela Resolução n. 288/2019 e são voltadas à aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade. “Sou uma defensora da Apec e de seu fortalecimento. As audiências presenciais representam uma abertura muito grande, já que estamos frente a frente com a realidade que vivemos e que precisa da nossa intervenção imediata e direta”, destacou.

Laborterapia

Os entraves para a melhoria das condições dos presídios ou unidades provisórias vai além da materialização de políticas públicas voltadas à área de segurança. Com recursos limitados e a crescente diminuição do orçamento do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) ao longo dos anos, as administrações das unidades prisionais recorrem a parcerias e ao voluntariado para tornar mais humanizado o período de encarceramento.

Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ

Por uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Goiás (TJGO), a Unidade Prisional Regional Feminina de Formosa, dirigida por Drielly Alves Seltz, foi inteiramente reformada. As mudanças, que levaram mais de três anos até a conclusão, promoveram não apenas a reestruturação física, mas a ampliação de programas de laborterapia e de formação profissional, possibilitados por meio de parcerias e ações voluntárias. Cada uma das ações é pensada para transformar pessoas.

Encarcerada, Suzana*, de 25 anos, já esteve quatro vezes na mesma unidade nos últimos anos e testemunhou as alterações ocorridas no ambiente e na gestão mais humanizada. “É o mesmo local em que estive, mas tudo mudou completamente, até mesmo o tratamento com a gente, com nossa família. Hoje, minhas filhas vêm me ver e acreditam que aqui é o meu trabalho, que as policiais são minhas patroas. A unidade tem oferecido muitas oportunidades, até curso de redação para o vestibular”, comemora.

Já na Casa de Prisão Provisória (CPP) de Formosa, que teve sua unidade inteiramente reformada, a criação de programas ainda depende de parcerias e outros esforços. O avanço na estrutura criou 66 novas vagas, bem como novos alojamentos, banheiros, cozinha, refeitório, parlatórios e sala para advogados.

Wanderson, 33 anos, é um dos presos que trabalham na CPP de Formosa e comemora a adesão ao trabalho interno na prisão. “Quem não trabalha fica mais agitado. Os benefícios vão além da remição da pena, mas também fortalecem a nossa relação com outros presos”, disse.

Leia a série “CNJ 20 Anos”, que mostra os diversos públicos alcançados pelas ações do Conselho

Texto: Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Fotografia: Luiz Silveira
Arte: Robson Lenin
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias

Macrodesafio - Aprimoramento da gestão da Justiça criminal