Curso em Minas Gerais explora raízes e nuances da violência doméstica

Você está visualizando atualmente Curso em Minas Gerais explora raízes e nuances da violência doméstica
Arte: TJMG
Compartilhe

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), por meio da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef) e da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), preparou cursos voltados para a conscientização quanto a aspectos que favorecem o desequilíbrio nas relações humanas. Por trás da ação educacional, em parceria intitulada “Unindo esforços contra a violência doméstica e familiar”, está a percepção de um fenômeno complexo, atravessado por questões de ordem sexual, social, econômica, política e racial, que tem grave impacto na coletividade e viola direitos humanos.

Além de trazer um olhar transdisciplinar sobre o tema, as formações questionam noções preconcebidas e têm o objetivo de sensibilizar magistrados e levá-los à reflexão, bem como preparar servidores para o atendimento de vítimas e agressores e o apoio à articulação da rede nas comarcas. As atividades serão ofertadas para todos os juízes que atuam nas varas com competência para aplicar a Lei 11.340/2006.

O curso foi credenciado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e reuniu, na primeira turma nesse formato, 200 participantes. Já o módulo para servidores e servidoras, devido à procura elevada, entrará para a grade permanente da Ejef, e será reaberto a cada vez com oferta de 1.500 vagas.

A primeira edição do curso, realizada em outubro de 2020, teve participação voluntária de 31 magistrados e magistradas. O curso oferecido à equipe em novembro recebeu 100 inscrições, com vagas que se esgotaram em 30 minutos.

Olhar diferenciado

A integrante da Comsiv e curadora dos cursos, juíza Lívia Lúcia de Oliveira Borba, defende que não é possível falar desse flagelo nos lares e famílias sem tocar em elementos como machismo, preconceito, discriminação e racismo. Além disso, é importante considerar o histórico dos envolvidos, pois o ciclo de agressões é extenso, e começa com palavras e atitudes. “A violência doméstica tem um contexto afetivo e emocional. É diferente de um crime como roubo, em que vítima e ofensor podem nem se conhecer e não manter nenhum convívio. É necessário que o operador do direito tenha essa consciência. Não é simples para a mulher se livrar dessa situação.”

Lívia explica que a iniciativa do TJMG precedeu a edição da Recomendação 79/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A norma dispõe sobre a capacitação de magistrados e magistradas para atuar em unidades jurisdicionais com competência para aplicar a Lei Maria da Penha. Para a curadora dos cursos, essa preparação fará diferença na prestação oferecida aos cidadãos. “A proposta para juízes está calcada no julgamento com perspectiva de gênero. Buscamos trazer para eles uma parte teórica diversificada, com fundamentos de várias áreas do conhecimento, capaz de situar o problema à luz da ciência, acompanhada de uma dimensão prática. Também enfatizamos a importância da rede de enfrentamento à violência doméstica nas comarcas.”

Para as demais equipes do Tribunal, o foco é a acolhida da pessoa que vai até a secretaria dos fóruns, com sua história e experiência. “O contato com os relatos da vítima e com os agressores pode ser pesado. Priorizamos a etapa de atendimento e o auxílio na estruturação da rede de enfrentamento. O interesse foi muito grande e nos motivou a incluir a formação de modo contínuo.”

Aprendizado partilhado

A juíza Cibele Mourão Barreto, tutora do curso e titular da 2ª Vara Criminal, de Execuções Penais e de Cartas Precatórias Criminais de Itabira (MG), considera a experiência enriquecedora, motivadora e desafiadora. “Foi maravilhoso ter a oportunidade de aprender com colegas que lidam com a temática, e gratificante poder contribuir para a construção da reflexão e do conhecimento de todo o grupo sobre a importância do processamento e julgamento das ações penais com perspectiva de gênero.”

Para a magistrada, que também integra a Comsiv, é intrigante observar a mesma situação de desigualdade em comarcas tão distintas, com suportes e realidades tão díspares. As diferenças ocorrem nas respostas e serviços disponíveis, em cada município e comarca, para prevenir e reprimir os crimes e, ainda, acolher e atender a parte vulnerável. “Vítimas e agressores têm perfil bem homogêneo, pois ambos se inserem no ciclo da violência produzido pelo relacionamento abusivo. Todos fomos educados em uma sociedade machista e patriarcal. A resistência em identificar e coibir determinados estereótipos está arraigada em muitos de nós, independentemente do grau de instrução.”

Cibele ressaltou que uma das propostas do curso foi motivar os colegas a “serem protagonistas de uma transformação social, atuando para além dos autos”, como articuladores de uma rede de proteção à mulher. “As respostas da primeira turma enchem-me de esperança: identificamos um movimento de interesse pelo tema, de maior valorização desta atribuição que nos foi confiada pela Lei 11.340.”

De acordo com a juíza, há muitas ações concretas do Poder Judiciário para reverter o cenário adverso. Porém, apenas a mudança de mentalidade dos operadores do Direito trará uma verdadeira alteração do panorama nacional. “Por isso são tão importantes as iniciativas do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid) e da Comsiv, que procura capacitar equipes e incentivar os magistrados que já se destacam por projetos eficientes de prevenção e combate à violência contra a mulher.”

Divisor de águas

A juíza Daniela Rodrigues Marota Teixeira, participante da primeira edição do curso, classifica a capacitação como “incrível”. “Lançou luz inédita nessa temática e significou uma releitura da Lei Maria da Penha sob uma nova lente de análise. Passei a atentar para aspectos que até então não percebia, ou não entendia com tanta profundidade.”

A magistrada da Vara Criminal e de Execuções Fiscais de Visconde do Rio Branco (MG) conta que hoje se sente mais preparada para enfrentar esse tipo de demandas e mais motivada. “Sinto que a minha prestação jurisdicional evoluiu muito, amadureceu e ganhou contornos mais humanos e mais próximos da realidade da violência que ocorre no ambiente familiar. Para mim, a formação foi extremamente proveitosa.”

O mergulho deu à juíza a capacidade de ver de outro ângulo. “Hoje, vejo a violência doméstica como um problema endêmico que atinge toda a sociedade brasileira e requer uma atuação jurisdicional mais reflexiva e efetiva. Temos que aprender, como juízes, a lidar com as causas, porque os processos se repetem e a gravidade dos fatos aumenta. Se trocamos as lentes, temos possibilidades de atacar diretamente a raiz. Assim, podemos buscar diminuir a demanda e trazer a paz social.”

Apesar de reconhecer que há muito a aprimorar, ela ressalta que os debates e provocações oferecem instrumentos. “O curso me fez mudar decisões cujo padrão eu seguia há anos, passei a dar prioridade a esses casos e a estudar o tema. Chamei os municípios que compõem a comarca e estou me aventurando a criar a rede de atendimento e enfrentamento à violência doméstica, inclusive com a estruturação de grupos reflexivos. O projeto está pronto e em breve o implantaremos. Tenho certeza de que colheremos bons frutos.”

Mudança de paradigmas

O oficial de Justiça Rodrigo Monserrath de Araújo, lotado em Ribeirão das Neves (MG) há 15 anos, enfatiza que o curso foi um marco para mudança de paradigmas no atendimento das mulheres vítimas de violência familiar e doméstica, com imediata aplicação prática e reflexão sobre a própria atuação. A comarca apresenta índices elevados dessas ocorrências e muitas famílias em vulnerabilidade social.

Segundo o profissional, o que o atraiu mais na formação, inicialmente, foi a abordagem histórica do problema, condizente com sua graduação universitária, com suas leituras da historiadora Mary del Priore e o contato com a obra dos pintores estrangeiros que viajavam pelo Brasil colônia, como Debret e Rugendas. Mas esse foi apenas o ponto de partida para que o saber da labuta diária fosse reconfigurado.

“Esse tratamento mostra a origem desse tipo de agressão e nos ajuda a compreender o presente a partir do passado. A história é uma espiral, feita de avanços e retrocessos. O fenômeno da violência doméstica, para o qual passei a dar uma atenção mais aprofundada, mostra que, embora muitos pensem que o Brasil é liberal e democrático, nossa trajetória é marcada por racismo, machismo, misoginia, homofobia, elitismo e vários outros preconceitos”, defende.

Ele admite que não tinha uma avaliação da dimensão do fenômeno, embora o identificasse dentro de sua própria família. “Minha visão a respeito era rasteira. Desde quando comecei a entregar mandados judiciais, em torno de 2007, noto uma evolução enorme na atuação do Judiciário. No começo, eu não via esses episódios como algo global nem como um assunto de natureza tão delicada.”

O curso, segundo o servidor, deu a ele a percepção de riscos como a revitimização, e de mitos a serem derrubados, como o da “democracia racial”. Esses estudos, aos quais ele associou, ainda, a bagagem da justiça restaurativa e da conciliação e da mediação, ampliaram e qualificaram sua conduta no trabalho. Foi possível, assim, desenvolver a empatia, e não só em relação à vítima, buscando tornar o ato judicial menos doloroso para as partes.

“Não é só retirar do lar. Nesse momento de catarse, que vem acompanhado de raiva, tristeza e choro, a mulher relata o histórico de agressões. A escuta ativa por parte do oficial de justiça é um empoderamento e uma virada de jogo para a ofendida. O agressor, por outro lado, tende a reagir de forma monossilábica, mas é importante deixar que apresente sua versão e dê alguma razão para sua conduta”, analisa.

Araújo destaca que há sempre dois lados, sendo necessário evitar pender para um deles, e dar chance de fala a cada um, para que o recrudescimento da hostilidade não piore a situação após a saída dos agentes públicos. “Um tratamento desigual pode provocar uma reação impensada e um mal maior. Além disso, há casos agravados por total dependência econômica, baixa autoestima, desinformação, famílias numerosas com apenas um provedor.”

Fonte: TJMG