Corte Interamericana dos Direitos Humanos indica CNJ para mediar impasse da saúde mental no Brasil

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Audiência pública Comissão Interamericana de Direitos Humanos: caso Ximenes Lopes, secretário-geral do CNJ, Valter Shuenquener - Foto: G. Dettmar//Ag.CNJ
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A Corte Interamericana dos Direitos Humanos (Corte IDH) indicou na última sexta-feira (23/4) o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como mediador de um impasse em relação ao atendimento em casos de saúde mental que trouxe o Brasil de volta ao foco do tribunal. O problema está ligado à primeira condenação do Estado brasileiro na corte. Em 2006, a Corte IDH sentenciou o Brasil por falhar em levar a julgamento os responsáveis pelo assassinato de Damião Ximenes Lopes, morador de Sobral/CE que em 1999 acabou morto três dias após dar entrada em unidade médica de saúde mental, com sinais de maus-tratos e tortura.

A sentença do tribunal internacional exigiu do Estado brasileiro diversas reparações em função dos direitos que foram violados no caso: à vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial. Todos estão previstos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que desde 1992 tem status de lei no Brasil. Desde que foi condenado, o país atendeu a todas as reparações exigidas pela sentença, exceto a de promover continuamente o treinamento das equipes psicossociais que atendem a pessoas com transtorno ou deficiência mental em todo o país, para evitar que o Caso Ximenes Lopes se repita.

O Brasil foi então convocado para uma audiência de supervisão do Caso Ximenes Lopes, na última sexta-feira (23/4), em que representantes do Estado brasileiro e da sociedade civil apresentaram diagnósticos sobre o quadro do atendimento à saúde mental no país divergentes entre si. Enquanto os advogados que representaram a família de Ximenes Lopes e especialistas apontaram violações aos direitos humanos que encontraram durante inspeções a hospitais psiquiátricos, os representantes do governo central anunciaram um programa permanente de capacitação de agentes de saúde mental. 

Diante do impasse, juízes da Corte IDH propuseram ao CNJ que lidere uma tentativa de diálogo entre as partes conflitantes. De acordo com a presidente do órgão, juíza Elizabeth Odio Benito, o objetivo da iniciativa é incorporar ao programa de treinamento anunciado pelas autoridades federais as melhorias propostas para os serviços de saúde mental no país, durante a audiência. É preciso informar à Corte IDH se será possível formar uma mesa de diálogo, comunicar os resultados às vítimas do caso e assegurar que o curso possa ser supervisionado, de acordo com a magistrada costarriquenha.

O juiz auxiliar da Presidência do CNJ Luís Geraldo Lanfredi anunciou que o Conselho criará nos próximos dias um grupo de trabalho dedicado ao tema que poderá ser um espaço de diálogo entre as partes do caso. “O ministro Luiz Fux formalizará a criação de um grupo de trabalho que reputamos seja medida útil e adequada para estabelecer essa conexão ativa e efetiva entre as partes. Assim o CNJ poderá atuar para o desenvolvimento de um programa que seja o mais amplo e o mais compreensivo em relação às necessidades que o Brasil tem em relação à saúde mental”, afirmou Lanfredi. O magistrado coordena a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte IDH. A divisão foi criada na estrutura do CNJ em janeiro, com a aprovação da Resolução CNJ n. 364. A proteção aos direitos humanos e do meio ambiente é um dos cinco eixos da gestão do ministro Luiz Fuz à frente do Conselho.

Conflito

A audiência foi convocada pela Corte IDH após receber de organizações da sociedade civil brasileiras ligadas à luta antimanicomial denúncias sobre o não cumprimento integral da sentença e sobre a política nacional de atendimento aos pacientes de saúde mental que, de acordo com os ativistas, contrariaria a Lei 10.216/2001 (Lei de Reforma Psiquiátrica) e os parâmetros internacionais consagrados em tratados internacionais assinados pelo Brasil. O CNJ foi convidado para a audiência na condição de mecanismo nacional independente.

Quadro de “barbárie”

O representante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), Lúcio Costa, afirmou que inspeções a 40 hospitais psiquiátricos em 17 estados brasileiros realizadas em 2018 revelaram uma “situação de barbárie”. Produzido com o Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT), o Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos no Brasil apontou que 33 dos 40 hospitais visitados não tinham “qualquer atividade terapêutica” para os internos, 37 das unidades não contavam com equipe mínima para o atendimento e 60% delas utilizavam-se do trabalho de doentes internados, sob a alegação de “labor-terapia, um conceito vago que significa submissão do internado a trabalho sem que se tenha obrigação”, segundo Costa.

Na audiência, os representantes designados pelo Estado brasileiro defenderam que a atual política atende aos preceitos dos marcos legais da área e anunciaram para 2022 o início de uma ação permanente de capacitação dos profissionais que lidam com saúde mental no Sistema Única de Saúde (SUS): o Programa Permanecente em Direitos Humanos e Saúde Mental Damião Ximenes Lopes.

De acordo com a consultora jurídica do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Aline Albuquerque, o curso on-line terá carga horária de 32 horas, dividida em quatro módulos: aspectos introdutórios de direito internacional dos direitos humanos; direitos humanos e saúde; direitos humanos dos pacientes no contexto da saúde mental; jurisprudência internacional de direitos humanos e saúde mental.

“A capacitação tem o condão de propiciar ao profissional de saúde mental a identificação dos instrumentos que lhe permitam o enfrentamento de situações propensas a violações dos direitos humanos, tais como o exercício dos cuidados em saúde em condições desumanas degradantes e a efetivação desses cuidados em contextos de absoluta escassez de recursos”, afirmou a representante do governo federal.

Capacitação da Justiça

De acordo com o secretário-geral do CNJ, juiz Valter Shuenquener, o Conselho pode contribuir especialmente na capacitação de magistrados e servidores, com a expertise em cursos a distância e presenciais e as parcerias com as escolas da magistratura nos estados. “É plenamente possível dar efetividade à exigência da capacitação no âmbito do Poder Judiciário, e o apoio incondicional no sentido de que a Justiça tenha condição de orientar juízes e servidores em relação às melhores práticas quanto a este tema. Além da capacitação, o CNJ pode contribuir com a implementação de resoluções e recomendações aos juízes no sentido de fazerem inspeções mais efetivas desses estabelecimentos que privam a liberdade dos enfermos da mente”, afirmou o magistrado.

Jurisdição

A Corte Interamericana de Direitos Humanos existe desde 1979 e julga conflitos entre cidadãos e países, além de fiscalizar a efetivação das decisões e ditar medidas cautelares, quando necessário. A sede da Corte é em São José, capital da Costa Rica, e a jurisdição do tribunal se estende por 20 países que abrigam população de 560 milhões de habitantes.

O Brasil figura como réu em uma série de processos sentenciados, por violações de uma variedade de direitos, desde o direito à vida, à anistia, à verdade, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à liberdade de expressão e os direitos econômicos, sociais, culturais, discriminação, entre outros. O CNJ firmou acordo com a Corte IDH para traduzir e publicar as decisões (jurisprudência) do tribunal.

Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias