No Recife, ressocialização do jovem em conflito com a lei começa no dia da sentença

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Em apenas três anos de projeto, as transformações promovidas na vida de dois jovens são motivo de orgulho para a equipe do CICA Cidadania. Foto: TJPE
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O adolescente que recebe da Justiça uma medida socioeducativa em meio aberto por cometer um ato infracional no Recife recebe também um apoio que nunca teve para se inserir na sociedade. O projeto CICA Cidadania do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) acompanha jovens sentenciados a prestar serviços à comunidade ou a cumprir um período em liberdade assistida a partir do dia do julgamento.

Desde 2019, a integração de vários órgãos públicos que assistem esse público entrega serviços que muitas pessoas nem sequer conheciam antes da sentença, como uma consulta ao dentista ou uma sessão de psicanálise. O sucesso da iniciativa que já afetou a vida de pelo menos 500 jovens levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a conceder ao projeto o 1º Prêmio Prioridade Absoluta, na categoria Juiz, eixo Protetivo.

Depois do julgamento, adolescentes participam de uma audiência coletiva com outros jovens na mesma situação, familiares e com a equipe do projeto. Em uma conversa, aprendem sobre como cumprirão a medida socioeducativa e qual a proposta de ressocialização do CICA Cidadania. Ao contrário da medida de internação, o jovem não é mantido em uma instituição do Estado. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a liberdade assistida é uma medida concedida pela Justiça para que o poder público acompanhe, auxilie e oriente o adolescente que comete um ato infracional sem gravidade ou de maneira repetida.

O Estatuto determina ainda que se promova a inserção social, escolar, profissional, comunitária e familiar do jovem sentenciado. “Está escrito há mais de 30 anos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança, mas implantar na prática é difícil”, afirma o magistrado responsável pela iniciativa, Paulo Roberto de Sousa Brandão.

Depois de passar pela audiência coletiva, começa a identificação do adolescente, etapa chamada de sujeito de direitos. “Nesse momento verificamos quem tem toda a documentação. A maioria não tem certidão de nascimento ou RG. O projeto o transforma ali em sujeito de direito, capaz de exigir suas prerrogativas.”

Serviços e direitos

Depois de receber o Prêmio Prioridade Absoluta, o projeto conseguiu trazer para o Centro Integrado da Criança e do Adolescente (CICA), unidade do tribunal onde funciona a ação, um posto avançado do Instituto de Identificação que emite RG. “Fica a 10 metros da sala do projeto. O jovem tira até a foto para o documento na hora”, afirma o coordenador da iniciativa, Gerailton José da Silva.

A equipe do projeto providencia por meios virtuais os documentos que não dependem de presença, após estabelecer parcerias institucionais com secretarias municipais e estaduais, com a Justiça Eleitoral e até com a Receita Federal do Brasil. Assim, os jovens sentenciados recebem os principais documentos necessários que acompanham a vida de toda pessoa: Título de Eleitor, CPF, Carteira de Trabalho, entre outros.

De posse de toda a documentação civil, o adolescente é matriculado em uma escola de tempo integral. “A Secretaria de Educação nos cede um servidor que trabalha na sala do projeto e faz a matrícula em tempo real”, afirma o magistrado.

O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que a educação é uma das obrigações da entidade responsável por aplicar a liberdade assistida – no Recife, a tarefa cabe ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). A equipe do Centro faz a triagem das necessidades sociais objetivas. Pode ser a falta de uma consulta médica ou de pensão alimentícia.

Um convênio com a Assembleia Legislativa de Pernambuco assegura ao jovem em liberdade assistida que tiver um problema de saúde acesso ao serviço médico e odontológico da instituição. Um dia da semana é reservado aos atendimentos dos adolescentes do CICA Cidadania.

Outra parceria, esta com a Defensoria Pública do estado, representa filhos e mães em busca de seus direitos nas varas de família. São tantos pedidos de pensão alimentícia, de definição de guarda e de reconhecimento tardio de paternidade que uma parceria com a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) está sendo viabilizada para garantir assistência legal aos jovens do projeto, além de serviços voluntários nas áreas de serviço social, pedagogia e psicologia.

Profissionalização

A terceira etapa do projeto é a preparação para a aprendizagem profissional do jovem para sua futura incorporação ao mercado de trabalho. Com o auxílio de outros parceiros do projeto – Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee) e do Tribunal Regional do Trabalho (TRT6) –, os adolescentes recebem orientações indispensáveis à permanência no mundo do trabalho.

“É um desembargador do TRT6 que ministra o curso. Fala-se de história, ciência, vida. Eles vão tendo a noção de que precisam mudar de vida, mas que isso tem de partir deles, não pode ser algo imposto”, diz o juiz gestor do projeto, Paulo Roberto de Sousa Brandão.

Quando a demanda é de ordem subjetiva, o projeto viabiliza sessões de psicanálise, graças a uma parceria com o Instituto Freudiano de Pernambuco. São atendidos durante seis meses, gratuitamente, tanto os jovens como suas mães, que em geral os criam sozinhas, com o abandono dos filhos pelos pais.

“Muitas vezes a mãe é a única figura de referência desses jovens. Em geral essas mulheres passam todo o tempo desassistidas. Muitas vezes não têm quem as escute, acolha e atenda”, diz Gerailton José da Silva. Na área da infância e juventude desde 2002, o servidor do TJPE acabou por se especializar no assunto e se formou psicanalista.

Realização

Em apenas três anos de projeto, as transformações promovidas na vida de dois jovens são motivo de orgulho para a equipe do CICA Cidadania. “Um menino chegou no projeto como assaltante e consumidor de drogas. Agora, entrou na universidade e no Programa Jovem Aprendiz. Hoje tenho uma reunião com o reitor. Vou pedir bolsa de estudos”, afirmou. Uma ex-adolescente em conflito com a lei tornou-se a única mulher no curso de engenharia mecânica na Universidade Federal de Pernambuco e foi aprovada no concurso de sargento especialista da Aeronáutica.

“São pessoas negras, o que gera um estigma grande, mas mostramos que pode ser realizado com apoio e foco. Esses casos servem de prova social do quão pouco custa fazer para a transformação desses adolescentes”, afirmou o coordenador do projeto. A ação não traz custos para o tribunal pernambucano ou para as instituições públicas que dela participam oferecendo serviços públicos ou trabalho voluntário.

Manuel Carlos MontenegroAgência CNJ de Notícias

Essa matéria faz parte de uma série que apresenta os projetos vencedores da primeira edição do Prêmio Prioridade Absoluta, anunciados em dezembro de 2021.

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