Adoções especiais: transformações sociais mudam perfil de pretendentes

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Aos 9 anos, Adriano, que tem transtorno de espectro autista, foi recebido no Lar Infantil Chico Xavier, em Brasília. Essa foi a primeira experiência da Casa com uma criança autista. Foto: Gil Ferreira/CNJ
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As mudanças sociais têm afetado os resultados da adoção no Brasil – e para melhor. O contexto de inclusão abre as portas para que os índices de adoções, incluindo as especiais, cresçam a cada ano, encontrando famílias para crianças com difícil colocação, como as que sofrem de doenças físicas e/ou intelectuais. A consolidação desse trabalho reúne esforços do Judiciário, da sociedade civil organizada e de toda a rede protetiva, como as instituições de acolhimento e Grupos de Apoio à Adoção.

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O perfil selecionado pelas famílias pretendentes à adoção ainda é seleto e restringe o cruzamento com as características das crianças disponíveis. Por isso, ainda se tem registro de mais de 33 mil pessoas habilitadas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), contra o número de 3.757 crianças disponíveis para a adoção, registrado na última sexta-feira (1º/4). Mesmo assim, nota-se uma transformação na aceitação das famílias. O SNA, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), registrou ligeiro crescimento nos últimos anos na adoção de crianças com deficiência, com doenças infectocontagiosas e outros problemas de saúde.

Segundo dados do SNA, das 3.203 adoções concluídas em 2019, apenas 0,6% eram de crianças ou adolescentes com deficiência, 0,3% com doença infectocontagiosa e 2,3% de com outros problemas. Em 2021, no entanto, das 3,237 adoções realizadas pelo SNA, 1,7% das crianças tinham alguma deficiência; 1,3% com doença infectocontagiosa; e 9,5% apresentavam algum outro problema de saúde. A perspectiva para 2022 também é de crescimento: das adoções iniciadas neste ano, ainda sem sentença, há 436 guardas e, dessas, 4,1% são de crianças/adolescentes com deficiências, 2,1% com doenças infectocontagiosas e 11,9% com outras doenças.

Para o presidente do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (Foninj) e conselheiro do CNJ Richard Pae Kim, o aumento ainda é tímido, mas muito importante. “Isso é fruto de um trabalho constante do Sistema de Justiça para melhorar a qualidade dos cursos de pretendentes à adoção, o que tem sido feito com o apoio da sociedade civil. As políticas judiciárias interinstitucionais têm resultado na ampliação do perfil aceito pelos habilitados, e também no aumento das campanhas de busca ativa em todo o Brasil, que deram maior visibilidade às crianças e adolescentes que não encontram pretendentes à adoção pelo SNA.”

Preparação

Preparar os pretendentes à adoção especial – ou “adoção necessária”, como definida pela Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD) – é um dos primeiros passos no cuidado com crianças e adolescentes. As pessoas interessadas em adotar passam por uma preparação, com um módulo específico sobre o tema. “O habilitado precisa ser melhor preparado, absorver o conhecimento e as informações sobre como receber uma criança no seu contexto familiar. Nesse sentido, a troca de experiências é essencial para quem está planejando essa família. As pessoas querem ter filhos, mas às vezes não têm uma ideia clara de tudo o que permeia essa decisão”, ressalta o presidente da ANGAAD, Paulo Sérgio Pereira dos Santos.

Lembrando o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, celebrado no dia 2 de abril, para adotar crianças com Transtorno de Espectro Autista (TEA), por exemplo, a pessoa habilitada precisa ter consciência das necessidades que o futuro filho terá. Para a terapeuta ocupacional e especialista em saúde mental, com formação em TEA e análise do comportamento aplicada, Arali Castro Rêgo Pereira, os pais que se dispõem a adotar um autista precisam buscar informação de qualidade a respeito desse tipo de alteração neurológica.

“Apenas colocar a criança em terapia não é suficiente, até porque, para que qualquer terapia tenha um bom resultado é necessário trabalhar junto com a família”, explica a especialista. Segundo o Ministério da Saúde, o autismo é um transtorno crônico, mas que conta com esquemas de tratamento que devem ser introduzidos tão logo seja feito o diagnóstico e aplicados por equipe multidisciplinar, além da “imprescindível orientação aos pais ou cuidadores”. Também é recomendado que se desenvolva um programa de intervenção personalizado, pois nenhuma pessoa com autismo é igual a outra.

De acordo com Arali Rêgo, uma sugestão é procurar as associações de pais de crianças com autismo, que reúnem informações específicas sobre o TEA, além de proporcionar um ambiente de troca de experiências. Ela ressalta que a família precisa compreender a importância de sua participação no desenvolvimento deste filho. “Quando atendemos uma criança com autismo, precisamos que os pais saibam o que querem e o que esperar, pois ela fica pouco tempo na clínica. A maior parte do tempo a criança fica em casa, então, os pais precisam saber como lidar com muito cuidado, amor e atenção.”

O presidente da ANGAAD reforça que os pais de crianças com TEA precisam ter preparo em todos os níveis – físico, biológico, emocional – para entender como ajudar as crianças e fazer o enfrentamento necessário para alcançar seu desenvolvimento. “Os Grupos de Apoio à Adoção possuem equipes técnicas multidisciplinares e têm informação específica e especializada para ajudar as famílias que procuram essa informação de qualidade.”

Já existem mais de 200 Grupos em todo o país e muitos disponibilizam informações pela Internet e em suas redes sociais. “Temos uma parceria com o Judiciário, especialmente na preparação das famílias habilitadas à adoção. Isso nos permite oferecer mais segurança às crianças que serão adotadas e às famílias que vão recebê-las”, esclarece Santos.

Instituições 

O cuidado com essas crianças, porém, começa antes da adoção. Para as instituições que fazem o acolhimento desses meninos e meninas também é preciso investir na capacitação da equipe e até mesmo na infraestrutura do espaço. No Distrito Federal, a casa Lar Infantil Chico Xavier está acolhendo o menino Adriano Luiz* que tem 9 anos e transtorno de espectro autista.

Essa foi a primeira experiência da Casa com uma criança com TEA e, depois de sua chegada, a instituição percebeu a necessidade de adaptação da rotina e das instalações físicas para acolher melhor crianças especiais, como rampas e banheiros adaptados. “A maior dificuldade do Adriano no acolhimento foi com a rotina, porque ele não tinha nenhuma na sua casa de origem. Ele tem autismo severo, além de perda de audição bilateral. Chegou a usar um aparelho auricular, mas não se adaptou bem”, conta a coordenadora pedagógica da unidade, Rebeca Pirangy Barbosa.

A instituição não pode oferecer todos os tipos de cuidado que Adriano precisa, pois, no momento, não tem como arcar com os custos. Por enquanto, a direção recorre ao que há disponível no sistema público. Atualmente, o garoto estuda em um Centro de Ensino Especial e tem acesso ao tratamento duas vezes por semana em uma organização especializada em autistas.

“Tentamos encontrar parceiros que cobrem um valor simbólico para que o Adriano tenha acesso a outras terapias. Ele faz natação, duas vezes por semanas, porque conseguimos uma bolsa com a academia Acqualife, em Brasília. Também usa medicamentos para dormir e controlar a agressividade. Conseguimos uma doação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para um tratamento com canabidiol e já estamos vendo melhoras”, afirma a coordenadora.

Rebeca diz que as demais 18 crianças acolhidas na instituição percebem que o menino tem maior dificuldade e o ajudam na hora de brincar e de cuidar dele. Mas essa não é sua primeira vez no sistema: em agosto de 2020, Adriano foi acolhido pela primeira vez e acabou reintegrado à família de origem no final de 2021. No momento, a mãe tem recebido acompanhamento. “Vamos tentar mais uma vez a reintegração. Se a mãe não conseguir cuidar dele, mesmo com o tratamento, vamos sugerir a adoção à Vara de Infância”, explica a coordenadora. “Aqui, precisamos ajudar a família como um todo, se não, o cuidado com a criança pode ficar prejudicado.”

Também no DF, a Casa Lar Ampare recebe apenas crianças com deficiência física ou intelectual. Inicialmente, o espaço foi fundado para defender os direitos da pessoa com deficiência intelectual e múltipla, oferecendo atendimento especializado e adequado às necessidades individuais, objetivando a independência e inclusão na sociedade. Há quase 20 anos, abriram a nova unidade para acolhimento das crianças, com apoio do governo local. “Os recursos ajudam com o pagamento dos funcionários, mas a manutenção da casa e das crianças é feita por meio de adoções de roupas, alimentos e tudo o que as crianças precisam”, explica a coordenadora da Casa, Maíza Gomes de Oliveira.

De acordo com ela, as crianças ficam na instituição até os 18 anos, quando são encaminhadas para outras entidades. A Casa Lar tem uma equipe multidisciplinar, com assistente social, psicólogo e equipe técnica, além dos cuidadores. A rotina, segundo Maíza Gomes, é como de qualquer outro abrigo: eles dormem, se alimentam, vão para a escola, tomam banho e fazem a reabilitação na outra unidade da Ampare. A maioria tem paralisia cerebral e não fala.

“Para trabalhar com essas crianças é preciso ter amor para poder conduzir com serenidade, seriedade e vontade, além de sabedoria para conduzir as crianças e orientar quem cuida delas. É um trabalho de puro amor”, afirma. Ela ressalta ainda que, quem deseja adotar crianças especiais precisa estar preparado. “Mas, é preciso cuidar das instituições que fazem esse trabalho também e não deixar faltar nada. O apoio não é apenas financeiro, mas em todos os aspectos.”

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as normativas que regulam os acolhimentos institucionais e familiares estabelecem as diretrizes necessárias para que os serviços realizem o adequado atendimento às pessoas com deficiência. Segundo o conselheiro do CNJ Richard Pae Kim, as políticas públicas devem fornecer equipamentos e investimentos necessários para o adequado atendimento, em especial, às crianças e adolescentes com necessidades especiais, e os atendimentos deverão ser fiscalizados pelos órgãos competentes.

“Penso que a sociedade também pode e deve contribuir para que essas pessoas em desenvolvimento recebam carinho e atenção, sob o ponto de vista material e de convivência humana de que necessitam. Por isso, costumo dizer que a comunidade não só deve adotar essas crianças, mas acolhê-las sempre, pois são as que mais necessitam”, defende Pae Kim

* Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Lenir Camimura
Agência CNJ de Notícias 

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