“Quando eu estou triste, pego um livro e a tristeza passa”, conta Daniel*, adolescente em cumprimento de medida socioeducativa no Paraná. Para ele, participar de um clube de leitura na unidade foi mais do que uma atividade: foi a porta de entrada para novas experiências. Daniel integrou o Cria das Letras, projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Grupo Companhia das Letras, cuja etapa-piloto foi ocorreu em quatro estados desde janeiro de 2025 — Pará, Paraná, Pernambuco e Roraima. A nova etapa do projeto chegará a mais seis unidades da federação até o final do ano.
“Em um cenário em que 40% das unidades socioeducativas não contam com bibliotecas e uma em cada cinco não realiza atividades regulares de incentivo à leitura, o Cria das Letras é mais uma resposta à demanda por acesso à literatura no sistema socioeducativo. Ela se soma a projetos como o Caminhos Literários do Socioeducativo, que mobilizou 84 unidades socioeducativas das 27 unidades da Federação durante a quarta edição realizada em julho. Ambos os projetos são conduzidos com o apoio técnico do programa Fazendo Justiça.
“A leitura amplia repertórios, oferece novas perspectivas e valoriza as narrativas de cada adolescente. A cultura não pode ser um privilégio — é um direito — e dá a esses jovens o poder de repensar e reconstruir suas trajetórias e seu futuro”, resume o juiz coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Luís Lanfredi.
Para o desembargador Ruy Muggiati, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), a participação do estado no projeto-piloto do Cria das Letras veio com o potencial de trazer grandes benefícios aos adolescentes. “A leitura é um poderoso instrumento para ampliar a visão de mundo e desenvolver as capacidades cognitivas e socioafetivas. Ela também desperta a imaginação e a capacidade de sonhar e construir projetos de vida que dão sentido à nossa existência”.
Dos livros à vida
Nesta primeira fase do Cria das Letras, cada unidade recebeu 150 livros escolhidos a partir de formulários respondidos pelos próprios adolescentes. As equipes das unidades também passaram por uma formação realizada pela Companhia das Letras, voltada à qualificação da mediação de leitura. A capacitação abordou estratégias de escuta, seleção de livros, condução de rodas e valorização das narrativas juvenis, preparando os profissionais para transformar os clubes em espaços de encontro, expressão e construção de sentido.
No Paraná, os encontros foram conduzidos por uma equipe multidisciplinar, formada por agentes socioeducativos, psicóloga e assistente social. Com reuniões semanais, os adolescentes liam nos alojamentos e depois discutiam em grupo. A leitura do livro O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, foi destaque entre os participantes. “Comecei a gostar de ler com ele. Agora, quando estou com a mente cheia, pego o livro, leio e já melhora”, contou Daniel. Os encontros também estimularam a produção escrita. A partir da leitura de Extraordinárias, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza, os adolescentes escreveram cartas para as mulheres inspiradoras em suas vidas.
No Pará, a equipe pedagógica montou um ambiente acolhedor para os encontros, com tapetes, livros, lanches e dinâmicas interativas. O clube também foi espaço para produções artísticas, como ilustrações inspiradas nos livros. “A gente desenhou a nossa versão da história. Não era só ler, era viver aquele livro”, contou um dos adolescentes.
Em Pernambuco, o Cria das Letras funcionou na unidade feminina Santa Luzia, no Recife, e enfrentou o desafio da alta rotatividade de adolescentes. A mediação, conduzida pela gestora Karina, encontrou no livro Heroínas Negras Brasileiras, de Jarid Arraes, o ponto de virada: as jovens produziram cordéis, ilustraram suas próprias capas e se reconheceram como protagonistas de histórias de resistência.
Já em Roraima, o projeto foi incorporado desde o início ao Plano Individual de Atendimento (PIA), garantindo que a participação nos clubes fosse registrada como parte do percurso socioeducativo. Para estimular o interesse por títulos mais densos, a equipe adotou estratégias como a exibição de filmes antes da leitura, transformando o momento do clube em um espaço esperado da semana e de respiro dentro da rotina da unidade.
Agência CNJ de Notícias
