Negligência é atualmente um dos principais motivos que levam a Justiça a decidir pelo acolhimento institucional ou familiar de crianças e adolescentes no Brasil. O conceito, apesar de amplo, refere-se à violação dos direitos fundamentais, como a falta de alimentação adequada, tratamento de saúde, de moradia e de frequência na escola. Hoje, mais de 29,8 mil crianças estão em serviços de acolhimento no país, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O acolhimento infantil é uma medida protetiva, excepcional e temporária. Prevista em lei – tanto na Constituição Federal, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 32 anos nesta quarta-feira (13/7) –, tem como objetivo o abrigamento de meninas e meninos que estejam em situação de vulnerabilidade, maus-tratos, abandono, violência física, abuso sexual ou outra situação que viole a garantia de proteção e dignidade.
Dados do Diagnóstico Nacional da Primeira Infância, produzido pelo CNJ em parceria com o Programa Nacional das Nações Unidas (PNUD), mostram que, em 2020, mais de 30 mil crianças e adolescentes estavam acolhidos no país e a negligência representava cerca de 30% dos motivos de acolhimento, seguidos por conflitos em ambiente familiar (15%) e drogadição de integrantes da família (8%). Já os casos de órfãos que chegaram às Varas de Infância representavam apenas 0,4% do total.
“A ideia de que a orfandade é que levava as crianças para o acolhimento não existe mais. Na verdade, a maioria das crianças que perdem os pais costuma ter o apoio da família extensa”, explica a presidente do Colégio de Coordenadores de Varas de Infância e membro do Fórum Nacional da Infância e Juventude (Foninj), juíza Noeli Salete Tavares Reback.
Quando a criança vai para o acolhimento, segundo a magistrada, geralmente há um histórico familiar de abandono e desassistência, que podem ser reflexo de um “costume” de descaso. “Normalmente, não é a situação econômica da família que afasta as crianças, mas uma condição mínima de cuidado que não é observado por esses pais e mães.” De acordo com ela, nesses casos, meninos e meninas são encontrados em diversas situações difíceis, como o uso na mendicância, violência física e sexual. “A pobreza ou a falta de condições econômicas é um fator que faz com que as redes de proteção sejam acionadas para dar estrutura para essas famílias.”
Para o presidente do Fórum Nacional da Justiça Protetiva (Fonajup), Hugo Zaher, o processo é que vai mostrar como juízes e juízas vão lidar com a situação caso os direitos da criança estejam sendo violados. Mas ele deixa claro que a pobreza não é um motivo para afastamento da família. “Muitas vezes, é preciso proteger toda a família, em uma questão de reestruturação, e a própria rede pública deve acolher essa pessoa e trabalhar sua potencialidade. Somente em último caso é que se caminha para uma destituição do poder familiar e se coloca a criança como apta para adoção.”
Ao longo da pandemia da Covid-19, por exemplo, especialmente quando a crise sanitária também impactou a economia e trouxe um momento de privação e vulnerabilidade mais acentuado, foi registrado um aumento no número de crianças acolhidas por negligência e abandono.
Os dados do SNA mostram, contudo, que também cresceu o número de crianças reintegradas às famílias de origem. Em 2020, 9.753 crianças e adolescentes foram reintegrados e, em 2021, esse número cresceu para 10.984. Também não foi registrado o aumento do número de crianças aptas à adoção. De acordo com o presidente do Fonajup, a Justiça trabalha em parceria com o Sistema de Garantias – também chamada de rede de proteção – para privilegiar a permanência na família de origem.
Nesse sentido, a Justiça pode verificar qual a necessidade da família e determinar a solução: se falta vaga em creche, que o município encontre uma vaga; se alimentação, que a assistência social providencie cestas básicas; se moradia, que haja um aluguel social, por exemplo. Até mesmo nos casos de uso de drogas ou álcool, existem possibilidades de tratamento para as famílias, de forma que as crianças sejam protegidas no ambiente familiar e o indivíduo receba ajuda do Estado.
Passo a passo
Zaher explica que, para afastar a criança ou o adolescente da família, é necessária uma ordem judicial para um acolhimento institucional ou familiar. O processo garante a ampla defesa e o contraditório da família – do início ao fim da ação -. Mas, se decidido pelo acolhimento, pode ser expedida uma ordem de busca e apreensão para que a criança seja encaminhada garantindo a sua integridade, sem nenhum tipo de risco.
O serviço de acolhimento vai elaborar o plano individual de atendimento da criança, ou seja, as estratégias e ações que serão usadas para se tentar, primeiramente, a reintegração – verificar quais são os riscos e o que pode ser feito para se mantê-la na família de origem ou na família extensa. Caso isso não seja possível, esgotadas as tentativas, é comunicado em relatório ao Ministério Público, que tem prazo de 15 dias para encaminhar a ação, se for o caso, de destituição do poder familiar, porque está havendo uma violação de direito fundamental. A ação tem um prazo 120 dias para ser concluída.
As entidades de acolhimento normalmente são integradas por equipes especializadas que trabalham em parceria com o Judiciário para averiguar os prazos estabelecidos pela magistratura, de acordo com a lei, além de avaliar as condições psicossociais da família biológica e a preparação da criança e do adolescente e dos familiares. A equipe técnica e os serviços de família acolhedora também recebem um treinamento específico para atender esse público.
Ao ser acolhida, a criança ou o adolescente devem ser recebidos de forma humanizada, com a garantia de seus direitos fundamentais, como educação, saúde e alimentação. Também deve ser permitida a visitação das famílias – não havendo nenhuma ordem judicial em contrário -, prevista em seu plano individual de acolhimento.
É muito importante que meninos e meninas entendam o que está acontecendo, por meio de um Sistema de Justiça “sensível, acessível e amigável com a criança e o adolescente, permitindo que ela participe da tomada de decisão sobre sua situação”, conforme o presidente do Fonajup explica. “É preciso levar em consideração a condição peculiar de desenvolvimento da criança, sua faixa etária e permitir essa participação sempre que possível.”
Além disso, é preciso ouvi-la e esclarecer o porquê dessa situação para que ela não se sinta culpada, mas entenda que está sendo protegida, evitando ainda a revitimização por todos os integrantes do Sistema de Garantias. Até mesmo se for encaminhada para a adoção, Hugo Zaher reforça a importância da sensibilização para ouvir as crianças até para saber se é seu desejo ser adotada. “O objetivo é dar realce à centralidade na criança, para que seja tudo em prol dela.”
Realidades locais
Na comarca de Luziânia (GO), o panorama do acolhimento está marcado por maus tratos, trabalho infantil, abuso e exploração de crianças e até adoções ilegais. Segundo a titular do Juizado da Infância e Juventude e coordenadora adjunta da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), juíza Célia Regina Lara, o Judiciário está articulado com a rede de saúde, educação e assistência social para identificar as mães vulneráveis.
A região também tem carência de políticas públicas para dar suporte às famílias, como escola integral, campanhas de vacinação e tratamentos para usuários de drogas e álcool. “Nada vence a criminalidade quando o assunto é a orfandade das crianças. Os motivos do acolhimento local refletem o aumento dos problemas sociais. Depois do período mais grave da pandemia, tivemos uma explosão de casos de abuso, gravidez na adolescência e envolvimento com o crime. A vulnerabilidade já expõe as crianças ao risco, mas não só por causa da fome, mas de todo o contexto.”
O trabalho em Luziânia está voltado para reestruturar a família e garantir que meninos e meninas possam voltar ao convívio, ainda que da família extensa. “Estamos em uma guerra pela proteção dessas crianças”, garante Celia Regina. Quando há uma reintegração à família, a medida protetiva de acolhimento é transformada em acompanhamento, com o apoio da rede de proteção, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Um estudo psicossocial é realizado periodicamente. Se for necessário, a Justiça determina que o município atenda às necessidades da família, como providenciar vagas em escolas, atendimento de saúde e alimentação. “Não é só parceria, mas também determinação judicial. Ouvimos as demandas relatadas pela rede de proteção e a equipe técnica que faz o acompanhamento psicológico”, explica a magistrada.
Já em Manaus, há cerca de 160 crianças acolhidas. Destas, 21 são órfãs – de ambos os genitores ou de apenas um deles -, mas os motivos do acolhimento se referem principalmente à negligência e abandono. Um dos casos mais marcantes foi de uma garota que estava sob a guarda do avô, mas foi constatado que ele estava desviando o dinheiro que ela recebia como pensão dos pais falecidos, além de ser violento com ela. Por esse motivo, as instituições denunciaram e ela foi para o acolhimento.
“Não quer dizer que as crianças estão no acolhimento porque não têm familiares extensos, mas sim por causa da negligência por parte desses familiares”, explica Heloísa Guimarães de Andrade, que gerencia o serviço social da Vara de infância e Juventude Cível de Manaus, unidade do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM).
A juíza Noeli Reback diz que, especialmente em relação aos adolescentes, há um descaso com os cuidados necessários, especialmente pela família extensa. “Há uma sensação de que ele é o filho de um parente que está sendo cuidado. Isso faz com que o abandone – muitas vezes, literalmente – à própria sorte. Isso leva o jovem a uma série de situações que acabam desaguando no acolhimento.”
Heloísa Guimarães confirma essa situação, lembrando que, mesmo quando apenas um dos genitores morre, o que fica responsável pelas crianças acaba se envolvendo com outras pessoas e isso pode prejudicar os filhos. Em alguns casos, é constatado um problema psicológico ou alguma outra circunstância que acaba levando as crianças para o acolhimento, por ser o mais seguro para eles.
Uma das principais questões identificadas em Manaus é o uso de drogas e álcool por pais e mães. Mesmo com as políticas públicas que oferecem tratamento para dependência química – há seis unidades de atendimento em Manaus -, a magistrada afirma que não há efetividade, porque não há continuidade do tratamento.
Muitas vezes os pais deixam de comparecer à unidade de saúde e não é possível fazer uma busca ativa, uma vez que a demanda é alta e logo outra pessoa ocupa a vaga. Dessa forma, apesar da reintegração das crianças às famílias, elas acabam voltando para o acolhimento, até que não há outra opção senão destituir o poder familiar e indicá-las para adoção.
“As políticas públicas existem para dar suporte às famílias e ajudá-las a se manterem, em casos de necessidade”, explica a pesquisadora e socióloga Paola Stuker, que participou do levantamento do CNJ sobre a Primeira Infância. Ela ressalta ainda que estudos como o diagnóstico podem ser utilizados para verificar a eficácia e efetividade dessas políticas públicas, por meio das evidências científicas.
A reentrada de crianças ao sistema, no entanto, chega a 30% daquelas que passaram por acolhimento institucional e 22% das que estiveram em acolhimento familiar. A pesquisadora explica que não é possível verificar se o motivo do novo abrigamento é o mesmo ou se deu por outras questões, mas o fato de uma criança acolhida anteriormente voltar para o sistema mostra que as ações desenvolvidas com ela não foram suficientemente efetivas. “É preciso analisar o que está causando a negligência e verificar se o que falta é mais apoio do Estado. Mas são com dados, com informações qualificadas sobre a realidade que conseguimos direcionar as políticas públicas e essa é a relevância do diagnóstico do CNJ.”
Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias