Projeto em prol da paternidade ajuda a prevenir violência de gênero

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FOTO: Manual Programa P
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Desde que entrou na maternidade para ter seu primeiro filho, a estudante Giovanna Letícia, de 17 anos de idade, contou com a presença do pai da criança ao seu lado em todos os momentos. Na Maternidade Carmela Dutra, localizada na zona norte do Rio de Janeiro, pai não é considerado acompanhante, mas responsável pelo bebê que vai nascer, assim como a mãe. O estabelecimento é uma das instituições públicas que aplica a metodologia do Programa P, projeto vencedor, na categoria Sociedade Civil, da premiação de boas práticas em prol da primeira infância, coordenada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Idealizado pela ONG Promundo, o Programa P é um manual criado com o objetivo de abrir o diálogo com os pais sobre suas preocupações, dúvidas e necessidades e incentivar comportamentos mais positivos desses homens dentro de suas famílias e nas suas comunidades. Pelos consistentes resultados apresentados e a possibilidade de replicação, o Programa P recebeu, em dezembro de 2019, o prêmio de R$ 20 mil, além de troféu e certificado oferecidos pelo CNJ, e passa, agora, para a fase de divulgação e replicação da prática.

Por meio de oficinas e cursos, o manual trabalha o despertar do vínculo afetivo entre pai e filho e, de quebra, contribui para promover equidade de gênero e prevenir a violência contra mulheres e crianças. O manual pode ser trabalhado em empresas, escolas, comunidades, instituições públicas ou privadas, de saúde, de educação, de assistência social ou de Justiça, onde houver homens ou mulheres, jovens ou adultos. Atualmente, o programa está sendo aplicado, no Rio de Janeiro, em rodas de conversas com jovens e adultos de comunidades carentes e na Maternidade Carmela Dutra, entidade 100% financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Lá, o pai é estimulado a estar presente desde o pré-natal até o parto e, mesmo após o parto, pode acompanhar a mãe de seu filho e o bebê o tempo que for preciso. Até mesmo na UTI neonatal, os homens são bem aceitos. “Vou ser um paizão! Vou brincar com meu filho, dar banho nele, trocar fralda. Me sinto pronto e totalmente capaz de cuidar dele”, diz Darlan Davi, de 23 anos de idade, com o filho nos braços.

Giovanna tem motivos para gostar do entusiasmo de Darlan: os impactos da paternidade responsável são positivos para todos. “Mulheres que têm parceiros envolvidos no cuidado do bebê desenvolvem menos doenças, sentem-se menos exaustas e agem de maneira menos violenta com os filhos”, diz o especialista em Políticas Públicas para a Infância, pelo Núcleo Latino-Americano da Universidade de Harvard, Luciano Ramos. Ele é o consultor de Programas do Instituto Promundo.

Segundo o especialista, as crianças que vivem em ambiente com mais amorosidade e apoio paterno tendem a ser mais seguras, mais felizes e mais protegidas da violência. Os homens envolvidos na paternidade também se beneficiam: apresentam melhoras na saúde e são menos envolvidos em episódios de violência doméstica baseada em gênero.

O Programa P está sendo adaptado, em fase piloto, para vários países, como África do Sul, Ruanda e Indonésia. Na Índia, os facilitadores utilizam as atividades para combater o casamento infantil.

Papel de todos

Até se tornarem ‘parceiros do pai’, enfermeiros, médicos e funcionários da Maternidade Carmela Dutra precisaram mudar suas concepções para aceitar a presença dos homens em todas as áreas. Foram várias ações para sensibilizá-los – desde fotos de pais amorosos expostas em diversos locais do hospital, discussão do tema paternidade na Semana de Enfermagem e, ainda, pequenas rodas de conversa com todos os grupos profissionais do hospital. Tudo com o objetivo de refletir sobre como contribuir para estabelecer o vínculo sentimental do pai com seu filho.

“Para funcionar, toda a rede de profissionais (enfermeiros, técnicos em enfermagem, seguranças, recepcionistas, médicos) da maternidade teve de ser capacitada”, lembra Márcio Ferreira, assessor da Superintendência de Hospitais Pediátricos e Maternidade (SHPM) e um dos implementadores do Programa P na Maternidade Carmela Dutra, onde trabalhou por 18 anos.

“Quando os profissionais de saúde se dirigem às mulheres e deixam o homem de lado, ou mesmo, nas consultas médicas, deixamos o homem em pé ao lado da mulher, estamos empurrando o pai pra fora do círculo familiar e reforçando que a única responsável por aquela situação é a mulher. Isso não é justo com nenhum dos dois, aliás, dos três. O homem precisa ser inserido. Nosso trabalho é reforçar esse vínculo a fim de obtermos mais comprometimento e menos abandono”, complementa Márcio.

Transformação social

O Programa P também vem sendo aplicado nas comunidades dos Bancários, na Ilha do Governador, em Guararapes e em Prazeres, no Rio de Janeiro. Frases como ‘Mulheres são mais sérias que os homens. Pai só serve pra brincar’, ou ‘Garotas nascem sabendo trocar fralda, elas têm mais experiência, porque brincaram de boneca. Homem não brinca de boneca’, ou ainda ‘Homem só atrapalha, né?’ são alguns dos dizeres pinçados de rodas de conversa sobre masculinidade e paternidade realizadas com jovens da comunidade dos Guararapes. Nos locais onde tem sido feitos, esses encontros podem alterar antigos preconceitos e melhorar a vida de homens, mulheres e crianças.

O professor de Educação Física Leonardo Brasil conta que, aos poucos e ouvindo relatos de outros colegas, os jovens assimilam as novas ideias, aumentando o senso de coletividade e desconstruindo antigos papéis. Para coordenar os encontros em Guararapes, ele recebeu o treinamento oferecido pelo Promundo. Segundo a entidade, 200 jovens participam das rodas de conversa por ano, mas o alcance dos ensinamentos vai muito além. Pais, mães, primos e colegas são diretamente influenciados por eles.

Nos Bancários, comunidade que fica na Ilha do Governador, a responsabilidade com os filhos é debatida semanalmente entre colegas de futebol da Casa da Noruega. São pais de várias idades que se emocionam ao contar sobre suas experiências com a paternidade. Não raro, eles foram filhos de pais violentos, distantes ou totalmente ausentes.

“Se você educa um homem, dá capacidade de escala para o trabalho. E, se sabemos que são os homens os autores de violência, é com eles que precisamos falar diretamente. Eles precisam mudar. É maravilhoso vermos que as mulheres já estão adiantadas nesse processo, mas, se não mudarmos a cabeça de seus parceiros, isso não vai funcionar”, diz Luciano Ramos, o coordenador de projetos da entidade.

Primeira infância

O compartilhamento de boas práticas contribui para o cumprimento do Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016) e para a promoção da garantia dos direitos e atenção às crianças. O prêmio é um dos desdobramentos do Projeto “Justiça começa na Infância: Fortalecendo a atuação do Sistema de Justiça na promoção de direitos para o desenvolvimento humano integral”, coordenado pelo CNJ e financiado pelo Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). No âmbito do projeto, foi firmado, em 25 de junho de 2019, o Pacto Nacional pela Primeira Infância, uma parceria entre o CNJ e diversos atores que integram a rede de proteção à infância no Brasil.

Em junho de 2020, o CNJ iniciou um curso online para disseminação das 12 práticas vencedoras e outras três selecionadas. O treinamento é voltado aos profissionais do Sistema de Justiça, de órgãos públicos e da sociedade civil que atuam com a primeira infância e pessoas interessadas no tema. As inscrições estão abertas e podem ser realizadas aqui.

Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias