Justiça Itinerante: juízes vão até os ribeirinhos da Amazônia

Você está visualizando atualmente Justiça Itinerante: juízes vão até os ribeirinhos da Amazônia
Compartilhe

Juízes e servidores da Região Norte do País viajam por horas em barcos ou aviões para levar à população ribeirinha o acesso à Justiça. 

Pelos rios da Amazônia, equipes do Judiciário atendem milhares de pessoas que vivem em comunidades com os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do País – como é o caso do arquipélago de Bailique, no Amapá, ou Jordão, no Acre. Em todas essas expedições, a Justiça atua muito além dos processos: promove ações de cidadania básica e prevenção de conflitos.

Para a conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Daldice Santana, presidente da Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania do órgão, não são raras as vezes em que se pode identificar que a população é mais carente onde há mais distanciamento físico do Poder Judiciário e de outros serviços públicos.

“O natural seria a presença do juiz e demais servidores onde há mais pessoas necessitadas, mas assim não ocorre, pois várias delas nem sequer sabem que têm direito, quanto mais que podem exercê-lo. Dessa forma, não é gerada demanda por serviços públicos, o que faz com que os mapas estatísticos apontem falsa impressão de satisfação de direitos”, afirma Daldice Santana.

A participação de magistrados na Justiça Itinerante, uma política incentivada pelo Conselho, é regulamentada pelo Provimento n. 20/2012 da Corregedoria do CNJ.

Entre as metas para 2017, estabelecidas pela Corregedoria, a de número seis determina que os órgãos das Justiças Estadual, do Trabalho e Federal deverão estabelecer, semestralmente, ações conjuntas de cooperação nacional por meio da implementação de projetos comuns e/ou de justiça itinerante, inclusive na área da infância e juventude.

“A Justiça Itinerante é movida pela criatividade, pelo empenho e pela dedicação de juízes, servidores públicos e colaboradores, representando a ideia, como diria a ministra Cármen Lúcia [presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ], de um ser humano cuidando de outro ser humano. É um trabalho que dignifica a função de todas as pessoas envolvidas”, diz a conselheira Daldice.

De toga e cocar

Os habitantes da pequena cidade de Jordão, situada no Acre, na fronteira com o Peru, fazem fila na Câmara dos Vereadores para assistir aos julgamentos do tribunal de júri. Além dos réus, promotores e testemunhas, lá dentro está uma juíza de toga e com o adereço de uma etnia indígena, gesto simpático em uma cidade que tem 60% desta população. 

files/conteudo/imagem/2017/07/f54a33d8d19b4985d9cfcaea7d40302f.jpgMagistrados na Câmara na dos Vereadores de Jordão/AC, onde foi instalado o tribunal de júri.

Com o sétimo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, o município de Jordão depende do esforço de magistrados de Tarauacá, cidade que fica a cerca de uma hora e meia de avião, para ter acesso aos serviços da Justiça.  

Em fevereiro, ao assumir como juíza substituta a Vara de Tarauacá, no Acre, a juíza Ana Paula Saboya foi avisada de que encontraria ali, segundo ela, “uma afronta aos direitos humanos, gente presa esperando mais de três anos para ser julgada”. E o maior empecilho para fazer os julgamentos era a impossibilidade de deslocamento dos réus presos para realização de sessões de júri. Os réus cometeram os crimes em Jordão, situado a mais de 570 quilômetros da capital Rio Branco, que não conta com vara de Justiça nem com presídios. Por isso, estavam presos no município de Tarauacá.

Além do custo muito alto da viagem dos presos de avião com escolta, o deslocamento de barco levaria quase dez horas navegando pelo Rio Tarauacá. Assim, o Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen/AC) informou à juíza que não poderia transportá-los e a oitiva por videoconferência não seria possível, porque a internet funciona de forma precária na região. “Isso fere o princípio da eficiência. Não julgamos, porque não temos como ir até lá e eles ficam indefinidamente presos”, disse a juíza.

Para garantir a realização das sessões do júri, com a concordância dos réus, a juíza se deslocou até Jordão, fez a oitiva de 25 testemunhas e apresentou os áudios aos réus, na presença de seus advogados. 

Dessa forma, foi possível dar continuidade ao processo e a juíza voltou à Jordão, desta vez acompanhada de sete dos 13 réus para realizar as sessões de júri. Os crimes envolviam homicídio e estupro, quase sempre relacionados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas. 

“É um trabalho muito gratificante, trabalhamos mais de 12 horas por dia e a sociedade se sente assistida”, diz a juíza Ana Paula. Como resultado da ação de Justiça Itinerante, quatro réus foram absolvidos no júri e ficaram em Jordão, junto de suas famílias. “Vou ter que voltar lá mês que vem. A criminalidade aumentou e já temos novos réus de Jordão presos em Tarauacá”, diz a juíza, que após atuar 28 anos como engenheira em Goiás, mudou para a carreira de magistrada e tomou posse aos 47 anos. 

Mutirão fluvial no Marajó

No início de junho, uma equipe formada por magistrados e servidores da Justiça Federal do Pará e do Amapá realizou uma expedição para levar serviços judiciários à população de seis municípios carentes da Ilha do Marajó/PA: Soure, Muana, Curralinho, Breves, Portel e Afuá. Durante treze dias, a bordo de um navio cedido pela Marinha brasileira, foram julgados 1.660 processos, entre ações previdenciárias e assistenciais, que representaram um incremento de renda na região de mais de R$ 1,5 milhão de reais. 

Apesar da demanda elevada de processos, os juízes se depararam com uma população distante não só dos serviços judiciais, mas desinformada de seus direitos básicos para exercer a cidadania. De acordo com a Juíza federal Alcione Escobar da Costa Alvim, que participou da ação, havia, por exemplo, trabalhadores rurais e pescadores que não sabiam como comprovar a sua atividade e, sem isso, não teriam direito a benefícios como a aposentadoria. Na expedição, foram feitos 2.433 atendimentos pela equipe do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a equipe de saúde da Marinha realizou 10 mil atendimentos médicos e odontológicos. “A desinformação gera o afastamento do direito, da possibilidade de prova de sua condição”, diz a juíza Alcione.

O modelo de atendimento utilizado pelo mutirão itinerante na Ilha do Marajó é bem semelhante ao roteiro estabelecido para as demais expedições da Justiça na Região Norte. Há 20 anos, a Justiça Itinerante fluvial do Amapá percorre as comunidades do interior do Estado para prestação de serviços judiciais.

Em março, a comitiva de cerca de 50 pessoas viajou 12 horas de barco de Macapá até a foz do Rio Amazonas, para alcançar o distrito de Bailique, que possui o pior IDH do País. Entre os serviços levados à população, estão a emissão de documentos, atendimento pelo Conselho Tutelar e Ministério Público, vigilância sanitária, orientação em saúde bucal e tratamento de água potável. 

O calendário para o segundo semestre, de acordo com o Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP), abarca, além de Bailique, outras comunidades como Igarapé do Lago, Congós, Curiaú, São Joaquim do Pacuí, Araxás, Marabaixo e Santa Luzia.

files/conteudo/imagem/2017/07/1729eaccda63e9de37011b00ac584eba.jpg

Combate ao escalpelamento

Em um dos atendimentos feitos na Ilha do Marajó, a juíza Alcione se deparou com um homem de cabelo muito branco que veio se informar de seus direitos. “Ele me contou que os cabelos dele ficaram assim no dia em que a filha dele, que seguia para a escola em um barco, sofreu um escalpelamento”, diz.

Nas águas paraenses, é frequente que em barcos pequenos, usados para transporte da população, o motor fique desprotegido, podendo puxar os cabelos de quem se aproximar.  

O acidente é tão comum que foi instituído o Dia Nacional do Combate ao Escalpelamento (29 de agosto) e o Pará se tornou pioneiro em implante de próteses auriculares (de orelhas). Na expedição de Justiça Itinerante, foram distribuídas coberturas de eixos de embarcação, além da divulgação da prevenção.

“A ação de itinerância teve em vista levar à comunidade do Marajó uma rede de proteção social que se torna mais um instrumento de prevenção e redução das inúmeras vulnerabilidades que atingem de forma contundente a infância e a adolescência”, diz a juíza Alcione.

Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias