Especialistas debatem as consequências de abrigos para crianças

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Raciocínio abaixo da média, atraso escolar, depressão, pseudoautismo e insegurança são algumas das consequências para crianças e adolescentes que passam por abrigos, na avaliação de especialistas que trabalham nas redes de acolhimento em parceria com o Poder Judiciário.

As consequências psicológicas desse processo para crianças e adolescentes foram tema do workshop em Curitiba, organizado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para debater mudanças no Cadastro Nacional de Adoção (CNA).

No Brasil existem em torno de 46 mil crianças e adolescentes em situação de acolhimento, que vivem atualmente nas quase 4 mil entidades acolhedoras credenciadas junto ao Judiciário em todo o País, conforme dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), coordenado pela Corregedoria. No entanto, conforme demonstra o cadastro de adoção, das crianças que vivem em abrigos, 7,850 mil estão disponíveis para adoção e há 40,5 mil pretendentes à espera de uma criança.

De acordo com a psicóloga e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lídia Natália Dobriansku Weber, que pesquisa abrigos há quase 30 anos, crianças em instituições recebem respostas inconsistentes quando choram ou passam por situações de estresse, já que nem sempre é possível que alguém esteja disponível para confortá-las. O ambiente empobrecido de estímulos, sem retorno afetivo, acarreta menos conexões cerebrais no desenvolvimento das crianças.

“O amor familiar é o que nos constitui, aprendemos na família a amar o nosso semelhante. Não é o tipo de família que é importante, mas as relações que se desenvolvem nela”, diz Lídia, autora do livro “Pais e filhos por adoção no Brasil: características, expectativas e sentimentos”.

“Sinto uma dor dentro de mim que não passa”, “A vida inteira eu quis ter uma família e fui privada disso”, “não tenho ideia de como vai ser a vida”, “será que não teria ninguém no mundo que quer ficar comigo?” –, as frases foram relatadas à psicóloga Lídia em pesquisa feita nos abrigos do Paraná, na qual se constatou que pelo menos 25% das crianças e adolescentes tinham sinais de depressão.

Pseudoautismo

O encaminhamento de crianças e adolescentes para famílias que possam cuidar delas até que retornem à família de origem ou sejam encaminhadas à adoção, as chamadas famílias acolhedoras, tem sido uma alternativa para assegurar que crianças pequenas recebam um tratamento individualizado.

De acordo com Lídia, na Europa existem leis que proíbem que crianças com menos de três anos estejam em abrigos devido ao prejuízo que isso causa em sua formação. “Essas crianças em instituições grandes podem acabar voltando-se para si mesmas, o que a gente chama de um pseudo-autismo”, diz Lídia. O termo costuma ser utilizado em casos de crianças expostas a condições de extrema precariedade de condições psicossociais.

Na opinião da psicóloga Maria da Penha Oliveira, coordenadora da ONG Aconchego – parceira do poder judiciário em programas de preparo e acompanhamento de adoção e de apadrinhamento afetivo, entre outros – , a fase de vida de zero a seis anos é a mais importante da criança, cujo desenvolvimento vai influenciar muito o adulto que se tornará. “Já é consenso que uma criança nessa fase não pode ser acolhida em um espaço coletivo, precisa de cuidados individuais”, diz Penha.

Desenvolvimento atrasado e falta de referência

A ONG Aconchego está em tratativas com o Governo do Distrito Federal (GDF) para implantação, até o fim do ano, de um programa de famílias acolhedoras – no DF, há cerca de 300 crianças em situação de acolhimento. “A criança pequena percebe a si mesma e à mãe como um ser único. Precisa de um cuidador que represente a figura materna e faça esse vínculo”, diz Penha.

Na opinião da psicóloga Tatiana Barile, do Instituto Fazendo História, em São Paulo, os danos do acolhimento para a primeira infância são muito mais irreversíveis do que nas outras idades. O Instituto Fazendo Histórias é responsável, atualmente, pela capacitação e acompanhamento de dez famílias no Estado. A psicóloga diz que, nas instituições, os bebês geralmente são cuidados por cuidadores que se dividem em quatro turnos durante o dia, cada um com seu jeito – em um dos abrigos que o instituto acompanha, o mesmo bebê era colocado para dormir cada dia em um berço, por exemplo. “Por melhor que seja a instituição de acolhimento, questões institucionais prejudicam. Os bebês se apegam à voz, ao jeito de conversar, e a partir dessa referência se sentem seguros para o desenvolvimento”, diz.

A psicóloga Tatiana lembra de um estudo feito por pesquisadores da universidade de Harvard, durante 16 anos, em instituições de acolhimento da Romênia com bebês que foram institucionalizados. O estudo concluiu que para cada ano que passa em uma instituição, o bebê perde quatro meses do seu desenvolvimento cerebral e de sua autonomia.

Atraso escolar e tráfico de drogas

Preocupada com a situação de adolescentes que estão prestes a completar 18 anos de idade e têm de deixar o abrigo sem perspectiva de trabalho ou estudo, o Instituto Amigos de Lucas – ONG do Rio Grande do Sul que trabalha há 19 anos em programas de adoção e apadrinhamento – firmou parcerias com universidades para oferecer 80 bolsas integrais em cursos técnicos. As bolsas foram ofertadas a jovens que vivem em instituições de acolhimento de Porto Alegre e têm entre 15 e 17 anos, realidade de 657 adolescentes.

No entanto, apenas três vagas foram preenchidas, com os únicos jovens que estão nessa faixa etária e cursam o Ensino Médio, como seria o esperado para a idade. “A defasagem escolar é a regra nos abrigos. Nas instituições, em geral, ninguém cobra que a criança estude, não há alguém que realmente se preocupe com o fato de ela ter feito dever de casa, por exemplo”, diz Rosi Prigol, presidente do Instituto Amigos de Lucas.

No Rio Grande do Sul, há 5 mil crianças e adolescentes vivendo em instituições de acolhimento. De acordo com Rosi, em Porto Alegre, há apenas uma república disponível para acolher os jovens que deixam o abrigo e conseguir vagas é quase impossível. O caminho desses adolescentes que deixam o abrigo sem perspectiva de trabalho ou estudo é, muitas vezes, o tráfico de drogas. “Eles deixam o abrigo e vão morar nos presídios”, diz Rosi.

Possibilidade de recuperação

Apesar de achar que nada é mais difícil do que o desamparo de uma criança, Lídia afirmou, durante o workshop, que mesmo passando por uma situação de acolhimento o cérebro pode se recuperar caso essas crianças contem depois com um cuidador que promova carinho e segurança.

Para Lídia, é preciso combater as causas do abandono, como a pobreza, o despreparo dos pais e a ausência de apoio familiar. “Pobreza não é motivo de se fazer uma destituição familiar. Mas quem são as crianças que estão em abrigos? São os pobres, infelizmente são duas coisas que se acumulam”, diz.

Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias