CNJ 20 anos: Justiça desbrava o Brasil para alcançar indígenas, quilombolas e ribeirinhos

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Foto: Ana Araújo/Ag. CNJ
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Há 20 anos, Paulo André Ixati Oliveira Karajá deu entrada no pedido de retificação de seu registro de nascimento para incluir o nome de seu clã e de sua etnia nos documentos civis. Anos antes, sua mãe, Behederú Karajá, precisou abdicar do nome de seus ancestrais para se casar com um não indígena e para colocar os filhos na escola. Ainda assim, a mudança de Behederú para Rosemeire não evitou que sofresse discriminação.

A busca de Paulo André Ixati Oliveira Karajá pelo direito de ter seu nome de origem registrado nos documentos civis coincide com o ano de instalação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde 2005, o CNJ vem desempenhando a função de aprimorar o acesso de todas as pessoas a seus direitos. Ações e políticas públicas do órgão já garantiram a prestação de serviços judiciários a populações remotas do país, incluindo ribeirinhos, quilombolas e indígenas, conforme suas especificidades.

Entre as medidas mais recentes, tomada no ano passado, está a edição, juntamente com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), da Resolução Conjunta n. 12/2024. Ela facilitou a inclusão dos nomes de origem, etnia e família nos registros civis de nascimento. “Vivemos realidades diferentes das de meus antepassados. Há mais sensibilidade, respeito e reconhecimento com nossas tradições. Nosso nome não é mais apagado, não somos mais chamados de selvagens, e os direitos estão saindo das abstrações para se tornarem concretos”, compara Paulo.

Exemplo disso é mais uma parte do relato de Paulo André Ixati sobre a história de sua mãe. Na cerimônia de casamento dela, há pelo menos 40 anos, o oficial que celebrou a união de Rosimeire com o homem branco afirmou “nunca ter realizado um casamento entre bicho”. A lembrança de Paulo remonta um tempo de invisibilidade e preconceito, que, em sua avaliação, vem ficando para trás.

Identidade originária

Em 2010, o CNJ criou o projeto Cidadania, Direito de Todos, que promoveu assistência judiciária voluntária e acesso à documentação básica a ribeirinhos e indígenas. A parceria com outros órgãos públicos viabilizou a emissão de certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, Registro de Nascimento Indígena (Rani) e carteira de trabalho. O projeto alcançou mais de 21 mil documentos em municípios urbanos, fronteiriços, rurais e ribeirinhos.

Em Roraima, a oferta desses serviços já era uma preocupação. O desembargador Erick Linhares, um dos idealizadores do projeto Justiça Cidadã, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), que funciona aproximadamente há 20 anos, destaca a montagem dos postos avançados na entrega de documentos civis aos indígenas Waimiri Atroari, de comunidades isoladas.

Os postos já alcançam cerca de 3 mil pessoas e, além da questão de documentos, conflitos também podem ser mediados no local. “Quando a justiça deles não dá conta de alguma situação, eles nos trazem. Tudo é resolvido de maneira respeitosa e devidamente dialogada”, diz.

Linhares se recorda de um caso em que a Defensoria Pública representou a mãe de uma criança indígena em um processo de alimentos contra o pai, que havia dado uma vaca como forma de garantir o sustento da criança. “Estamos falando de uma comunidade que lida muito pouco com dinheiro. Aquele animal era muito valioso naquela situação. Apesar da solução pouco comum, acabamos conseguindo um acordo”.

Cotas e representatividade

O CNJ também tem atuado com a compreensão de que o acesso à justiça passa, ainda, pela garantia de representação. Nesse sentido, a reserva de cotas para garantir aos representantes dos povos originários um lugar de assento em órgãos da Justiça faz parte do esforço do CNJ em tornar a Justiça um direito de todos.

De acordo com o Painel de Pessoal do Poder Judiciário, dez magistrados se autodeclararam indígenas. Para ampliar esse quadro, o CNJ instituiu, em 2023, a reserva de ao menos 3% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura aos indígenas.

O sistema de cotas já é utilizado no Ministério Público e na Defensoria Pública, com aprovados integrados aos quadros funcionais. É o caso do defensor público do Ceará Francisco Júnior Pankará, que foi um dos dois indígenas que conquistaram uma vaga no concurso da Defensoria Pública da União (DPU) por meio de cotas étnicas.

“Quando atendo um parente, sinto que eles se sentem mais seguros, pois conseguem se expressar e ser compreendidos de maneira atenta, respeitosa. Há uma diversidade muito grande entre os povos, e a sociedade muitas vezes planifica a todos, como se fossem iguais. Cada povo tem suas questões específicas. Para atender um indígena, é preciso ouvir mais do que falar”, diz. A expressão “parente” não significa necessariamente vínculo sanguíneo, mas é a forma como pessoas indígenas tratam uns aos outros.

Mediação em conflito histórico

Ser escutado e ter seus pontos de vista respeitados é uma das prerrogativas expressas na Resolução CNJ n. 454/2022, que modificou a forma como o sistema judicial deve tratar os processos dos quais indígenas fazem parte. A norma prevê, entre outras orientações, um diálogo interétnico e intercultural, por meio de linguagem clara e acessível e mediante mecanismos de escuta ativa e direito à informação. E foi o que ocorreu em março deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou um acordo que dá um passo importante na pacificação de um conflito que dura cinco décadas.

Em 1982, a construção da Hidrelétrica de Itaipu impactou o modo de vida dos indígenas da região de forma violenta e irreversível. O reservatório da usina, resultante do represamento do Rio Paraná, inundou terras tradicionais da etnia Avá-Guarani que, desde então, enfrenta desafios humanitários para subsistir.

“Encontramos os indígenas em situação de grave ameaça, de vulnerabilidade extrema. As crianças que frequentam as escolas da região sofrem preconceito e ações discriminatórias. A verdade é que o conflito gerou uma cadeia de raiva e medo entre os colonos, as pessoas das cidades próximas e os povos indígenas, que somente com o apoio e a mediação da Justiça será possível reverter”, disse Patrícia Elache Gonçalves dos Reis.

Ela secretaria a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias, criada pelo CNJ por determinação do STF. Patrícia também é integrante da Comissão Regional de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). O colegiado esteve in loco no oeste do Paraná, neste ano, para verificar pessoalmente a situação dos colonos e dos indígenas envolvidos nos processos judiciais.

A mesa de negociações envolveu entidades como: o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do CNJ, a Comissão Regional de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) e o Tribunal Federal da 4.ª Região (TRF-4). Ao final, a empresa Itaipu Binacional aceitou pagar R$240 milhões como forma de ressarcimento e reparação aos povos atingidos pelos impactos da construção da usina.

O dinheiro será utilizado pela União na aquisição de terras, as quais serão destinadas aos povos indígenas. Para Patrícia, o caso serve de exemplo para a sociedade como um todo. “É preciso entender que a solução dialogada, por mais demorada que seja, é a melhor e a que mais pacifica conflitos. Somente um acordo tem a capacidade de restaurar as relações sociais e essa é a grande função do Judiciário”, diz.

Acesso à Justiça

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

 

Outra medida impulsionada pelo CNJ tem beneficiado não somente indígenas como também ribeirinhos e quilombolas, com foco na inclusão digital. Atualmente, unidades judiciárias de todo o país podem oferecer seus serviços por meio dos Pontos de Inclusão Digital (PID). Esses equipamentos possibilitam o peticionamento eletrônico, a consulta de processos e outros atos sem a necessidade de deslocamento até a sede dos tribunais.

“A mãe de uma vítima assassinada conseguiu dar seu depoimento em uma audiência do tribunal de Júri por meio do PID. Estamos falando de populações que vivem distantes dois ou três dias de barco das cidades. Pessoas que não contam com recursos para viajar ou pagar hospedagens”, explica o juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) Charles Menezes.

Para ele, essas instalações são, atualmente, as ferramentas que mais aproximam o povo ribeirinho da Justiça. “Até telemedicina temos feito por meio dos PIDs, em algumas localidades. É o Estado se fazendo presente por meio do acesso à justiça, do acesso à cidadania”, afirma o juiz.

Atenção a quilombolas

Em dezembro de 2024, um novo passo foi dado para atender às demandas próprias das comunidades quilombolas junto à Justiça. A política judiciária trata especialmente do reconhecimento de titularidade de terras, posse, propriedade e títulos de territórios tradicionais.

A política judiciária traça diretrizes para a resolução de conflitos envolvendo as comunidades quilombolas por meio de unidades como comissões de soluções fundiárias, centros de conciliação e laboratórios de inovação. Além disso, ela incentiva uma atuação mais integrada entre diferentes órgãos do governo, como o Incra, a Fundação Cultural Palmares e outros órgãos responsáveis pela regularização de terras e políticas sociais.

A política também reforça princípios essenciais, como o respeito à autoidentificação e à autodeterminação dos povos quilombolas, o reconhecimento de suas formas de organização social, suas tradições, línguas e crenças. O objetivo é garantir que o Poder Judiciário respeite e proteja suas terras, seus modos de vida e suas riquezas naturais, além de garantir que tenham voz em processos administrativos e judiciais que os envolvam.

Texto: Regina Bandeira
Edição: Sarah Barros
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias

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