CNJ 20 anos: Justiça garante efetividade ao combate à violência contra mulheres

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Foto: G.Dettmar/Ag. CNJ
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Nas últimas duas décadas, projetos idealizados e apoiados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) protegeram e efetivaram os direitos de mulheres e meninas do Brasil e trabalharam, ainda, para barrar a violência doméstica e evitar o feminicídio. Somente no ano passado, o CNJ – órgão que institui normas e diretrizes no âmbito do Judiciário em busca de respostas eficazes a milhares de casos anuais de violência doméstica – firmou mais de 150 acordos de cooperação para iniciativas que envolvem servidores e servidoras, magistratura, professores, odontólogos, médicos, policiais, assistentes sociais e outros profissionais no enfrentamento desse flagelo, o que coloca o Brasil no 5.º lugar mais perigoso do mundo para uma mulher viver.   

Entre as iniciativas, está o Ação para Meninas e Mulheres do Marajó, promovida pelo CNJ e pelo Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), em parceria com outras entidades, para promoção do acesso à Justiça no arquipélago paraense e criação da “Sala Lilás” nas delegacias brasileiras. 

A perita médica legista Karinie Marinho trabalha no Instituto Médico Legal (IML) do município de Luziânia (GO) há 14 anos e é uma das profissionais selecionadas para receber a capacitação de atendimento especializado de vítimas de violência em cidades do estado de Goiás. Será a primeira Sala Lilás do município, sexto mais populoso do estado, com 210 mil pessoas, a 82km de Brasília (DF).  

“É fundamental termos capacitação voltada a esses casos. A maioria dos nossos atendimentos de vivos são de corpo de delito de vítimas de violência. Em um caso de violência sexual contra meninas, por exemplo, a depender do caso, o policial precisa encaminhar a vítima para aplicação do protocolo de prevenção de DSTs no hospital”, diz a médica, que destaca a importância de os profissionais terem informações sobre direito das mulheres. 

Direitos  

No Marajó, onde tramitam, atualmente, mais de 1.000 processos de crimes sexuais contra pessoas com menos de 14 anos de idade, o canal de denúncias 190 não funciona, tampouco há polícia técnico-científica disponível. Quando é preciso fazer um exame de corpo de delito, desloca-se a vítima até Belém, que fica a 3h de distância, ou contrata-se um perito especialmente para aquele caso. Vale lembrar que as distâncias do arquipélago de 40 mil km quadrados, maior ilha fluvial brasileira, só podem ser percorridas de barco.  

“Há muitos desafios a superar. Alguns deles estamos tentando com esse trabalho de articulação entre as instituições. Claramente, não temos os recursos de que precisamos para prevenir e dar o suporte necessário a todos os casos de violência contra meninas e mulheres no país. Por isso, o trabalho de interlocução do CNJ para promover ações integradas é tão relevante”, afirma a conselheira e juíza criminal Renata Gil. 

Supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do CNJ, a magistrada elogia os instrumentos criados pela Lei Maria da Penha, considerada por ela a melhor legislação do mundo contra a violência doméstica, mas ressalta: “Nenhuma lei sozinha é suficiente para interromper séculos de naturalização de violência patriarcal”.  

A magistrada diz que para garantir essa transformação é preciso mais do que leis: empenho de recursos materiais, recursos humanos e parcerias são obrigatórios. “Estamos em um momento de mudança de paradigmas. Para garantir efetividade é preciso que outros órgãos convirjam esforços para o cumprimento da lei”, completa Renata Gil.  

Em Belo Horizonte, desde 2010, policiais militares da Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica (PPVD) não só atendem as vítimas no momento da ocorrência, como acompanham os casos de maior gravidade. “Elas fazem um mês de acompanhamento, vem na casa da gente sem avisar e perguntam como estão as coisas. Vão também na casa do agressor, conversam com ele. É um trabalho muito bom. Só depois disso, passei a me sentir mais segura”, conta a professora Antônia Teixeira Fonseca, de 54 anos. Ela, hoje, está afastada das salas de aula por problemas psiquiátricos causados pelas agressões sistemáticas de seu ex-companheiro.  

Agressões verbais, patrimoniais e ameaças de morte. Foram mais de 25 boletins de ocorrência até que a professora recebesse dos agentes a proteção, o atendimento humanizado e orientação correta. “Prestei muitas queixas na delegacia contra o pai de meus filhos. Antes da Lei Maria da Penha, só me orientavam a voltar para casa e fazer as pazes com ele”, lembra. O ex-marido não chegou a ser preso, mas foi obrigado a cumprir uma obrigação considerada fundamental entre todos que trabalham no enfrentamento da violência doméstica, prevista na Lei Maria da Penha: a participação em um grupo reflexivo para homens.  

Transformação cultural 

Em 2022, o CNJ recomendou aos tribunais que instituíssem e mantivessem esses grupos para reforçar a orientação da lei. Levantamento feito em 2021 revelou haver cerca de 300 grupos ativos no país. A juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) Katerine Jatahy, ex-presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica em 2022/2023, é uma defensora inconteste desse trabalho.  

“Ele dá resultado e pode transformar a sociedade. A média de reincidência dos casos cai muito porque muda a perspectiva da responsabilidade. Encarcerar, apenas, não resolve o problema. Eles voltam, muitas vezes, ainda mais agressivos, colocando nelas mais essa culpa. Precisamos transformar a cabeça desses homens”, diz. A assistente social Márcia Borba Lins da Silva, supervisora da área no Núcleo Judiciário da Mulher do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), corrobora. 

Foto: G.Dettmar/Ag. CNJ

“Eles chegam no grupo cheio de raiva, sem entender que cometeram violência. Lá, trabalhamos a responsabilidade das ações de cada um. Grupo reflexivo não é terapia, é um espaço de transformação. A prisão, apenas, não faz ele repensar a postura de violência. A pena é necessária? É, claro! Mas é preciso levar esse homem a repensar e a ressignificar a passagem pela Justiça, o motivo real que o fez estar ali”, completa Márcia. 

Avanços históricos  

Há 42 anos, a mulher que hoje é símbolo da luta e da vitória em cima da violência doméstica, a biofarmacêutica Maria da Penha, foi brutalmente atacada por seu ex-marido e ficou com muitas sequelas, entre elas, a paralisia de seu corpo. A dupla tentativa de feminicídio ocorreu em 1983 e os recursos apresentados pelo autor do crime asseguraram a impunidade do caso por 19 anos.  

Após mobilização de entidades civis, em 2001, o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação ao caso de Penha, assim como em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA).  O CNJ monitora o cumprimento das decisões da Corte. Em agosto do ano passado, durante a XVIII Jornada Lei Maria da Penha, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, pediu desculpas formais à ativista em relação à demora, às falhas e à precária solução de seu caso.  

“Gostaria de dizer à Maria da Penha, em nome da Justiça brasileira, que é preciso reconhecer que, no seu caso, ela [a Justiça] tardou e foi insatisfatória e, portanto, nós pedimos desculpas em nome do Estado brasileiro”, afirmou Barroso.

Ministro Luís Roberto Barroso cumprimenta Maria da Penha – Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ

Para a jurista Flávia Piovesan, que participou do processo de litigância do caso Maria da Penha na CIDH, o reconhecimento da responsabilidade da Justiça é um ato de extrema relevância e pleno de significado. “Ele simboliza uma reparação à Maria da Penha por justiça e reconhece a responsabilidade do Estado, que não assegurou direito à integridade física, psíquica e mental a essa uma mulher, que representa milhares a sofrer violências em nosso país”, afirmou a ex-comissária da CIDH de 2018 a 2021 e coordenadora científica da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões do Sistema Interamericano de Justiça (UMF/CNJ).  

“O gesto traduz a importância de termos uma vida com respeito, integridade e dignidade. Não há direitos humanos sem a plena observância, em igualdade de condições, dos direitos das mulheres”, completou a jurista. 

Justiça do futuro 

Em novembro passado, a juíza do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) Ana Carolina Santana surpreendeu as pessoas presentes no julgamento do Tribunal do Júri momentos antes de anunciar a sentença do autor do crime de feminicídio. A magistrada leu uma carta escrita por ela e direcionada à vítima assassinada, expondo o machismo reiterado nas tentativas de desqualificar a vida e a moral da vítima ao longo do processo.  

“Não foi fácil ver situações tão delicadas sobre sua vida pessoal sendo expostas aqui como tentativa de desqualificá-la. Se tomava remédio controlado, se era portadora de borderline. Foram alguns dos relatos que foram ditos aqui por algumas testemunhas (…) quem aqui estiver com a saúde mental 100% em dia que atire a primeira pedra, e pode atirar até em mim. Principalmente, as mulheres que passam por relacionamentos abusivos e tóxicos. Você foi absolvida”, disse a magistrada.  

O julgamento já reflete o momento de avanços da Justiça, coroado pelo Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, tornado obrigatório para todo o Poder Judiciário em 2023, pelo CNJ, e construído para que os julgamentos sejam cada vez menos carregados de preconceitos, estereótipos, descaso e impunidade.    

Este texto faz parte da série “CNJ 20 anos”, que será publicada ao longo dos próximos meses para mostrar os diversos públicos alcançados pelas ações do Conselho.

Texto: Regina Bandeira 
Edição: Thaís Cieglinski 
Arte: Lucas Lobato
Revisão: Matheus Bacelar
Agência CNJ de Notícias 

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