Pessoas em situação de rua ganham maior acesso a direitos no Acre

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Em situação de rua, André Nascimento levou seus filhos para tirar documentos e verificar andamento de processo judicial em evento no Acre. Foto: TJAC
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A edição especial do Projeto Cidadão – “Acolher para Transformar” – foi realizada pelo Tribunal de Justiça do Acre (TJAC) nos dias 2 e 3 de junho para atender pessoas em situação de rua. O programa integra as instituições públicas, que reúnem seus serviços para massificar a garantia de direitos a essa parcela da população.

Enquanto aguardava sua vez para ser atendido, André Nascimento contou um pouco de sua história. “Eu fui criado pelo Educandário Santa Margarida. Eu fui deixado na Maternidade Bárbara Heliodora quando eu era criança. Quando fiquei maior, fui direto pra rua, aí comecei sendo engraxate. Teve uma época que descobriram meu avô, morei um tempo com ele. Mas não deu muito certo e eu continuei na rua.”

O avô faleceu há um ano e a casa dele ficou com a mãe dos seus cinco filhos. “Eu vi meus filhos nascer tudo sem-teto, mas hoje eles têm uma casa e eu continuo na rua”, conta. Nascimento dorme em um albergue e não tem uma moradia convencional. “Eu não tenho canto não, eu vivo por aqui”, referindo-se ao centro de Rio Branco.

Tudo o que conseguiu acumular em seus 37 anos de idade está guardado em uma mochila, que tem uma bandeira do Brasil dependurada. No entanto, ele não reclama da sua sorte. “Do meu ponto de vista, do que eu estou vendo, eu sou diferente porque me deram uma chance. Eu sou um cidadão brasileiro. Eu ganhei muita experiência com a vida.”

Nascimento tem que lutar para vencer o alcoolismo. “Nunca tive contato com a droga, mas na cachaça eu tinha raiva. Estou há quatro meses sóbrio, sem beber nada! Nunca tinha passado esse tanto de tempo sem beber! Eu sou um guerreiro por ter aguentado esse tanto de tempo. Eu fui pro CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas] fazer o tratamento e agora consegui um emprego.”

A transformação social é muito difícil para quem não tem oportunidades. O primeiro dia de trabalho de Nascimento foi em 2 de junho. Ele conseguiu uma vaga de vigilante, recebendo como diarista. Então, emendou seu plantão para  ir ao Projeto Cidadão e receber orientações jurídicas. “Eu estou trabalhando, eu estou tranquilo mesmo! Eu não quero me tirar do meu foco nesse momento que eu estou conseguindo me enxergar. Eu estou numa fase boa, estou trabalhando e vim aqui pra cuidar dos meus direitos.”

Invisibilidade

Newton herdou o nome do avô. Nasceu em Rio Branco, sua mãe foi presa quando ele tinha três anos de idade e desde então nunca teve contato com ela. Fala isso com rancor. Sua expressão e tom de voz mudam. “Eu nunca fui visitar ela, não. Ela está lá porque quer.”

Ele foi criado por sua avó e hoje tem 21 anos de idade. “Eu sou o segundo mais velho. Os outros três irmãos nasceram a partir de visitas no presídio”, conta. Ao falar a idade, pergunta: “eu estou acabado, né?”, balbucia, ajeitando o cabelo. E, antes de ter uma resposta, diz: “mas eu vou cortar ali hoje, vou fazer um moicano, vai ficar legal”. E sorri timidamente.

Newton é magro, estava vestido com uma regata azul e não quis dar entrevista para a televisão. Ele explicou que saiu de casa há três meses, porque é usuário de drogas e não aguentava mais ver sua avó chorando todos os dias. Em razão disso, também não queria sair no jornal para que ela não o visse.

A meninice que aparece em algumas frases também é nítida quando ele fechou os olhos com medo das vacinas contra a gripe e a Covid-19 que recebeu. Nada disso estava em seus planos. Porém, como teve a curiosidade de ver o que estava acontecendo no Projeto Cidadão e um colega foi receber a aplicação da vacina, decidiu tomar também.

Como as instituições romperam os limites físicos de seus prédios, pessoas que não entrariam para pedir ajuda foram alcançadas. Antônio Mendonça veio pronto para o evento “Acolher para Transformar”. Ele trabalha vendendo picolé e sempre passa pelo Centro Pop, onde foi avisado sobre o mutirão de atendimentos.

Chegou com seu filho de três anos de idade e a menina, com seis. “Eu tenho cinco filhos, então vou aproveitar isso aqui e tirar a identidade das crianças, o CPF. E aí eu tenho um processo, então vou na Defensoria e aproveitar para ver como tá.”

Nesse ano, Antônio e sua mulher foram beneficiados com o aluguel social e sua família deixou de morar nas ruas. “Eu sou dependente químico né? Desde os nove anos de idade eu uso droga, mas eu estou com 70 dias que não uso mais. Eu levo meus filhos para escola e estou batalhando”, sintetiza sua luta contra os traumas geracionais.

Todas as pessoas que vivem múltiplas vulnerabilidades têm histórias de vida complexas. Eles contam sua trajetória de uma forma que os fatos parecem suceder atropelando suas expectativas. Por consequência, sofrem o fenômeno no qual são ignoradas pela maioria da sociedade.

Essa ocultação do outro ocorre pelos mais variados motivos: por estarem sujos, por achar que vão pedir dinheiro, pela depreciação de sua condição, pela sua fragilidade ou agressividade, pela impotência de não poder ajudar ou até por não os entender.

As palavras de Kelson Lustosa resumem esse contexto de desprezo social. “Nós somos invisíveis para a sociedade, nós somos lixo, né?” Ele também foi atendido no Projeto Cidadão e tirou sua carteira de trabalho. Contou que queria o documento porque, no dia seguinte, iria para o centro de recuperação e queria mudar de vida.

A invisibilidade também foi citada pelo representante do Movimento Acreano das Pessoas em Situação de Rua, Hudson Nunes. Ele tem 50 anos de idade e há 20 mora nas ruas, onde sobrevive vendendo esculturas de balões às famílias que estão em restaurantes e praças públicas.

Ele destacou a importância da iniciativa do TJAC. “Esse é um momento de resgate, onde a gente sai da invisibilidade. O fato da pessoa estar na rua não quer dizer que necessariamente vive num mundo de drogadição. Nas ruas de Rio Branco temos pessoas com problemas de alcoolismo, depressão, soropositivas, pobreza extrema, negros, índios, mulheres, homossexuais. A rua é muito diversa e heterogênea.”

O Projeto Cidadão é realizado pelo TJAC há 27 anos. E essa foi a primeira edição em que todo o trabalho é voltado apenas para pessoas em situação de rua, desburocratizando a prestação de serviços e colocando em relevo a acessibilidade, concretizando a Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua.

Peculiaridades

Segundo o Censo 2021, a capital acreana possui pouco mais de 400 mil habitantes. Por sua vez, o Centro Pop tem cadastrado cerca de 300 pessoas em situação de rua. A partir desses dados, conclui-se que menos de 0,1% da população da capital acreana está nessa situação. Essa é a mesma proporção da realidade brasileira. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mais de 220 mil pessoas viviam em situação de rua em 2020.

Ainda assim, a gestora da unidade municipal de assistência social para a população em situação de rua, Beth Pinheiro, explicou a grande dificuldade diária em efetivar o trabalho no Centro Pop devido as particularidades de cada um. “Eu fico muito feliz de ter um evento assim como o ‘Acolher para Transformar’, porque amplificamos coisas boas, nos unimos pelo mesmo propósito e ajudamos vidas.”

O lema “Acolher para Transformar” foi idealizado pela desembargadora Eva Evangelista. “Não podemos deixar de perceber outro ser humano. Garantir dignidade, independentemente da raça, sexo, nacionalidade, etnia, religião é assegurar os direitos humanos. A missão do TJAC é muito clara: garantir Justiça e paz social, para que isso ocorra é preciso ter empatia, solidariedade e atitudes, por isso estamos aqui.”

“É com extrema satisfação que estamos com esse projeto ‘Acolher para transformar’. Acolher com vontade, acolher com efetividade e transformar. Porque se um de nós conseguir levar um alento, um diferencial para, que seja, uma pessoa, já será uma missão cumprida. É isso que o Poder Judiciário do Acre quer”, afirmou a presidente do TJAC, desembargadora Waldirene Cordeiro.

Durante os dois dias de evento foram realizados mais 900 atendimentos. A lista de parceiros do Projeto Cidadão é extensa: Justiça Federal, INSS, Defensoria Pública da União e estado, Ministério Público do estado, Tribunal Regional Eleitoral, Ordem dos Advogados do Brasil seccional Acre, Superintendência Regional do Trabalho, Instituto de Identificação, Incra, governo estadual, prefeitura de Rio Branco, Polícia Civil, Energisa, Senac, Sesc e as faculdades Uninorte e Unama.

Fonte: TJAC

Macrodesafio - Garantia dos direitos fundamentais