A tragédia em Blumenau, que, há pouco mais de dois anos, causou comoção em todo o país, foi o início de uma jornada pela paz na pequena Bocaina do Sul, cidade onde vivem 3.400 habitantes. Um mês após o assassinato de crianças em uma creche blumenauense, a população do município da serra catarinense localizado a 200 km de distância dali mobilizou-se pela construção de uma cultura de paz, com o apoio do Poder Judiciário.
A ideia de utilizar a Justiça Restaurativa para a promoção do diálogo partiu do Padre José Roberto Moreira, 59, da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem. Ele conheceu a experiência em 2016, quando pároco em Lages, e considerou ser um caminho para o processo de cura das feridas abertas pelo trauma coletivo. “Senti que, além da comoção, precisávamos ter uma reação”, afirma o religioso, cuja proposta foi logo bem recebida pelas lideranças locais.
“Sem descaracterizar a tragédia, buscamos dar uma perspectiva mais humanizadora, de modo que as pessoas pudessem falar, expressar os sentimentos — uma possibilidade de caráter até terapêutico”, descreve. A prática cristalizou-se na cidade que, no ano passado, reuniu integrantes das secretarias da Educação, da Saúde e da Assistência Social em um seminário para a vivência da resolução não violenta de conflitos.
Em agosto, com a proximidade das eleições, a comunidade considerou importante a realização de um trabalho de Justiça Restaurativa com representantes das três legendas que disputaram a Prefeitura. As vivências também contaram com o apoio do Núcleo de Justiça Restaurativa de Lages, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
“É claro que não estávamos fora do contexto nacional e internacional de polarizações e violência política. E todos os candidatos aderiram de imediato à proposta. Isso criou uma expectativa na comunidade e, pela primeira vez, tivemos um processo eleitoral sem nenhuma ocorrência, segundo a avaliação dos agentes de segurança pública”, relata o padre.
De acordo com ele, hoje, seja no Executivo ou na Câmara dos Vereadores, o clima ameno e respeitoso predomina, a despeito de diferenças ideológicas. “Com a Justiça Restaurativa, o Judiciário cumpre o seu papel, com a possibilidade de decidirmos, pelo diálogo, as demandas da própria sociedade”, considera.
Marco histórico
Instituída a partir da Resolução n. 225/2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Política Nacional de Justiça Restaurativa completa nove anos neste sábado (31/5). “A resolução estabeleceu um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, diretrizes e procedimentos para implementação da Justiça Restaurativa em todos os ramos da Justiça”, afirma o coordenador do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa e conselheiro do CNJ, Alexandre Teixeira.
De acordo com o conselheiro, a norma não apenas autorizou, mas institucionalizou uma prática que transcende a resolução de conflitos, visando à transformação das relações sociais, institucionais e comunitárias. “A norma define a Justiça Restaurativa como uma abordagem que vai além do mero tratamento de litígios: trata-se de um compromisso com a cultura de paz, com atenção às violências estruturais, à reconstrução de vínculos e ao reconhecimento de responsabilidades”, enfatiza.
A resolução também prevê a criação de comitês gestores e núcleos em cada tribunal, a capacitação de facilitadores e o incentivo ao diálogo interinstitucional. Esses fundamentos criaram as condições normativas e estruturais para que as práticas se expandissem e se tornassem políticas públicas permanentes no Judiciário brasileiro.
Diálogo nas instituições
Considerado o ano da Justiça Restaurativa nas Instituições, 2025 torna-se um marco importante no amadurecimento da política já institucionalizada com sucesso pelos tribunais brasileiros e para além das cortes, como no caso catarinense.
Para o conselheiro, o CNJ, ao inaugurar oficialmente essa agenda, sinalizou que a Justiça Restaurativa deve ser incorporada de forma transversal às práticas institucionais, e não apenas como uma alternativa processual.
“Essa iniciativa visa à construção de relações mais respeitosas e ambientes organizacionais mais acolhedores, com impacto direto na qualidade da prestação jurisdicional. Se, em 2023, o foco foi a introdução da Justiça Restaurativa nas escolas, agora ela é levada ao interior do próprio sistema de justiça, como forma de coerência institucional e transformação cultural”, considera.
Na opinião dele, essa priorização busca demonstrar que as instituições são organismos sociais e que a convivência institucional de qualidade é um elemento estratégico para o aprimoramento da gestão pública. “O marco de 2025, assim, funciona como catalisador de práticas restaurativas em todo o país, incentivando adesão, formação e consolidação da política pública restaurativa”, resume.
Iniciativas
Ao longo do ano, o CNJ tem realizado ações com foco interno em convivência institucional, círculos de diálogo, oficinas de escuta ativa e fortalecimento de vínculos entre os servidores e planejou um conjunto abrangente de atividades para a disseminação da prática nas instituições do sistema de justiça.
Ao longo do ano, são previstos círculos de diálogo entre magistrados, servidores e demais atores do sistema; oficinas de comunicação não violenta e escuta ativa; fóruns interinstitucionais voltados ao aprimoramento da convivência organizacional; formulação de políticas institucionais baseadas em princípios restaurativos; e fortalecimento da formação de facilitadores e implementação da JR como prática estrutural.
Além disso, o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário (CEAJud) oferece cursos autoinstrucionais sobre Justiça Restaurativa com base na Resolução CNJ n. 225/2016, com foco em práticas restaurativas como ferramentas para a construção de ambientes mais cooperativos e empáticos.
Texto: Mariana Mainenti
Edição: Sarah Barros
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias