Prêmio Memória: metodologia cruza dados para encontrar processos históricos

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O GPH tem a função de localizar e resgatar processos de relevância histórica que estão em acervo intermediário - Fotos: Ascom TJRJ
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Era Carnaval de 1914, quando Albertina Ferreira Gonçalves foi assassinada por seu ex-noivo, em frente ao Clube Militar do Rio de Janeiro. Inconformado com o fim do relacionamento, Braz Florençano disparou seis tiros de pistola contra a moça, que morreu na hora. Preso em flagrante, o acusado foi condenado pelo Tribunal do Júri. Apesar de ter feito uma apelação em 1917, o pedido foi negado pela Câmara da Corte de Apelação, que confirmou a sentença de 21 anos de prisão em regime fechado, convertida em prisão com trabalho. 

Essa é uma das histórias identificadas pelo trabalho de recuperação do acervo permanente reunido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Vencedor da 4.ª edição do Prêmio Memória do Judiciário na categoria Patrimônio Cultural Arquivístico, a atuação do Grupo de Pesquisa Histórica (GPH/TJRJ) recebeu o reconhecimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A metodologia implementada pelo grupo permite a preservação, a localização e o acesso a documentos que são fontes de reconhecimento histórico do Judiciário do Rio de Janeiro e do Brasil.  

O trabalho do GPH acontece no arquivo central do tribunal fluminense, que reúne mais de oito milhões de processos judiciários permanentes e históricos, dos quais apenas cerca de 250 mil estão identificados e cadastrados. Desde a criação do grupo, em 2015, até junho de 2024, foram identificados 21.251 casos e personalidades em periódicos e obras bibliográficas, o que resultou na seleção de 11.149 processos judiciais físicos. Desse total, 3.261 processos foram recolhidos ao Acervo Permanente.  

O GPH é vinculado ao Departamento de Gestão de Acervos Arquivísticos do TJRJ e tem a função de localizar e resgatar processos de relevância histórica que estão em acervo intermediário. A metodologia utilizada pelo GPH se baseia em um cruzamento de fontes, especialmente as midiáticas — jornais da época do período escolhido para a pesquisa. “Isso porque os periódicos auxiliam no contato com conflitos entre pessoas físicas e jurídicas que possam ter gerado demandas judiciais”, explicou a historiadora do Arquivo Central do TJRJ, Lara Pinheiro.  

Além disso, essa fonte permite rastrear sujeitos históricos que receberam destaque e povoaram o imaginário social. Segundo ela, dessas fontes são extraídos dados, como os nomes dos personagens, que podem ser pesquisados nos sistemas informatizados de gerenciamento do acervo arquivístico, a existência ou não de processos judiciais ligados a eles e os conflitos em que eles estiveram envolvidos. 

Levantamentos 

A pesquisa temática sobre a violência contra a mulher entre os anos de 1900 e 2020, por exemplo, permitiu a verificação e a reflexão sobre a evolução social e jurídica do tratamento desses tipos de casos. Lara Pinheiro destacou a existência de uma “história do silêncio” quando se fala em violência de gênero, já que não havia uma legislação específica sobre isso e é difícil até mesmo identificar os casos no início do século XX. 

Para realizar o levantamento, o GPH optou por utilizar matérias do Jornal do Commercio, que tinha grande circulação no Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX e possuía uma editoria específica para a cobertura judiciária sobre os processos que estavam sendo julgados nas varas e nos juízos naquele dia. “Foi um trabalho difícil até para definir bons filtros e captar os casos nos primeiros anos do século XX, até porque o assunto era tratado de forma mais subterrânea”, explicou Lara Pinheiro, durante a apresentação da prática vencedora no 2.º Webinar do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário 2025 

A metodologia pode ser adaptada ao caráter da pesquisa. No caso da pesquisa sobre ditadura militar, foi necessário recuperar documentos de ativistas, perseguidos políticos e agentes de estado. Para isso, os pesquisadores não utilizaram os periódicos da época por causa da censura a que os jornais eram submetidos nesse período. “Fizemos a escolha de relatórios de comissões da verdade para extrair dados de sujeitos históricos que contribuíssem na recuperação de processos judiciários ligados a eles dentro do acervo”, disse Pinheiro.  

O GPH trabalhou nos processos de bens de ausentes dos desaparecidos políticos Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e Tobias Pereira Junior, nos anos de 1980 e 1982, considerados relevantes porque remetem à Lei da Anistia (Lei 6683/1979). O normativo determinou que tanto ascendentes quanto descentes — e o Ministério Público — poderiam requerer a declaração de ausência desses indivíduos. Se fosse concedida, já gerava a presunção de morte do desaparecido para questões de sucessão, divórcio e outras.  

O inventário de Hilária de Almeida, conhecida como Tia Ciata, trouxe novas informações sobre a formação do samba no Rio de Janeiro. 

De acordo com a tabela de temporalidade do TJRJ — que é um instrumento que define prazos para a guarda e a destinação de documentos produzidos ou recebidos pelo órgão —, esse assunto tinha prazo de guarda de 40 anos, tendo a eliminação como destinação final. Como há a possibilidade de ainda ter outros processos de bens de ausentes, com base na Lei da Anistia, que não tenham sido identificados, há uma proposta em estudo pela Comissão Permanente de Avaliação Documental para mudar a destinação final deste assunto para permanente, de forma a salvaguardar preventivamente esses processos.

Nos últimos anos, o GPH tem trabalhado na divulgação do acervo, ao publicar, no site da corte, o material sobre as pesquisas. Atualmente, está no ar uma matéria sobre as pesquisas relativas a manifestações culturais no RJ que conseguiu recolher, por exemplo, a partilha amigável de Hilária de Almeida, conhecida como Tia Ciata. O documento trouxe novas informações sobre essa personagem e sobre a formação do samba no Rio. Para essa pesquisa, foram analisados 833 processos e 350 processos localizados.  

Atualmente, o Grupo coordena o projeto Bem-Vindo ao Passado, que disponibiliza em seu site o acervo processual de alta relevância histórica para a sociedade. A iniciativa faz parte do Planejamento Estratégico do tribunal e pode ser inserido no projeto Memory of the World (MoW), da Unesco. 

Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias