Suspensão de direitos políticos condena ex-presos ao trabalho informal

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Foto: Arquivo/CNJ
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Era a grande chance de mudar de vida. Depois de sete anos preso no sistema prisional de São Paulo, Lincoln* progrediu para o regime aberto e foi selecionado para trabalhar em uma usina de etanol e açúcar. Durante um ano, ele se dedicou integramente à busca de um emprego, mas não havia vagas. Agora, vencera um elaborado processo seletivo.

“Passei por entrevista, fiz exames de audição, sabia até quanto iria ganhar. Faltavam três dias para começar no serviço”, lembra o morador de Pereira Barreto, município do oeste paulista. A vaga era dele, finalmente. Só que Lincoln* não pôde ser contratado, por não ter um documento que a maioria dos brasileiros pouco valoriza: o título de eleitor.

Como todo condenado com sentença penal transitada em julgado, Lincoln* tem seus direitos políticos cassados pela Constituição até que cumpra a totalidade de sua pena. Até lá, cumpre uma pena adicional que não consta de nenhuma lei: permanecer excluído do mercado de trabalho.

Enquanto durar a pena – mesmo em regime aberto ou semi-aberto –, todo cidadão condenado fica impedido de obter um título de eleitor. E, sem o documento, não conseguem regularizar o CPF ou tirar uma carteira de trabalho. Esse efeito colateral das sentenças penais desafia as políticas públicas de ressocialização da população que ainda cumpre pena fora do presídio.

Para buscar uma solução para essas pessoas, o Programa Justiça Presente, parceria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, organiza junto aos governos estaduais uma rede nacional de centros de apoio a egressos e a seus familiares. É o Escritório Social, que reúne órgãos do estado e profissionais que prestam serviços a populações vulneráveis. Nele, um egresso é orientado a solicitar ao cartório eleitoral uma Declaração de Direitos Políticos Suspensos. E, com este documento, algumas empresas realizam a contratação.

Ficha suja

A rotina de “bicos” que Ricardo* vivia desde que deixou a prisão, em 2018, iria terminar quando recebeu a chance de trabalhar em uma empresa multinacional em sua cidade, Sumaré, na região metropolitana de Campinas (SP). A esperança durou até perguntarem por que motivo seu título de eleitor constava como bloqueado. “Aí a gente fala a verdade, né?”

A regularidade das despesas, como o aluguel da casa onde vive com esposa e dois filhos, contrastam com a instabilidade do trabalho. Em um deles, foi demitido por um motivo que até hoje lhe soa mal-explicado. “Trabalhei um tempo de segurança em um posto de saúde que estava em reforma, mas me demitiram com a desculpa que eu faltava ao serviço”, conta o homem de 38 anos. Caso não consiga que a Justiça lhe reduza a pena – “já perdi um recurso” –, está condenado à informalidade até 2037.

O coordenador do Justiça Presente em Minas Gerais, Lucas Miranda, que atuou dois anos no serviço estadual que atende aos egressos no estado, explica que essa é apenas a face burocrática do limbo profissional em que a pessoa entra ao deixar a vida no cárcere. “O egresso deveria ter condições de exercer cidadania. Afinal, os direitos políticos são para se candidatar ou votar? É uma espécie de ficha suja, limita o acesso ao emprego, pois o título regularizado é uma condição para estar empregado.”

Além de, muitas vezes, o preso sair da prisão sem documentos comuns, como RG e certidão de nascimento, a distância do local de trabalho para a casa albergue – no caso de regime semi-aberto – e o horário de recolhimento também atrapalha. “Pela sentença, o preso tem de estar no albergue até as 19 horas. Mas aqui em Belo Horizonte, por exemplo, é muito difícil percorrer esse trecho do centro para a periferia nos horários de pico.”

Soluções administrativas

Para a diretora de Atenção ao Egresso e Família da Secretaria de Administração Prisional de São Paulo, Carolina Maracajá, é preciso apelar à sensibilidade social do setor privado. “[É preciso] conscientizar as empresas referente à importância desta responsabilidade social, pois a falta de emprego do egresso gera reincidência criminal”, afirma. Ela propõe cotas para os egressos nas empresas com o Selo de Qualidade ISO 26000, norma internacional com diretrizes em responsabilidade social, assim como a criação de incentivos fiscais quem os contratarem.

Já a coordenadora da Diretoria de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional de Minas Gerais, Francine de Paula, propõe uma saída administrativa para o impasse. “Embora legalmente a condenação criminal gere a suspensão dos direitos políticos deste público específico, o acesso à primeira ou à segunda via do título eleitoral não deveria ser impossibilitado. Dessa forma, portando tal documentação, a pessoa egressa do sistema prisional poderia participar dos processos seletivos nos quais o título é exigido, seja para se cadastrar para concorrer a uma vaga, seja para contratação efetiva.”

Judicialização

Para tentar uma solução judicial, a Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP) examina frequentemente casos de pessoas que ainda cumprem pena e pedem para trabalhar, mesmo sem o título eleitoral. Quando pertinente, o órgão recorre ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), onde as câmaras de direito penal julgam recursos que pedem o reconhecimento da extinção da punibilidade.

No entanto, o resultado nem sempre é favorável. O entendimento dos magistrados a respeito do impasse justifica a estratégia da Defensoria de buscar o direito ao trabalho de cada preso, individualmente, e não por meio de um instrumento que resulte em uma decisão com repercussão geral. “Não se habilita a ser repercussão geral nem Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, porque não é tema pacificado. Como ainda está muito disputado, temos um risco de recebermos uma decisão em contrário”, explica o defensor público Thiago de Luna Cury, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da DPE-SP.

Perspectivas

Enquanto não conseguem voltar ao mercado de trabalho, os egressos ouvidos na matéria se dividem entre frustrações, nostalgia, expectativas e pequenas vitórias. Aos 35 anos de idade, pai de um filho de cinco anos e esposo de uma mulher presa, Geraldo* conta com a ajuda da tia do menino para ajudar nas despesas da casa da mãe, onde mora, na periferia de Belo Horizonte. “De vez em quando, faço uma reforma de piscina, de uma sauna, mas na época de chuva, falta interesse. Fiz o cadastro do Bolsa Família, só que tem uma fila de 5 mil pessoas que vão analisar antes da minha. Não tem previsão de resposta.”

Geraldo* lembra que era mais fácil arrumar emprego dentro da prisão. Enquanto cumpria pena no regime fechado, trabalhava em uma empresa de embalagem. “Fazia contagem, era responsável pela equipe de colagem de sacolinhas, cerca de 15 pessoas. Contabilizava os lotes de 50 e botava nos pallets. Enchia o caminhão que levava os pacotes.”

A falta do título de eleitor atrapalhou João* a se matricular em cursos de capacitação profissional, como os do Sistema S. Mesmo assim, não desanima. Faz planos. Tem uma entrevista de emprego em uma fábrica que faz colchões e camas. “O meu primeiro salário eu ajudaria meu pai em casa.”

Ricardo* sonha com um trabalho “fichado” na empresa onde opera uma máquina que faz galões para armazenar produtos químicos. “O dono está tentando me registrar”, afirma. Lincoln* distribui currículos em toda a região de Pereira Barreto. “Envio pela internet, cadastro no site, mas gosto de ir pessoalmente no RH da empresa. Já viajei até 40 quilômetros por uma vaga”, conta. Em fevereiro, começou os trâmites para obter seu primeiro título de eleitor. No dia 11 de fevereiro, esteve no cartório eleitoral da cidade e fez seu registro biométrico para passar a constar do Cadastro Nacional de Eleitores do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

(*) Nomes de egressos alterados para manter a privacidade

Manuel Carlos Montenegro

Agência CNJ de Notícia