Juízo 100% Digital: Court as a service, not as a place

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Arte: Migalhas
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Sílvio Neves Baptista Filho*

A frase que integra o título deste despretensioso escrito foi extraída da obra Online Courts and The Future of Justice (2019), do professor inglês Richard Susskind, e reflete inteiramente o momento que o Judiciário e as demais profissões jurídicas estão vivenciando desde a chegada da terrível pandemia que assolou o planeta, com mais de cento e sete milhões de casos, e ceifando a vida de mais de 2,35 milhões de pessoas até o dia 11 de fevereiro.

Os anos de 2020 e 2021 ficarão marcados não só pela tragédia humanitária, mas também pela transformação das cortes de todo o país, que tiveram que adaptar a prestação da atividade jurisdicional sem que as sedes representativas da presença do Judiciário estivessem necessariamente abertas.

É sabido que o acesso aos serviços prestados pelos diversos ramos da justiça não se resume à facilidade da distribuição, nem ao manuseio dos autos, ou mesmo à faculdade de ser recebido pelo magistrado. O fim a que se predispõe a magistratura é dar respostas céleres e justas, respeitando o devido processo legal e o contraditório, uma vez que o cidadão busca, essencialmente, a melhor resposta e os melhores meios de obtê-la.

O presente artigo visa analisar a adoção de algumas medidas pelo Conselho Nacional de Justiça que com vistas a acelerar os trâmites processuais e a prestação remota dos serviços judiciais no período da pandemia de covid-19, em especial a implantação do Juízo 100% Digital.

É fato incontroverso que a demanda desenfreada, e massificada, vem há anos abarrotando as unidades, gerando inevitável ineficiência, e com ela a ansiedade dos atores envolvidos. Essa pressão pela rapidez da resposta, à mercê da criatividade humana, na maioria das vezes não reverte a situação de forma definitiva, muito menos serve de padrão a ser seguido. As atitudes ou procedimentos isolados apenas demonstram a importância de se ter política institucional perene e focada em resultado geral e definitivo.

Embora o Relatório Justiça em Números 2020 do CNJ tenha demonstrado redução de 1,5 milhões de processos em relação ao ano anterior (2018), ao final de 2019 ainda existiam 77,1 milhões de casos aguardando solução definitiva. A produtividade média dos magistrados em 2019 cresceu 13% em relação a 2018, mas o índice de conciliação permanece baixo, com pequena evolução. O Judiciário está, portanto, longe de atender às expectativas da sociedade, acostumada a resolver suas necessidades básicas, ou até mesmo complexas, com poucos cliques em um smartphone.

O mencionado relatório do CNJ afirma que o Brasil dispõe de 15.552 juízes de direito, numa média de quase cinco mil processos para cada julgador. Com esses números, não se atingirá globalmente a eficiência prevista no art. 8º do estatuto de processo civil, muito menos a razoável duração do processo prevista no 5º, LXXXVIII da CF/88, e no art. 4º do CPC.

Algumas ferramentas introduzidas no Código de Processo Civil como os padrões decisórios, o sistema multiportas, a cooperação judiciária, dentre outras, precisam se tornar realidade na cultura de quem atua no Judiciário. Outra medida importante é o investimento no processo eletrônico e nos juízos on-line, onde a totalidade dos atos são praticados remotamente.

A pandemia transformou o Judiciário, que precisou recriar a forma de prestar o seu serviço. As medidas adotadas ao longo do ano pelos tribunais e pelo CNJ ratificaram o pensamento de Richard Susskind, de que o local onde se situa a sede é de quase nenhuma importância, pois o fim almejado não está materialmente inserido em prédios determinados, mas no resultado do trabalho de seus membros.

Durante os últimos meses, uma infinidade de atos foi praticada sem que as partes, magistrados, servidores ou testemunhas estivessem no mesmo local. Da mesma forma, outra incalculável quantidade de sessões telepresenciais ocorreu a distância, inclusive com a participação de partes e advogados de outras localidades que outrora seriam obrigados a se deslocar até a cidade ou o Estado onde elas se realizariam, gerando enorme economia de tempo e recursos.

São justas e oportunas, por um lado, as queixas em razão da demora do atendimento pelas unidades e do afastamento entre a justiça e o cidadão, seja pessoalmente ou por meio de advogado. Em contrapartida, são raras as críticas às varas ou gabinetes, que não obstante o trabalho remoto, atendem os telefonemas, respondem os e-mails e mensagens, recebem os advogados por videoconferências, e são ágeis na resposta às demandas. Se a unidade atende aos anseios dos litigantes, ela atinge o grau de excelência independentemente das suas portas estarem ou não abertas.

A prestação jurisdicional precisa vencer a, infelizmente, tradicional barreira da morosidade na prática dos atos, na entrega da solução integral do mérito e da atividade satisfativa. Nessa linha, em setembro do corrente ano, o Presidente do Conselho Nacional de justiça, Ministro Luiz Fux, instituiu a Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ, modelo de governança e gesta~o de processo judicial eletrônico, que pretende adotar diversos mecanismos de integração e uniformização de soluções de tecnologia da informação e inteligência artificial, buscando evitar iniciativas paralelas e desconexas, ou seja, que não tragam benefícios para os demais tribunais da federação.

Outra interessante novidade introduzida pelo CNJ em setembro de 2020, através da Resolução 345, complementada pela Resolução 354, foi o Juízo 100% Digital, que disciplina o cumprimento digital dos atos e determinações judiciais.

O Juízo 100% Digital, somado à implantação do domicílio eletrônico para recebimento de citações e intimações por e-mails ou aplicativos de mensagens, e ainda ao disciplinamento da prática dos atos processuais por videoconferência, tende a diminuir os intervalos entre os atos processuais, atingindo a maturidade para julgamento com maior brevidade.

Num processo digital, as citações e intimações sãorealizadas eletrônica e instantaneamente. Com isso, antecipa-se o início da contagem dos prazos, a apresentação da defesa, e a produção das provas,reduzindo significativamente o decurso do tempo entre a distribuição e o julgamento do processo.

Como exemplo, no último dia 16 de dezembro, apenas nove dias após a distribuição, a juíza Rosário Arruda, da 1ª Vara Cível da Comarca de Goiana – PE, prolatou sentença de mérito em ação de alimentos. A citação e intimações para a audiência foram realizadas por telefone e por aplicativo de mensagens. A audiência foi realizada de forma telepresencial, e a sentença foi dada ao final do ato. Esse prazo seria praticamente impossível de ser atingido caso o processo não estivesse inserido no Juízo 100% Digital.

De acordo com o site Remote Courts Worldwide, dezenas de países aderiram, no ano pandêmico de 2020, ao modelo remoto da prestação do serviço jurisdicional, e as facilidades geradas levam a crer que será um caminho sem volta.

Não há registro, todavia, de migração ampla e irrestrita no mundo. Atos presenciais ainda são a regra, e deverão permanecer por algum tempo após o período nebuloso pela qual estamos passando. Não existe, por outro lado, empecilho para que todo e qualquer processo seja instruído e julgado num juízo on-line. E mais ainda, há algumas demandas cuja tramitação em juízo presencial sequer fazem sentido, como os cumprimentos de sentença, execuções de modo geral, ou qualquer processo que não exija o depoimento pessoal ou a ouvida de testemunhas.

O art. 3º da Resolução 345 do CNJ adotou a facultatividade na adesão ao juízo 100% Digital. A mesma norma concede o direito à parte adversa de recusar a tramitação pelo modo digital, e até mesmo desistir do modelo uma única vez durante a instrução. Diante da opcionalidade, é previsível que inicialmente apenas casos mais simples sejam julgados no novo formato devido à resistência e insegurança quanto ao novo. Mas com o aumento da confiança e da percepção da vantagem, a tendência é que logo haja incremento considerável de casos submetidos à nova sistemática.

A realização dos atos virtualmente, em todo o acervo pendente de julgamento nos tribunais, vai ao encontro dos anseios de toda a sociedade, contudo, de nada adianta o investimento tecnológico sem que os personagens se dispam das armaduras culturais. Quanto mais ágil e acessível for o magistrado, menor será a resistência à adesão ao Juízo 100% Digital. Serão infrutíferas, por outro lado, as disrupções trazidas com as novas tecnologias caso os operadores permaneçam apegados ao modelo pré-pandêmico.

É fácil concluir, portanto, que o sucesso do juízo digital dependerá exclusivamente do Poder Judiciário, pois em razão da facultatividade, a parte apenas irá aderir e acreditar naquilo que lhe pareça mais vantajoso. Se o novo modelo causar o distanciamento ou aumentar o encastelamento da magistratura, ou ainda, se não houver diferença real entre os dois modelos, o êxito do programa ficará comprometido.

Por essa razão, o CNJ decidiu em 09.02.2021, por meio do processo 0000092-70.2021.2.00.0000, criar novo programa chamado “Balcão Virtual”, onde os tribunais, à exceção do Supremo Tribunal Federal, deverão disponibilizar, em seu sítio eletrônico, ferramenta de videoconferência que permita o contato imediato com o setor de atendimento de cada unidade judiciária durante o horário de atendimento ao público.

De acordo com o voto do Relator, Min. Luiz Fux, o programa decorre de três constatações percebidas com o atendimento remoto durante a pandemia de covid-19. A primeira foi a insuficiência de canais telefônicos e a onerosidade na aquisição de linhas e sistemas que permitam o uso institucional por magistrados e servidores. A segunda foi a dilação temporal que ocorre nos canais de atendimento por correio eletrônico, algumas vezes incompatível com a urgência que os casos exigem, gerando a insatisfação do usuário e pondo em risco a implantação do Juízo 100% Digital. O terceiro argumento é de ordem econômica e temporal, pois um canal direto de atendimento imediato pela unidade facilita a comunicação e os custos dos que precisam se dirigir ao Judiciário.

O Balcão Virtual surge para garantir o êxito do Juízo 100% Digital, e auxiliar na mudança de cultura que teve início com o fechamento das portas do judiciário, mas não da entrega do serviço pelos magistrados e servidores.

Havendo essa mudança de cultura, pode-se imaginar um Judiciário integralmente remoto. E ao atingir o estágio em que a totalidade das unidades e processos estejam trabalhando on-line, e que os sistemas se comuniquem com facilidade, várias regras processuais estarão fora do novo contexto, principalmente as de competência. No mundo do juízo online, poderá não fazer sentido fixar a competência com base no domicílio ou local do fato, mas sim no juízo mais adequado. Os pedidos poderão ser analisados por quem possua maior acesso aos fatos e provas, ou maior expertise na matéria, independentemente de onde estejam fisicamente.

Como conclusão, percebe-se que a massificação de demandas exige da política judiciária um olhar mais voltado para as respostas do que para o acesso simplesmente. A sociedade, ao tempo em que se apoia no Estado-Juiz para resolver quase a integralidade dos conflitos, vive momento histórico em que a demora na entrega da decisão satisfativa do mérito não mais se justifica diante das atuais facilidades tecnológicas.

O período pandêmico inaugurou a era em que a atividade jurisdicional deixa de ter o prédio do fórum ou do tribunal como referência, e passa a ser enxergada unicamente como um serviço. A sede ou a presença física do juiz são irrelevantes diante da resposta célere, efetiva e eficiente. Se antes a propositura das demandas exigia o comparecimento presencial, seja para ter ciência do andamento processual, seja para impulsionar o feito, na atual conjuntura, a unidade judiciária tende a se aproximar dos cidadãos, advogados, defensores e membros do Ministério Público, através de ferramentas que proporcionam o contato independentemente do local onde se localizam os magistrados ou servidores.

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1- SUSSKIND, Richard. Online courts and the future of justice. Oxford University Press, novembro de 2019.

2- COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU). Disponível aqui. Acesso em 11.02.2021.

3- CNJ – Conselho Nacional De Justiça. Justiça em Números 2020. Brasília, 2020. P. 93 e 94. Disponível aqui. Acesso em 03.02.2021.

4- CNJ – Conselho Nacional De Justiça. Justiça em Números 2020. Brasília, 2020. P. 16. Disponível aqui. Acesso em 11.02.2021

5- CPC: Art. 8º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
CPC: Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela EC 45/04)

6- Resolução 335 de 29 de setembro de 2020, que institui política pública para a governança e a gestão de processo judicial eletrônico. Integra os tribunais do país com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br. Mantém o sistema PJe como sistema de Processo Eletrônico prioritário do Conselho Nacional de Justiça.

7- CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui. Acesso em 09.02.2021

8- Remote Courts Worldwide. Disponível em: https://remotecourts.org. Acesso em 09.02.2021

9- Art. 3º. A escolha pelo “Juízo 100% Digital” é facultativa e será exercida pela parte demandante no momento da distribuição da ação, podendo a parte demandada opor-se a essa opção até o momento da contestação.

10- Art. 3º (…)
§ 1o Após a contestação e até a prolação da sentença, as partes poderão retratar-se, por uma única vez, da escolha pelo “Juízo 100% Digital”.

11- De acordo com o art. 1º da Resolução ainda pendente de publicação na data da elaboração do presente estudo:” Art. 1º. Os tribunais, à exceção do Supremo Tribunal Federal, deverão disponibilizar, em seu sítio eletrônico, ferramenta de videoconferência que permita imediato contato com o setor de atendimento de cada unidade judiciária, popularmente denominado como balcão, durante o horário de atendimento ao público.
Parágrafo único. Essa plataforma de videoconferência será doravante denominada “Balcão Virtual””.

12- Voto do ministro Luiz Fux, proferido nos autos do processo nº0000092-70.2021.2.00.0000. Disponível aqui. Acesso em 10.02.2021.

13- Essa ideia é extraída a partir da leitura da tese do professor Antônio do Passo Cabral, apresentada no concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2017, Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil.

(*) Sílvio Neves Baptista Filho é desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) e mestrando da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)

Fonte: TJPE