Poder Judiciário e tecnologia: das origens do PJe à Justiça 4.0

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Foto: Arquivo
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O incentivo ao acesso à justiça digital é um dos eixos da gestão do ministro Luiz Fux à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na primeira sessão plenária como presidente do Conselho, o ministro elencou em torno do Programa Justiça 4.0 os avanços que espera gerar para o trabalho do Poder Judiciário com investimento em tecnologias da informação e comunicação. “Esse projeto expressa uma nova realidade para o Poder Judiciário”, afirmou em 22/9. Um dos projetos a que a gestão Fux dará continuidade é o Processo Judicial Eletrônico (PJe). Com importância central na transição dos processos físicos para a digitalização das atividades da Justiça, o sistema possibilitará a evolução do Justiça 4.0.

A origem do PJe remonta ao início do século, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5). Naquela corte, segunda instância da Justiça Federal de seis estados nordestinos – de Sergipe ao Ceará –, os juizados especiais federais utilizavam um sistema eletrônico de nome Creta, em referência à ilha grega. “Eu entrei no TRF5 em 2003, quando o processo eletrônico estava sendo montado. Tínhamos no tribunal e na primeira instância alguns sistemas implementados que não eram propriamente sistemas de processo eletrônico. Eram sistemas eletrônicos de processamento dos feitos. Havia uma tradição inaugurada pela desembargadora Margarida Cantarelli de batizá-los com nomes alusivos à civilização grega. Havia o Tebas, o Esparta e o Creta, que começou a ser implantado nos juizados especiais federais”, afirmou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Marcelo Ribeiro Dantas, à época coordenador dos juizados especiais federais do TRF5.

Em 11 de junho de 2004, o Creta foi instalado na primeira unidade judiciária do TRF5. Em 2005, praticamente todos os juizados da 5ª Região já utilizavam o sistema. Em 2006, a iniciativa rendeu ao TRF5 o Prêmio Innovare na categoria Tribunal. No mundo atual, cada vez mais informatizado, conectado e automatizado, as novas gerações da comunidade do direito podem ter dificuldade de reconhecer os méritos que valeram ao Creta um dos prêmios mais importantes do Sistema de Justiça – evitar o deslocamento de partes e advogados até o fórum, possibilitar julgamentos a distância, reduzir a produção de papel na Justiça.

À época, no entanto, conforme lembra o ministro Ribeiro Dantas, a dificuldade era convencer as gerações mais antigas do Poder Judiciário a apostar em um modelo de justiça virtual. “Houve muitas pessoas que viram no processo eletrônico um empecilho para o acesso à justiça. Diziam: ‘isso só vai funcionar para os mais novos, que sabem operar computador e internet. Vai afastar os mais antigos. Nem todo advogado tem internet nem sabe operar computador’. Pensem que era uma época sem smartphones, que hoje são verdadeiros computadores de bolso e por meio dos quais se acessa o sistema de processo eletrônico”, afirmou.

Transição

Ainda em 2006, um evento do Conselho da Justiça Federal (CJF) marcou o início da transição do Creta para o PJe. O I Encontro Nacional dos Operadores da Justiça Virtual reuniu magistrados de tribunais estaduais e federais para debater as experiências isoladas de sistema de tramitação eletrônica em curso àquela época. Ao final do encontro, elegeram o sistema Creta como o modelo ser adotado nacionalmente por atender às necessidades do Poder Judiciário brasileiro, de acordo com o juiz federal Marco Bruno Miranda, um dos palestrantes do evento.

“Muito em função disso, uma comitiva do Conselho Nacional de Justiça esteve no TRF5 para conhecer os requisitos e a documentação do Creta. Dessa visita, resultou a criação de um sistema chamado ProJudi, confeccionado pelo CNJ e que se assemelha ao Creta. Em 2007, foram iniciados estudos para a expansão do sistema Creta, após a aprovação da Lei 11.419/06 (Lei de Processo Eletrônico)”, afirmou o magistrado. Miranda seria convocado em 2009 ao CNJ para apresentar o processo de expansão do Creta uma reunião para definir um sistema nacional de processo eletrônico. O contato entre CNJ e TRF5 resultou em um convênio para desenvolvimento do PJe.

A primeira versão do PJe resolvia alguns problemas do Creta. Um deles era a fragilidade na segurança dos cadastros de usuários, que permitia a criação de vários perfis de usuários para uma só pessoa. Outra lacuna do Creta era não adotar ainda as Tabelas Processuais Unificadas do Poder Judiciário. A Resolução CNJ n. 46 instituiu em dezembro de 2007 uma uniformização dos termos usados para classificar classes, assuntos e movimentações processuais nos sistemas de tramitação eletrônicas de processos das Justiça Estadual, Federal, do Trabalho e do STJ. Outro aperfeiçoamento ampliou a capacidade do sistema de extrair estatísticas dos processos cadastrados.

Manual

O conselheiro do CNJ Rubens Canuto, que testemunhou os primórdios do PJe enquanto juiz federal da 5ª Região, lembra da dificuldade de se levantar a jurisprudência acerca de qualquer matéria naqueles tempos em que a justiça digital era um sonho. Até pouco tempo atrás, de acordo com o conselheiro, a Corte tinha uma base de jurisprudência que era alimentada manualmente e não continha todas as decisões e atos processuais. O Sistema Júlia, sistema de inteligência artificial do TRF5, hoje permite uma ampla pesquisa, não só da jurisprudência, mas também do conjunto de decisões proferidas.

“Até pouco tempo atrás, se chegasse um agravo de instrumento (tipo de recurso) no meu gabinete, minha equipe tinha de minutar (preparar versão preliminar) do zero ou tinha de ligar para os gabinetes de todos os outros desembargadores para saber se algum colega recebera algum recurso semelhante, se sabiam de decisão semelhante proferida. Às vezes, valiam-se de um contato informal que tinham com os demais assessores. Tudo era feito manualmente. Hoje, ele permite buscas em tempo real. Basta que decisão seja assinada, o sistema Júlia busca em milésimos de segundo o trabalho que minha assessoria levava 40 minutos só para conseguir falar com um assessor”, afirmou o conselheiro, que também é o presidente da Comissão Permanente de Tecnologia da Informação e Inovação do CNJ e coordenador do Comitê Gestor Nacional do PJe.

Inteligência artificial

Ao longo dos anos, a evolução tecnológica resultou em um modelo de plataforma que permite a integração ao PJe de mecanismos de inteligência artificial – como o Júlia. Esses avanços do viabilizam as expectativas levantadas pelo Programa Justiça 4.0, como o desenvolvimento de novas funcionalidades para a Justiça. Um exemplo é o plano do programa de lançar uma plataforma exclusiva para a busca de soluções alternativas a conflitos, em ambiente virtual, o que eliminaria a necessidade da parte judicializar a questão e, consequentemente, congestionar as varas.

Embora o termo inteligência artificial soe como algo relacionado ao futuro, sempre esteve no horizonte do projeto, de acordo com o juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) Marivaldo Dantas, que desenvolveu o PJe como juiz auxiliar da Presidência do CNJ entre 2008 e 2014. “Estava relendo a ata da primeira reunião do primeiro comitê gestor nacional do PJe. Estávamos explicando por que a petição inicial devia ser escrita no editor de texto. A ideia era a inteligência artificial, pois um texto em HTML (linguagem de páginas web) pode ser lido de forma automática por uma funcionalidade”, afirmou.

No entanto, venceu a preferência dos usuários da época e ficou decidido que o sistema aceitaria a anexação de arquivos PDF nos autos do processo, o que sobrecarregava os bancos de dados do sistema. “O pensamento sempre foi o de permitir uma inovação que não era para aquele momento, mas para cinco anos ou até mais para frente. Hoje é que temos uma onda de inteligência artificial e automação que permite visualizar que a escolha na época representava um problema. Ao contrário dos arquivos PDF gerados hoje, naquela época muitas pessoas imprimiam, assinavam um documento e o escaneavam. A resolução (e o tamanho do arquivo) ficava cinco, 10 vezes maior ao que era necessário. Mas faz parte do processo de evolução”, afirmou.

Uma das apostas da gestão do ministro Luiz Fux, o sistema de penhora on-line promete entregar aos magistrados uma funcionalidade que vai automatizar a reiteração de ordens de bloqueio de valores para cumprir uma decisão judicial. Sem o estágio de maturidade tecnológica do PJe, seria impensável o mecanismo que vai dispensar o juiz da tarefa de emitir repetidamente novas ordens de penhora eletrônica para cumprir a mesma decisão emitida anteriormente pelo mesmo magistrado.

De acordo com a juíza federal do TRF5 Polyana Brito, o potencial de evolução e desenvolvimento da plataforma justificam a opção pelo PJe. Se hoje integra o Comitê Gestor Nacional do PJe, a magistrada acompanhou os primeiros anos de funcionamento do Creta, precursor do PJe, pois respondia por um juizado especial federal – entre 2005 e 2008, atuou na 15ª Vara Federal do Recife.

“Ainda que hoje, na forma como funciona o PJe, talvez não pareça tão claro para o usuário qual a grande vantagem do sistema, o potencial é o de criar expressões lógicas de automação, ou seja, ensinar o sistema o que fazer, trabalhando a partir de fluxos pré-definidos que podem ser adaptados aos tribunais em que ele será operado, para que o sistema já saiba o que fazer e adote vários passos à frente”, afirmou a juíza, que hoje atua na 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais, no Recife.

Nova arquitetura conceitual

Graças à nova arquitetura da tecnologia, mas também da governança do PJe, as novas funcionalidades serão desenvolvidas pelos departamentos da Tecnologia da Informação dos próprios tribunais. Caberá ao Comitê Gestor Nacional do PJe a missão de coordenar o esforço coletivo para evitar o retrabalho, mas os tribunais seguem livres para desenvolver as funcionalidades que mais os atendam assim como terão a liberdade de integrar à versão utilizada do PJe apenas aos conjuntos de funcionalidades (módulos) que se mostrem necessários ao perfil da corte.

Com a criação de um comitê de revisão técnica e de um comitê de negocial, o objetivo do CNJ é estabelecer uma política comunitária de desenvolvimento do PJe, de acordo com o conselheiro Rubens Canuto, coordenador do Comitê Gestor Nacional do PJe. “Chegamos ao ponto de o comitê de revisão técnica rejeitar uma funcionalidade que foi desenvolvida pelo próprio CNJ, o que demonstra que o Conselho hoje se põe em pé de igualdade com a comunidade sendo muito mais um elemento coordenador, facilitador, do que um elemento diretivo, de chefia verticalizada. É uma mudança muito grande, em termos de gestão, que tem sido muito bem-sucedida, já que põe todos os partícipes como fatores ativos de desenvolvimento do sistema”, afirmou.

Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias