Como um dos órgãos públicos mais engajados na luta contra a violência doméstica, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem sua história permeada por avanços e enfrentamento aos desafios no combate à violência contra a mulher no Brasil. Ao longo de seus 18 anos de existência, assumiu protagonismo ao abraçar a causa do combate à impunidade desses crimes e contribuiu para promover a visibilidade da questão.
Ao longo do tempo, se, por um lado, se consolidaram as políticas públicas em território nacional na luta pela proteção das vítimas, de outro, o país ostenta atualmente a posição de quinto país em que mais se matam mulheres no mundo. Apenas um ano após a criação do CNJ, foi promulgada a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), marco legislativo considerado uma das mais avançadas leis de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher do mundo. Com repercussão direta no Judiciário, a lei impacta até os dias de hoje a atuação de juízes e juízas e a elaboração e o aperfeiçoamento de políticas públicas.
Nesse período, além de ajudar na popularização da Lei Maria da Penha, o Conselho acompanha de perto a elaboração de ajustes legislativos para dar mais amparo às vítimas. Em 2020, por exemplo, com a pandemia de covid-19 e o confinamento compulsório de muitas vítimas com seus agressores em período integral, o país se viu às voltas com a escalada da violência doméstica.
Diante dos números crescentes, já em junho de 2020 – primeiro ano da crise sanitária –, o CNJ uniu-se à Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para lançar a campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica. Em pouco mais de um ano, a ação foi convertida em lei pelo Congresso Nacional, configurando-se em uma contribuição concreta na preservação da vida das brasileiras.
Outra iniciativa do Conselho, realizada anualmente desde 2007, a Jornada Maria da Penha congrega todos os atores que lidam com violência doméstica e familiar. A 17.ª edição do evento será realizada em 7 e 8 de agosto, no Ceará, estado onde nasceu Maria da Penha, e contará na abertura com a presença da presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber.
Ao longo dos anos, a Jornada auxiliou na implantação das varas especializadas nos estados da Federação; realizou, juntamente com os órgãos parceiros, cursos de capacitação para juízes e servidores; possibilitou a criação do Fórum Permanente de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), de modo a conduzir permanente e profundo debate da magistratura a respeito do tema, bem como incentivou a uniformização de procedimentos das varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher.
“Poucos temas tiveram uma evolução tão grande a partir de uma política judiciária quanto o enfrentamento da violência contra a mulher e, mais precisamente, o enfrentamento à violência doméstica e familiar baseada em questões de gênero”, afirma o supervisor da Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário, conselheiro Marcio Freitas, referindo-se à criação das varas de violência doméstica.
No momento em que o CNJ completa 18 anos, ele recorda que, menos de duas décadas antes da sanção à Lei Maria da Penha, ainda era comum se dizer no Brasil que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, expressão que não seria aceitável na atualidade. Ele ressalta que, apesar da mudança cultural, a violência doméstica continua a necessitar de um olhar diferenciado pelo Poder Judiciário.
Ciclo
“Na violência comum, como um furto ou alguém que é assaltado, a vítima não vai para casa dormir com o ladrão depois. Na violência doméstica, você tem uma situação em que há sonhos que foram investidos naquela relação, há uma pressão cultural no sentido de que é preciso tentar resgatar aquele relacionamento de alguma forma”, ilustra. “Muitas vezes, além da dependência que muitas vezes não é só psicológica ou emocional, mas também financeira, a mulher está envolta em uma situação da qual já não consegue sair”, analisa.
O conselheiro lembra que a violência doméstica possui um ciclo, em que o ápice é o momento da agressão, mas depois há uma reconciliação, o que dificulta o tratamento da questão. Nesse contexto, as medidas protetivas desempenham papel indispensável: “A Lei Maria da Penha foi uma lei extremamente inovadora quando, ao lado da prevenção e ao lado da repressão, que são características de todas as leis penais, colocou em relevo o aspecto protetivo, a proteção”. Segundo Marcio Freitas, mais de 70% das medidas protetivas de urgência solicitadas são resolvidas em 48 horas. No Distrito Federal, 20% delas são decididas em até duas horas após a denúncia.
Política Nacional
O conselheiro destaca que, de lá para cá, houve avanços como a Resolução CNJ n. 254/2018, que institui a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário. O normativo prevê a instituição de parcerias, no intuito de que as mulheres sejam acolhidas em vez de revitimizadas, para que possam romper com o ciclo de violência.
“Nós, CNJ, criamos também a figura das coordenadorias de violência doméstica junto aos tribunais, que têm por função, no âmbito local de cada estado, de cada tribunal de Justiça, ter um centro com recursos próprios, estrutura própria, para fazer esse trabalho não só de difusão, mas de soma, de congregar parceiros para que essa rede de atendimento possa realmente ser formada”, agregou.
Equidade de gênero
De acordo com o conselheiro, as desigualdades de gênero estão no centro do problema – e da solução. “A desigualdade que coloca a mulher em uma posição de inferioridade, de subalternidade, como se ela fosse de alguma forma homem – e isso a gente vê se refletir também na questão salarial, das oportunidades –, é algo que está intimamente ligado à violência doméstica”, apontou.
O Prêmio CNJ de Qualidade em 2024 terá como um dos critérios a especialização e a estruturação das varas em violência doméstica, segundo edital que está em fase de elaboração. A nova diretriz da premiação está alinhada com a Resolução CNJ n. 386/2021, pela qual os tribunais devem implementar centros especializados de atendimento às vítimas.
Além da implementação de centros especializados de atendimento às vítimas, as cortes estão avançando em parcerias no acolhimento às mulheres. Os Tribunais de Justiça de Goiás e do Distrito Federal firmaram parcerias com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, voltada ao atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica que tenham ficado com sequelas físicas, para que possam ser encaminhadas e submetidas gratuitamente a cirurgias plásticas reparadoras. A experiência já está sendo replicada em outras unidades da Federação.
Também previsto na Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário, o Programa Nacional Justiça pela Paz em Casa colocou, na agenda das unidades judiciárias, a obrigatoriedade de dar maior celeridade ao julgamento de processos que envolvam a violência contra a mulher no Brasil.
Nos meses de março, agosto e novembro, o CNJ coordena a realização da ação nas quais não somente as coordenadorias dos tribunais como as varas fazem eventos de conscientização, de difusão da lei, mas onde há também uma priorização na análise de causas de violência doméstica e de feminicídio. “São feitos esses esforços de julgamento, mutirões, para que os processos possam ser julgados e possam caminhar e tramitar e chegar à sua conclusão de forma mais célere”, afirma o conselheiro, para o qual os números do feminicídio são preocupantes.
Segundo ele, a base de dados dificulta a comparação histórica, na medida em que antes os assassinatos correlacionados ao gênero feminino não eram assim classificados, uma vez que é recente a alteração legislativa que definiu o feminicídio como homicídio qualificado de forma específica. “De alguma forma isso pode estar na raiz desse aumento, ele pode refletir não necessariamente uma piora, mas um melhor tratamento em termos de fidedignidade dos dados. Isso sendo colocado à parte, os números realmente são ainda muito altos. A gente tem uma taxa de feminicídio extremamente elevada. O Brasil é o quinto país do mundo onde, proporcionalmente, mais morrem mulheres”, aponta.
Desigualdade racial
Na opinião do conselheiro, o enfrentamento da situação passa pela melhor estruturação do poder público, para garantir a efetividade das medidas protetivas. “Do total das mulheres mortas em decorrência de feminicídio, só 3% tinham medida protetiva de urgência, o que mostra que a medida protetiva de urgência tem sido efetiva para evitar escalada”, diz.
O recorte transversal também aponta outras questões sociais por trás do indicador. “A redução da violência doméstica para mulheres brancas foi muito mais significativa do que para mulheres negras. Porque as mulheres negras estão muitas vezes em comunidades em que a polícia não chega e têm menos condições de chegar às instituições.”
Estas questões, acrescenta o conselheiro, vêm sendo acompanhadas pelo CNJ também em espaços de proposição como o Colégio de Coordenadores da Mulher (Cocevid) e o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), que nasceu durante a III Jornada Maria da Penha, realizada em 2009.
Texto: Mariana Mainenti
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias