Lançamentos de livros acontecem todos os dias. Mas lançar uma obra dentro de um presídio de alta segurança, escrita por quem cumpre pena, é algo incomum. Foi o que ocorreu na manhã de sexta-feira, 8 de agosto, no Complexo Penitenciário do Estado de Santa Catarina, em São Pedro de Alcântara. O evento reuniu familiares dos autores e autoridades dos três poderes. Entre os 15 detentos que assinam o livro “Ética e Prisão”, da Giostri Editora, está Luciano, 41 anos, técnico de computadores com experiência em venda de imóveis e na construção civil, que hoje cursa Tecnologia de Gestão em Negócios Imobiliários.
Ao ser perguntado por que embarcou nesse projeto, Luciano responde: “Sempre gostei de ler e escrever, e queria que as pessoas ouvissem o que eu tenho a dizer. Escolhi falar sobre a lei divina e a lei dos homens, sobre o que é certo e errado e, no final, deixei um ‘papo reto’ para os três poderes. Acredito que o Brasil só vai avançar quando acabar a corrupção e quando o Estado ocupar o espaço que é dele — não invadindo a periferia com violência, mas com educação e saúde —, assumindo o papel que já deveria ter na sociedade e provendo a população do que ela realmente precisa. O vácuo do Estado abre espaço para a criminalidade que tem seduzido muitos dos jovens brasileiros.”
O livro “Ética e Prisão” faz parte do projeto “Mentes Literárias — da magia dos livros à arte da escrita”, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O objetivo é ampliar o acesso à leitura, à escrita e à cultura para pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional. O idealizador desta ação, que percorre o Brasil, é o conselheiro José Rotondano, desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).

Presente no lançamento, ele destacou que o Mentes Literárias integra o esforço do CNJ para garantir educação e trabalho como eixos centrais da reintegração social. “Nosso objetivo é que cada pessoa saia do sistema prisional com seus direitos respeitados, preparada para recomeçar — com educação, qualificação profissional e oportunidade de trabalho. Queremos evitar a repetição das violações, garantindo que esses homens e mulheres sejam recebidos como os cidadãos que continuam sendo, mesmo após o cumprimento da pena.”
Na mesma linha, o desembargador Roberto Lucas Pacheco, presidente do Grupo de Monitoramento e Fiscalização dos Sistemas Prisional e Socioeducativo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (GMF/TJSC), ressaltou que a ressocialização é fundamental para quebrar o ciclo de encarceramento e reincidência. Para ele, não basta criar novas vagas no sistema prisional; é necessário oferecer aos detentos novas perspectivas, especialmente por meio do trabalho e da leitura. Pacheco destacou que o evento mostra como o acompanhamento próximo e a execução de projetos bem estruturados podem transformar a realidade das unidades. “A remição pela leitura é importante, no entanto mais importante do que a própria remição são os novos horizontes que se abrem com ela”, afirmou.
Reflexões profundas
Se não fossem as grades, o Complexo de São Pedro de Alcântara não pareceria um presídio. À primeira vista, remete à rotina de uma fábrica com diversos trabalhadores uniformizados. Dos 1.318 internos, cerca de 500 trabalham diariamente em convênios com empresas privadas e prefeituras, em atividades que vão da montagem de equipamentos eletrônicos à produção agrícola, e passam por serviços de metalurgia, embalagens e alimentação. Mas é também um presídio de alta segurança, que abriga alguns dos presos de maior periculosidade e com as penas mais altas do litoral catarinense.
No salão onde ocorreu o lançamento, os detentos participaram de uma roda de conversa sobre “Aprisionadas Lágrimas de Homens”, do desembargador João Marcos Buch, do TJSC. Cada um apresentou sua leitura da obra e destacou os aspectos que mais o tocaram. As intervenções mostraram um nível de análise e sensibilidade que impressionou as autoridades. Um deles destacou que o livro trouxe à tona “a ética da justiça e a empatia” e reforçou a esperança de que o sistema prisional seja visto como instrumento de reforma, não apenas de castigo.
Outro observou que a obra, construída a partir de histórias reais com nomes fictícios, revela que há juízes dispostos a ouvir e a projetar caminhos de ressocialização — e que esse olhar não está isolado. Houve quem identificasse nos relatos lembranças pessoais, como a dor de não poder se despedir de um familiar, e quem confessasse ter mudado a forma de ver a vida a partir da leitura, descobrindo um interesse que antes não tinha pelos livros. Para muitos, a escrita do desembargador Buch mostrou que, mesmo diante de limitações, é possível exercer empatia, reconhecer histórias e inspirar mudanças.
O sociólogo e policial penal Everaldo Carvalho, mestre em Educação e ex-diretor de unidade prisional, guiou a roda de conversa. Durante alguns dias, ele coordenou um estudo dirigido no qual os detentos discutiram técnicas narrativas, contexto prisional e as conexões da obra com suas próprias trajetórias.
Ele explica que, nas oficinas, convivem participantes em diferentes estágios de leitura, desde quem está começando até quem já cursa o ensino superior, e que a metodologia busca contemplar todas as vozes e interpretações. “O mais importante não é só interpretar o livro, mas contextualizar o que ele significa para o momento que eles vivem agora e para o futuro que desejam construir”, disse. Para Everaldo, o ponto de virada acontece quando os internos ganham confiança para se expressar. “É aí que as coisas começam a fluir e percebemos o quanto a educação pode abrir caminhos.”
Pena Justa
O projeto Mentes Literárias faz parte do Pena Justa, uma ação nacional sem precedentes voltada ao enfrentamento da crise no sistema prisional brasileiro, onde 1,5 milhão de pessoas cumprem pena. O objetivo é encontrar soluções para os principais desafios do sistema carcerário, como superlotação, infraestrutura precária, falta de atendimento médico adequado, deficiências na gestão processual dos apenados e condições insatisfatórias de higiene e alimentação.
Por meio de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o STF reconheceu a existência de violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões brasileiras e classificou a situação como um “estado de coisas inconstitucional”. A partir daí, impôs obrigações ao Estado brasileiro para garantir a efetividade de direitos fundamentais.
Neste sentido, mesmo reconhecendo que ainda há muito a avançar, o Estado de Santa Catarina é referência quando se fala em sistema prisional. Para a secretária de Estado da Justiça e Reintegração Social, Danielle Amorim Silva, o desafio e a solução cabem na mesma fórmula: “Educação, trabalho e segurança precisam andar juntos para que a reintegração social aconteça de forma efetiva”.
Novos horizontes
Depois do lançamento e da roda de conversa, o juiz Rafael de Araújo Rios Schmitt, integrante do GMF/TJSC, ressaltou que o papel de ressocializar não pertence apenas ao Judiciário, mas envolve todos os poderes e a sociedade. Ele lembrou que a unidade de São Pedro de Alcântara já desenvolvia ações educativas, como o projeto Despertar a Leitura, e agora ganha com a chegada do Mentes Literárias. “É muito significativo termos em mãos um livro escrito por pessoas privadas de liberdade”, afirmou. Para ele, iniciativas assim mostram que os internos têm potencial de mudança e que a presença das famílias no evento reforça esse caminho. “Educar é um ato de amor e de cuidado — e ver esse apoio e essa transformação acontecendo aqui toca o coração.”
Na roda de conversa, Luciano, mencionado no início como um dos autores, disse que o projeto Mentes Literárias foi um marco em sua vida. Para ele, a educação é o caminho para a mudança. “Não apenas a educação formal, mas também aquela que vem quando você lê um livro e adquire conhecimento. A leitura nos transforma. A partir dela, conseguimos interiorizar o que está nas páginas e mudar por dentro”, afirmou.
Além dos citados, ocuparam o local de honra do evento a coordenadora do projeto Mentes Literárias, juíza Rosemunda Souza Barreto Valente; a juíza Janiara Maldaner Corbetta, presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC); a juíza da Vara de Execução Penal da comarca de São José, Liana Bardini Alves; o promotor João Carlos Teixeira; o prefeito de São Pedro de Alcântara, Charles da Cunha; a presidente da Câmara de Vereadores, Terezinha Kuhn; o advogado Wiliam Shinzato, representando a OAB/SC; e o defensor público Cristian da Silva.
Colônia Penal Agrícola de Palhoça
Na Colônia Penal Agrícola de Palhoça, a 10ª edição do projeto “Mentes Literárias: da Magia dos Livros à Arte da Escrita” ocorreu no período da tarde desta sexta-feira, com a presença do conselheiro do CNJ e desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) José Edivaldo Rocha Rotondano; do corregedor do Foro Extrajudicial do TJSC, desembargador Artur Jenichen Filho; e do supervisor do GMF/TJSC, desembargador Roberto Lucas Pacheco, entre outras autoridades. Inserido no plano Pena Justa, o projeto tem a finalidade de superar o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário no país.
Na primeira oficina, o professor Everaldo Jesus de Carvalho coordenou a roda de leitura com 11 apenados sobre o livro de contos “Insubmissas lágrimas de mulheres”, de Conceição Evaristo. “Os contos foram realmente muito profundos, levando em consideração o assunto que é abordado no livro. Abordamos muitos assuntos em relação ao preconceito, muitas coisas que ocorrem com o ser humano, não só com a mulher em si, apesar do foco ser esse, mas também com o ser humano como um todo”, disse o apenado Marlon.
O apenado João explicou que o livro trata da violência contra as mulheres. “O livro fala sobre as mulheres negras violentadas. O ponto alto é a narrativa de famílias envolvidas em histórias reais. Nós conseguimos absorver toda a temática do livro, foram histórias envolventes em que a gente consegue imaginar a dor da família”, afirmou.
Na sequência, o editor Alex Giostri apresentou os 14 apenados que escreveram o livro “As drogas e o sistema prisional”. A obra é resultado das oficinas literárias realizadas na unidade prisional. Cada apenado contou parte da sua história de vida e como as drogas foram as responsáveis diretas ou indiretas pelo seu envolvimento na vida criminal.
“A maioria que está aqui usou ou ainda faz uso da droga. Nós todos sabemos o quanto é difícil largar a droga, deixar de usar. Quem lê o livro vai ver que são histórias de pessoas, de seres humanos, mesmo estando presos. A gente pensou em deixar um pedacinho para tentar mudar não a nós agora, mas o futuro das nossas crianças e adolescentes”, contou o apenado Gean.