Audiência pública: pessoas atingidas revelam impactos sociais da tragédia de Mariana

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“Uma tragédia de proporções incalculáveis, não apenas contra o meio ambiente, mas também contra milhares de pessoas que viviam da pesca, do turismo, ribeirinhos e agricultores. Todos fomos afetados terrivelmente pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG)”. A fala de Mateus Pena Barbosa, um dos atingidos pelo maior desastre socioambiental do Brasil, foi ouvida nessa quarta-feira (6/10), durante a 2ª Audiência Pública promovida pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade, Grande Impacto e Repercussão, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

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Pela segunda vez – a 1ª audiência ocorreu dia 10 de setembro -, as autoridades escutaram a voz das pessoas impactadas pelo desastre e puderam conhecer em detalhes os problemas ocasionados pelos 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração despejados sobre o Rio Doce, que se estende por 663 km e perpassa por 222 municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, onde se localiza a foz do rio. A tragédia que matou 19 pessoas soterradas completa 6 anos dia 5 de novembro. “O desastre contaminou toda a bacia hidrográfica. Eu desafio alguma autoridade da Renova ou da Vale a beber a água ou a comer peixe do Rio Doce. Eles nos devem uma reparação”, afirmou Mateus.

Morador do município de Colatina (ES) Genivaldo José ressaltou o descumprimento do artigo 171 do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado pela Renova. “A empresa deu quitação de dívidas, sendo que não há sequer bomba de água no local. Tem gente que passa fome para comprar água mineral. É a cidade que mais consome água mineral no Brasil. É preciso fazer um teste para saber definitivamente o que há de errado na água.”

“São depoimentos chocantes, alguns dramáticos. Queremos que vocês saibam que estamos atentos aos relatos e trabalhando para que haja um acordo justo. O sistema atual não está indo bem, seja em relação à demanda de quitação, em relação à saúde dos atingidos, assim como em relação à proteção do meio ambiente. Nosso intuito – com esse canal de diálogo válido e importante – é encontrar um acordo que permita reestabelecer a vida de vocês”, afirmou o conselheiro do CNJ Luiz Fernando Bandeira de Melo.

Subprocuradora-geral da República aposentada, a consultora ad hoc para graves violações de direitos humanos da ONU Débora Duprat rememorou os passos que o Ministério Público e a Justiça tomaram em relação ao crime ambiental e às mortes causadas pelo desastre da barragem do Fundão. Ela lembrou que após 15 dias do desastre, a União e os estados de Minas Gerais e o Espírito Santo entraram com uma ação contra as três empresas responsáveis pela tragédia.

Destruição de cidades, remoção de comunidades, mortes de pessoas, desaparecimento de animais, impacto no meio ambiente inclusive em áreas de preservação permanentes. “Um desastre de magnitude gigantesca, em que ficou acordado que havia um dano em expansão e dinâmico. Isso é importante citar porque qualquer avaliação devia contar com avaliações de equipes técnicas independentes, especialistas em preservação e representantes dos atingidos. Mas a Justiça fecha um acordo sem a voz da população. E estipula um valor proposto que não nasceu de estudos técnicos independentes”, critica Débora Duprat.

Para ela, o ressarcimento financeiro é insuficiente. “Quando acontece um desastre desse nível, o ressarcimento financeiro apenas não reconstrói os laços que precisam ser recuperados. Não é só a moradia que se perde, o peixe e o leite que não chegam. Grupos humanos são dotados de uma complexidade enorme e essas relações, uma vez rompidas, elas precisam ser de alguma maneira serem recuperadas.”

200 km da costa

“Eu tenho provas certificadas pela Marinha do Brasil do nível de impacto que tivemos com o desastre de Mariana. Corvina, camarão e dourado são espécies que foram muito comprometidas”, diz o pescador Leandro Gomes de Souza. “Perdemos trabalho, renda. Nossos jovens saíram da cidade pois não conseguimos sustentá-los. Não há água para regar nossas plantações. A população rural tomou muito prejuízo, e perdeu também a saúde. Sequer reconheceram que nós tínhamos qualquer direito. Disseram que não éramos diretamente afetados”, afirmou Luzinete Serafim, do município de Conceição da Barra.

A cor esverdeada do mar, longe mais de 200km da costa, revela que a contaminação do rio atingiu severamente as antes águas azuis. “Os robalos e as tainhas do rio estão contaminadas. E os peixes de oceano percebem que tem algo de errado ali e não entram na costa. Tive um impacto financeiro muito grande”, diz Acrisio Pozzatti Junior, que chegou a pensar que o desastre não comprometeria a pesca oceânica. “Infelizmente, estava errado. Tentei pontos de pesca até Guarapari, mas a água verde toma conta e o peixe não aparece.”

Para Marcus Tadeu, outro atingido pelo desastre, a população precisa ser ouvida e não apenas na audiência pública “mas na mesa de negociação”. Representando os povos indígenas atingidos pela tragédia, Douglas Silva Lemos afirmou que, pela primeira vez, eles estão sendo ouvidos.  “Nossa participação não é nem mais nem menos importante que a de todos. Hoje, os povos tradicionais estão conseguindo se organizar, merecem e querem respeito. Esse foi um crime foi contra a vida, contra direitos constitucionais. É muito maior que dinheiro. Esse Judiciário deu voz a nós e é muito importante que a gente possa falar. Não tenho mais direito a levar meu filho no mesmo rio que eu vivi.”

Dona de uma pousada em Praia Grande (ES), Maria Goretti Tótola Buzzo conta que, apesar de não terem sido atingidos diretamente, a região foi altamente afetada. Segundo a empresária, cerca de 5 mil pessoas nessa localidade não têm mais como tirar a renda da cidade. “Tenho pousada e represento uma cadeia produtiva altamente impactada. Já fui microempresária, agora não sou mais. Os dois funcionários que eu tinha, tive de demitir. Recebíamos alunos de escolas, de universidades, e isso gerava renda. Havia cinco hotéis nessa região, quatro fecharam.”

Neto Barros, ex-prefeito do município de Baixo Guandu (ES), que chegou a participar dos desdobramentos entre os envolvidos no desastre até o final do ano passado, disse que a Fundação Renova foi criada “para evitar a morosidade da Justiça”. “Percebia uma grande animosidade da Fundação Renova com os atingidos e as comunidades nunca participaram do acordo. E, curiosamente, foi a Justiça (a 12ª Vara Trabalhista) que conseguiu agilizar o cadastramento e o pagamento de algumas indenizações, mesmo diante de valores aquém ao justo adequado.”

A artesã Rosa Souza dos Santos, moradora do povoado tradicional Santa Cruz dos Calvários (MG), conta que está doente, e que só consegue dormir a base de calmante. “Nasci, cresci e moro à margem do Rio Doce. Nunca fui ouvida, mesmo morando perto da casa onde funciona a fundação. Toda vez que tentei, não fui ouvida. Hoje a gente não tira o peixe do rio, não tira mais nada do rio. Estamos cansados.”

 Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias

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