Mais de 100 mil pessoas condenadas por tráfico de drogas e sem outras passagens criminais poderiam ter sua pena revisada se seus casos fossem reclassificados como tráfico privilegiado, um enquadramento previsto na legislação brasileira que permite penas mais proporcionais a réus primários e sem envolvimento com organizações criminosas. O dado faz parte do primeiro boletim analítico Política Penal e Drogas, série do Conselho Nacional de Justiça que busca qualificar o debate sobre a política de drogas no país.
O tráfico privilegiado é um tipo previsto na Lei de Drogas, de 2006, que permite redução da pena de tráfico de um sexto a dois terços. Para um caso de tráfico ser classificado como tráfico privilegiado, quatro requisitos devem ser atendidos simultaneamente: a pessoa não deve ter condenações anteriores, deve ter bons antecedentes, não pode se dedicar às atividades criminosas nem pode integrar organização criminosa. Com a redução, a pena poderia ficar menor que cinco anos, permitindo a substituição da prisão por outras medidas.
Acesse o boletim Política Penal e Drogas — Tráfico Privilegiado.
Em 2023, o STF publicou a Súmula Vinculante n. 597, tornando obrigatória a aplicação do regime aberto e a substituição da prisão por restrição de direitos nos casos de tráfico privilegiado. Em agosto de 2023, dentre as 370,2 mil pessoas que respondiam a processos relacionados ao tráfico de drogas, 26,1%, ou 96.706 pessoas, receberam a tipificação de tráfico privilegiado.
O levantamento para o boletim Política Penal e Drogas foi realizado a partir do Sistema Eletrônico de Execução Unificado, ferramenta do CNJ que integra mais de 1,5 milhão de processos de execução penal no país e que está em fase de implantação em São Paulo. Os achados apontam que cerca de 100 mil condenados por tráfico de drogas sem outra condenação não tiveram reconhecimento do tráfico privilegiado, o que potencialmente permitiria revisões das penas.
Segundo o estudo, a dificuldade de comprovação com as atuais ferramentas de gestão judiciária dos três outros requisitos abre espaço para decisões subjetivas. “O problema é ainda mais agravado ao se observar que, não raramente, as principais ou únicas provas consideradas nas decisões dos processos que envolvem crimes relacionados às drogas são os depoimentos de agentes de segurança que atuaram na abordagem”, aponta o boletim.
O tema do tráfico privilegiado foi incluído no Mutirão Processual Penal de 2023, com a análise de mais de 7 mil processos de pessoas condenadas por este crime cumprindo pena em regime fechado. O resultado foi a alteração para o regime aberto, com ou sem substituição de penas restritivas de direitos, em 47% dos casos, 3.343 no total. De acordo com o boletim Política Penal e Drogas, entre as pessoas com apenas uma condenação por tráfico privilegiado, 5,5% ainda cumprem pena em regime fechado.
Dados
O boletim ainda traz dados como o crescimento proporcional da aplicação do tráfico privilegiado em comparação ao tráfico de drogas nos últimos 10 anos — entre 2014 e 2023, subiram 294,1% e 139,6%, respectivamente. Em relação ao gênero, o tráfico privilegiado é proporcionalmente maior para o gênero feminino. Entre as mulheres que estão condenadas pela Lei de Drogas, 33% são enquadradas no tráfico privilegiado, enquanto para os homens esse percentual é de 25,1%.
O estudo também concluiu que, conforme esperado, o tráfico privilegiado está mais presente entre os jovens e entre os condenados no regime aberto, além de estar correlacionado à menor média nos dias de pena. “Com o crescente encarceramento em razão da Lei de Drogas, que hoje é motivo de mais de 200 mil casos de privação de liberdade no país, precisamos pensar em soluções a partir de nossas leis de teses fixadas pelas cortes superiores”, avalia o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi.
Ele lembra que o tema das drogas está presente em diversos pontos do plano Pena Justa, em fase de homologação no Supremo Tribunal Federal para superar a situação inconstitucional nas prisões brasileiras. Alguns dos exemplos de ações previstas são a definição de parâmetros para decisões sobre o tráfico de drogas em audiências de custódia e o redirecionamento da política de drogas para ações de saúde e proteção social, especialmente com foco na população negra.
Sobre o boletim
O boletim Política Penal e Drogas foi elaborado com apoio do programa Fazendo Justiça, iniciativa do CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública para superar desafios no campo da privação de liberdade. Conheça as ações do programa aqui.
As próximas edições previstas são: tráfico de drogas na porta de entrada do sistema penal (audiências de custódia) e crimes relacionados a drogas e à política de saúde mental.
Texto: Pedro Malavolta
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias