Com o objetivo de organizar de forma permanente a ocupação nas prisões, garantindo ao Judiciário uma gestão qualificada dos fluxos de entrada e saída para evitar a superlotação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está trabalhando junto aos poderes públicos do Maranhão para a implantação da primeira Central de Regulação de Vagas do país. A partir de metodologia criada pelo CNJ, a implementação do projeto vem sendo realizada de forma colaborativa e tem previsão de lançamento ainda neste semestre.
“Há simbolismo que muito nos gratifica começar a implementação da Central de Regulação de Vagas aqui no estado”, afirma o presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), desembargador Paulo Velten. O simbolismo é referência aos episódios de violência no Complexo de Pedrinhas, que contabilizaram mais de 60 mortes na última década, levando o Brasil a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). “Graças a um imenso esforço de conscientização e atuação de diversos atores, como o Poder Executivo, Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, sociedade civil, a realidade felizmente é outra, em que o Maranhão se destaca no cenário nacional.”
Segundo Velten, desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro com críticas específicas ao cenário de superlotação, ficou clara a mensagem aos poderes públicos para respostas definitivas. “Foi superada a lógica de que o Judiciário não precisa se preocupar com com a lotação dos estabelecimentos penais antes de ordenar uma prisão”, avalia. Para o presidente do TJMA, a Central de Regulação de Vagas traz importantes ganhos ao instrumentalizar juízes para que decidam considerando também a questão das vagas disponíveis.
A partir da análise histórica das elevadas taxas de ocupação nas prisões brasileiras e também de prisões provisórias, o corregedor-geral do TJMA, desembargador José de Ribamar Froz Sobrinho, afirma que o Judiciário tem a função de fomentar a celeridade de processos para que a lei seja cumprida. “A superlotação dificulta a aplicação dos protocolos, capacitações e estimulo à atividade laboral. A Central de Regulação de Vagas surge na perspectiva de não permitir o excesso de preso, auxiliando os atores da execução penal na melhor gestão e controle das unidades prisionais e na duração razoável do processo.”
De acordo com o corregedor, o Judiciário local vem atuando desde 2010 na articulação intersetorial, situação que ganhou ainda mais impulso com os preparativos para a chegada da nova metodologia de regulação de vagas. “Nessas últimas semanas, estão sendo realizadas reuniões bilaterais e estamos recebendo dados do Poder Executivo e do próprio Judiciário conforme cronograma. O próximo passo é nova análise do termo de cooperação técnica a partir de sugestões e a finalização do Guia de Implementação”, explica. A próxima reunião do grupo será no dia 30 de maio.
Para o supervisor da Unidade de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do TJMA, desembargador Ronaldo Maciel, a Central de Regulação de Vagas “pode ser uma mudança radical e positiva para a humanização do sistema”, especialmente devido ao ambiente institucional participativo que foi criado. “A mesa diretora de nosso tribunal está em perfeita sintonia quanto à necessidade de superação do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional e da relevância da Central de Vagas nesse sentido. Por outro lado, reconhece a necessidade de um debate amplo. Assim, decidimos dialogar com a Associação dos Magistrados e com todos os juízes e juízas.”
Segundo o desembargador, o projeto é desenvolvido de forma coletiva. “Os juízes e juízas estão recebendo bem exatamente porque estão participando de cada etapa de sua construção”, explica. De acordo com ele, o debate está sendo ampliado gradativamente aos demais atores do sistema de Justiça, como Ministério Público e Defensoria Pública. “Ainda temos muito a fazer, mas em cada momento saberemos receber todas as boas contribuições de todas as instituições.”
Na prática
A implementação do projeto-piloto já conta com algumas definições. Inicialmente, será restrito à comarca da Ilha de São Luís, onde estão 15 dos 47 presídios do estado e pouco mais da metade a população carcerária, que é 12 mil. Essas decisões foram tomadas em um grupo de trabalho criado pelo TJMA para a definição do modelo local com participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Secretaria estadual de Administração Penitenciária, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos como instituições observadoras. O trabalho culminará com a assinatura de termo de cooperação técnica entre CNJ, TJMA e governo do estado para o início da implantação efetiva do projeto.
“Vejo a Central de Regulação de Vagas como uma usina hidrelétrica. Você tem que controlar o volume de água ali para evitar que a represa entre em colapso, pode ser preciso abrir ou fechar as comportas para garantir a estabilidade e harmonia no sistema. No sistema prisional não é diferente”, explica o juiz auxiliar Presidência do TJMA Márcio Brandão. “A superlotação é por si só uma mazela, mas ela traz junto outras, como o déficit nos serviços de saúde, laborais e educacionais”, complementa. Segundo o magistrado, o grupo de trabalho está contribuindo com o fortalecimento do diálogo entre poder público e sociedade civil já presente em outros espaços, como o Conselho Penitenciário Estadual.
A metodologia que embasa o funcionamento da Central de Regulação de Vagas está detalhada em manual lançado pelo CNJ em março. “Além de se inspirar em melhores práticas nacionais e internacionais, o manual propõe que as 11 ferramentas para a criação de uma Central possam ser adaptadas para cada realidade, tornando o projeto customizável. Essa flexibilidade permite a discussão sobre a expansão da ferramenta a outras partes do país, já em andamento”, explica o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi.
O projeto é uma das atividades do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública para incidir em desafios no campo de privação de liberdade. No caso do Maranhão, além de apoiar a articulação com os representantes locais, o programa está desenvolvendo um guia de implantação específico para o estado, com passo a passo sobre como funcionarão os fluxos na prática.
Ação conjunta
Ao incentivar a combinação de ferramentas para cada realidade local, a metodologia da Central de Regulação de Vagas permite que sejam incorporadas práticas e sistemas já em andamento. Um exemplo é o sistema de Monitoramento e Acompanhamento do Sistema Penitenciário desenvolvido pelo TJMA. A ferramenta monitora, acompanha e fiscaliza o sistema penitenciário, em tempo real, a partir de informações oriundas do governo estadual, e já vendo sendo usada para subsidiar o trabalho do Tribunal.
Para o atual juiz coordenador da Unidade de Monitoramento do TJMA, Douglas Martins, os agentes públicos estão cientes dos problemas criados pela superlotação carcerária e vem buscando iniciativas legislativas, a exemplo das medidas cautelares diversas da prisão, administrativas, com ampliação de vagas, e judiciais, por meio de mutirões carcerários, para minimizar esse quadro. “Mas será a Central de Regulação de Vagas aquela que poderá ser a mais efetiva de todas. Estamos diante da possível solução definitiva da superlotação carcerária e, portanto, da superação de muitas formas de violações de direitos humanos no sistema prisional.”
De acordo com o juiz Marcelo Silva Moreira, que foi coordenador adjunto da Unidade desde o início do projeto até o fim de abril, a proposta foi muito bem recebida pelo Judiciário local, colocando a magistratura como peça chave para a qualificação do sistema penitenciário. “Defender um sistema prisional que funcione é entender que o preso de hoje não precisa ser o reincidente de amanhã. É compreender que penitenciárias não precisam ser quartéis do crime organizado, mas sim ambientes de retribuição penal, ressocialização e educação.”
Defensor público com atuação na Vara de Execução Penal da capital maranhense, Paulo Rodrigues da Costa avalia que a Central de Regulação de Vagas “é o instrumento mais relevante que vamos receber para dar um status diferenciado ao sistema prisional do Maranhão”. Ele vê um importante avanço em curso desde que iniciou sua carreira em 2010, exatamente no dia em que ocorria uma rebelião no Presídio de Pedrinhas. “Não digo que já conseguimos a ressocialização dos detentos, mas já estamos perto de garantir dignidade aos presos.”
Parceria com Executivo
Recém-eleito para a presidência do Conselho Nacional de Secretários de Estado de Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej), o titular da Secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão, Murilo Andrade de Oliveira, avalia que os episódios ocorridos em Pedrinhas deram início a uma mobilização entre instituições que hoje favorece a implantação da primeira Central de Regulação de Vagas do país. Ele cita como exemplo o fato de o estado hoje liderar alguns indicadores como taxa de presos em atividades laborais e educativas, não ter mais presos provisórios em delegacias, bem como ter zerado o analfabetismo no sistema prisional.
O representante do Executivo local avalia como fundamental a parceria com o Poder Judiciário para que o estado mostre ao país uma experiência bem sucedida de gestão de fluxos de entrada e de saída, reproduzindo o que já é visto em outras políticas públicas como saúde e educação, em que cada vaga é ocupada por uma pessoa. “Nós entendemos a Central de Regulação de Vagas como um compartilhamento de ações. Ela visa qualificar tanto entrada como a saída das prisões, entendendo se aquele indivíduo preso precisa permanecer nesta condição, o que é muito importante.”
Pedro Malavolta e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias