Artigo – Justiça 4.0: uma nova onda de acesso à Justiça

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Artigo publicado originalmente no Jota, em 4 de julho de 2022

Valter Shuenquener de Araújo*, Anderson de Paiva Gabriel** e Fábio Ribeiro Porto***

O Poder Judiciário brasileiro se encontra na vanguarda tecnológica e já é referência mundial quando se trata de acesso à Justiça Digital. Motivo de orgulho para o nosso país.

No Brasil, qualquer cidadão pode obter informações sobre um processo sem sair de sua casa, realizando uma videoconferência diretamente com a serventia por meio do Balcão Virtual, instituído pela Resolução CNJ n. 372/2021.

Como se esse já não fosse um avanço extremamente salutar e sem paralelo global, também é possível a qualquer indivíduo participar de uma audiência, seja como vítima, testemunha ou parte ré, por videoconferência, nos termos da Resolução CNJ n. 337/2020, que dispõe sobre a utilização de sistemas de videoconferência no Poder Judiciário, e Resolução CNJ n. 354/2020, que dispõe sobre o cumprimento digital de ato processual e de ordem judicial e praticamente sepulta as cartas precatórias.

No entanto, mais do que isso, já é possível que o jurisdicionado opte por ter todos os atos processuais por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores. Trata-se do “Juízo 100% Digital” (Resolução CNJ n. 345/2020), já em funcionamento em mais de 11 mil unidades judiciárias, o que significa quase 50% do Poder Judiciário brasileiro.

Por fim, como ápice dessa transformação digital, aponte-se a publicação da paradigmática Resolução CNJ n. 385/2021, aprovada por unanimidade e que autorizou a disruptiva instituição dos “Núcleos de Justiça 4.0”, em que todos os processos tramitam nos moldes do “Juízo 100% Digital” e sem qualquer sede ou instalações físicas.

Permite-se, assim, que sejam especializados em razão de uma mesma matéria e com competência sobre toda a área territorial situada dentro dos limites da jurisdição do tribunal, não só maximizando o acesso à justiça, mas, também, possibilitando uma prestação jurisdicional mais efetiva e em tempo razoável.

Como destacou Steven Pinker “a revolução digital, ao substituir átomos por bits, está desmaterializando o mundo bem diante de nossos olhos”. Parafrasendo o pensador canadense, estamos desmaterializando o prédio da Justiça e criando o “fórum virtual”.

Os Núcleos tem o condão de redesenhar, reogarnizar e reestruturar o Poder Judiciário brasileiro, proporcionando, em um futuro não muito distante, o fatal redimensionamento dos conceitos territoriais de “Comarca” e “Seção Judiciária”, de modo que a competência territorial do magistrado não precise estar restrita a um único Município ou microrregião. A normativa tornou possível um cartório 100% digital, acelerando o julgamento dos feitos e, ao mesmo tempo, minimizando o impacto da carência de servidores.

Depois de pouco mais de um ano da publicação da citada Resolução, já existem pelo menos 48 Núcleos de Justiça 4.0 em funcionamento no Brasil, permitindo que o cidadão conte com uma tutela diferenciada em determinadas matérias. Diversos tribunais instalaram Núcleos de Justiça 4.0 para tratar da temática saúde pública, a exemplo do TRF2, TRF4, TJTO, TJAP, TJPE, TJGO, TJPB e TJRR.

No âmbito do TJRJ, já são 7 Núcleos de Justiça 4.0 instalados: 1 – com competência para processar e julgar as matérias de propriedade industrial, direitos autorais e nome comercial; 2 – com competência para processar e julgar as matérias relativas a execução concentrada dos clubes de futebol; 3 – com competência para processar e julgar ações judiciais relativas aos Juizados Especiais da Fazenda Pública; 4 – Ambiental; 5 – Saúde Pública; 6 – Saúde Privada (Vara Cível); 7 – Saúde Privada (JEC).

Os recursos tecnológicos de transmissão de sons e imagens em tempo real, isto é, o uso, entre outros, da videoconferência, já encontrava amplo respaldo legal, nos termos dos arts. 185, § 2º, 217, e 222, § 3º do Código de Processo Penal, bem como dos arts. 236, § 3º; 385, § 3º, 453, § 1º, 461, § 2º, e 937 § 4º do Código de Processo Civil.

A hodierna compreensão de prestação jurisdicional como serviço, amplamente acessível e compreensível pela população, além de permanentemente disponível, reivindica a superação de uma tradição que associava a Justiça a um lugar e a uma ritualística. É uma mudança sem precedentes que, em lugar de afastar, aproxima o cidadão do Poder Judiciário.

Na atual sociedade da informação, os pronunciamentos jurisdicionais não mais se legitimam apenas em razão de um título, um local ou de uma solenidade; a autoridade de nossas decisões depende de nosso esforço ético de justificação e de nossa capacidade de comunicação dos motivos determinantes das escolhas realizadas.

Muito embora tenham cedido espaço no palco, a liturgia e o rito ainda são necessários. A prova disso é a aprovação da recente Resolução do CNJ que institui diretrizes para a realização de videoconferências no âmbito do Poder Judiciário, de modo a aprimorar a prestação jurisdicional digital.

Cumpre ressaltar, no ponto, que o o art. 196 do CPC/2015 atribui ao CNJ a competência para regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos.

Assim, nos termos da Resolução CNJ n. 465/2022, nas hipóteses em que for realizada videoconferência no exercício da magistratura, em que todos ou alguns dos participantes do ato estiverem em local diverso do gabinete, da sala de audiências ou de sessões, os magistrados, deverão zelar pela identificação adequada, na plataforma e sessão, utilização de vestimenta adequada, como terno ou toga, bem como de fundo adequado e estático, preconizando-se o uso de modelo padronizado disponibilizado pelo tribunal a que pertença, se for o caso; imagem que guarde relação com a sala de audiências, fórum local ou tribunal a que pertença, ou fundos de natureza neutra, como uma simples parede ou uma estante de livros.

Recomenda-se, ainda, que os magistrados, ao presidirem audiências velem pela adequada identificação, na sessão, de promotores, defensores, procuradores e advogados, devendo aquela abarcar tanto o cargo, a ocupação ou função no ato quanto nome e sobrenome, assim como pela utilização de vestimenta adequada por parte dos participantes, como terno ou beca; e certifiquem-se de que todos se encontram participando da videoconferência com a câmera ligada, em condições satisfatórias e em local adequado.

A recusa de observância dessas diretrizes, nos termos da Resolução, pode justificar a suspensão ou adiamento da audiência, bem como a expedição, pelo magistrado, de ofício ao órgão correicional da parte que descumprir a determinação judicial.

Rodrigo Fux e Renata Gil, com lastro na obra de Cappelletti, que se dedicou a estudar o acesso à Justiça, consideram que o emprego de tecnologia no Sistema de Justiça configura uma nova onda de renovação no acesso à Justiça (a quarta). Comungamos da tese.

No mundo, mais de 65% da população já tem acesso à internet[17], sendo que, no Brasil, dados do IBGE indicam que “o percentual de domicílios que utilizavam a Internet subiu de 74,9% para 82,7%, de 2017 para 2019”, enquanto dados da Agência Nacional de Telefonia (Anatel) revelam que o total de telefones celulares ativos no país alcançou a marca de 252,8 milhões em novembro de 2021, número superior ao total da população brasileira (a 32ª Pesquisa Anual do FGV assinala que o Brasil tem 440 milhões de dispositivos digitais em uso).

A principal crítica feita aos avanços da chamada “Justiça 4.0” está relacionada aos vulneráveis e excluídos digitais, isto é, pessoas que não detêm acesso à internet e a outros meios de comunicação digitais, bem como que não detenham conhecimento suficiente para utilizá-los, ainda que com emprego de tecnologia assistiva.

Todavia, com frequência, o modelo tradicional de Judiciário, com sedes físicas denominadas fóruns, também não se mostra eficiente para o adequado acesso à Justiça dessas pessoas, já que o comparecimento nos fóruns de alvenaria demanda gastos com transporte, alimentação e, ainda, a perda de um dia de trabalho, revelando-se ainda mais custoso para indivíduos desassistidos.

Mesmo para essas pessoas, a Justiça Digital pode ser a melhor solução, e o CNJ tem se mostrado vigilante, possibilitando, desde 2020, que os vulneráveis e excluídos digitais possam participar de audiências por videoconferência a partir das salas disponibilizadas pelo Poder Judiciário nos fóruns, nos termos da Resolução CNJ n. 341/2020. Com efeito, podem se deslocar ao fórum mais próximo de sua residência e não necessariamente àquele em que o ato processual está sendo realizado.

Como já salientado, para além da hipossuficiência financeira, a exclusão digital também pode decorrer da vulnerabilidade técnica ou informacional, isto é, mesmo indivíduos com boas condições financeiras, acesso à internet e equipamentos adequados, podem ter dificuldade em acessar a Justiça Digital, protocolizar petições ou participar de audiências virtuais. É o que ocorre muitas vezes com idosos.

Assim, em 2021, o Conselho avançou ainda mais, publicando a Recomendação CNJ n. 101/2021 e orientando os tribunais brasileiros a disponibilizarem, em suas unidades físicas, pelo menos um servidor em regime de trabalho presencial durante o horário de expediente regimental, ainda que cumulando funções, para atendimento aos excluídos digitais, a fim de garantir o amplo acesso à justiça, efetuar o encaminhamento digital dos eventuais requerimentos formulados e auxiliar o jurisdicionado naquilo que se revelar necessário.

No último dia 14 de junho, o CNJ aprovou um novo ato normativo (Recomendação CNJ n. 130/2022), que tem potencial para solver de vez o problema, recomendando aos tribunais a instalação de Pontos de Inclusão Digital (PID), por meio da celebração de acordos de cooperação com os Ministérios Públicos, com as Defensorias Públicas, com as Procuradorias, com as Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com as polícias, com os municípios e com órgãos da Administração Pública Direta e Indireta, que se situem na área territorial de suas competências, possibilitando, assim, a multiplicação de portas de acesso ao Poder Judiciário.

Consistirão os Pontos de Inclusão Digital (PID) em salas que permitam, de forma adequada, a realização de atos processuais, principalmente depoimentos de partes, testemunhas e outros colaboradores da justiça, por sistema de videoconferência, bem como a realização de atendimento por meio do Balcão Virtual, instituído pela Resolução CNJ n. 372/2021.

Destacou o ministro Luiz Fux no voto que levou à aprovação da Recomendação:

Como certa vez apontou Calamandrei: “Debaixo da ponte da justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações…”, razão pela qual o Poder Judiciário deve estar próximo dos cidadãos, em especial, daqueles que mais precisam.

Nesse passo, mencione-se as exitosas experiências dos Tribunais de Justiças dos Estados de Roraima (TJRR) e de Rondônia (TJRO).

Com efeito, o TJRR, por meio do Programa “Justiça Cidadã” e da Resolução TJRR nº 12/2021, vem instituindo “Postos Avançados de Atendimento” em todos os municípios que não são sede de comarca e que, muitas vezes, se situam em locais distantes e de difícil acesso, com a finalidade de ampliar e facilitar o acesso à justiça, mediante a realização de atos processuais e a oferta de serviços judiciais, por videoconferência, tais como audiências e atendimentos eletrônicos.

Nesse passo, a primeira comunidade escolhida foi a terra indígena Waimiri-Atroari, localizada na divisa entre Roraima e Amazonas, já havendo instalações também em Iracema, Amajari e Normandia.

Por sua vez, o TJRO, desenvolveu o Programa “Fórum Digital”, buscando ofertar serviços judiciais à população, de forma eletrônica e remota, em parceria com Prefeitura, Ministério Público, Defensoria Pública e demais instituições de interesse da justiça, com otimização de recursos, ressaltando-se que dos 52 municípios de Rondônia, somente 23 são sede de comarca, e que a instalação e manutenção de comarcas nestes municípios é inviável, já que somente a construção dos prédios custaria em torno de R$ 6 milhões.

O Ato Conjunto n°. 026/2021 viabilizou a instalação do Fórum Digital de Mirante da Serra, poupando seus cidadãos de terem que passar por uma viagem de pelo menos 04h15, se de carro, até o Fórum de Porto Velho, para acessarem a Justiça.

As louváveis iniciativas inspiram o presente ato normativo, cumprindo assentar que, ao recomendar a instalação de Pontos de Inclusão Digital (PID), preconiza este Conselho que esses deverão contar, ainda, com mais de uma câmera no ambiente, ou de câmeras 360 graus, de modo a possibilitar a visualização integral do espaço, assim permitindo que magistrados, integrantes do Ministério Público e partes possam se certificar das condições em que o ato está sendo realizado, garantindo-se, dessa forma, a qualidade da tutela jurisdicional prestada e a higidez processual.

A Justiça 4.0 e a consequente promoção do acesso à justiça digital, como forma de incrementar a governança, a transparência e a eficiência do Poder Judiciário, permitindo efetiva aproximação com o cidadão e redução de despesas, configuram um dos eixos prioritários da gestão do Ministro Luiz Fux como Presidente do CNJ.

A cada dia, precisamos menos de grandes construções de prédios para sediar fisicamente o Poder Judiciário. Duração razoável, transparência e linguagem compreensível substituem as colunas romanas dos palácios da justiça.

Os excluídos digitais não devem ser tratados como empecilho à transformação tecnológica, cuja finalidade é garantir o acesso à justiça e não o contrário, sendo certo que novel Resolução pode proporcionar a inclusão digital de muitos cidadãos, viabilizando o acesso a múltiplos serviços estatais, mediante compartilhamento dos custos, nos mais longínquos locais do nosso Brasil de dimensões continentais.

A denominada Justiça 4.0, portanto, amplia, sobremaneira, as possibilidades de acesso à justiça da população, inclusive das camadas mais pobres, que devem ter a faculdade de recorrer à prestação jurisdicional digital, sob pena de ficarem, na prática, alijadas do Sistema de Justiça.

Como já afirmou Peter Drucker, “a melhor forma de prever o futuro é criá-lo”, e o CNJ, ao longo do último biênio, tem transformado o Judiciário brasileiro, utilizando todo o potencial tecnológico de que dispomos para maximizar o acesso à Justiça e possibilitar uma prestação jurisdicional mais efetiva e em tempo razoável.

Muitos desafios ainda estão por vir e as dificuldades para tornar a justiça mais ágil e eficiente não são desprezíveis. Mas uma coisa é certa: ninguém pode negar que a Quarta Revolução Industrial já se inseriu, de maneira irreversível e como em nenhum lugar do mundo, no Poder Judiciário brasileiro.

(*) Valter Shuenquener de Araújo é juiz federal, secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), professor associado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor e mestre em Direito Público pela UERJ e conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) entre 2015 e 2020.
(**) Anderson de Paiva Gabriel é juiz do TJRJ, juiz auxiliar da Presidência do CNJ, doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ e pesquisador visitante (Visiting Scholar) na Berkeley Law School (University of California-Berkeley).
(***) Fábio Ribeiro Porto é juiz do TJRJ, juiz auxiliar da Presidência do CNJ, mestre em Direito na UERJ, pós-graduado em Direito Privado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor palestrante da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), da Escola de Administração Judiciária do TJRJ,  do curso de Pós-Graduação em Direito Privado da UFF.

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