Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0006469-96.2017.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SECCAO DO RIO G DO SUL
Requerido: FABIANA DOS SANTOS KASPARY

 


EMENTA

 

RECURSO ADMINISTRATIVO NA RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. EXIGÊNCIA DE PROCURAÇÃO ESPECÍFICA PARA RECEBER VALORES. VIOLAÇÃO DO ART. 105 DO CPC. INOCORRÊNCIA. PODER DE CAUTELA DO MAGISTRADO. MATÉRIA JURISDICIONAL. INTERPRETAÇÃO LEGAL. 

1. Recurso administrativo baseado na alegação de violação do cumprimento dos deveres funcionais do magistrado ao interpretar a norma do art. 105 do CPC e exigir procuração específica para recebimento de valores.

2. Infere-se dos autos o uso do poder de cautela, previsto no ordenamento jurídico, do qual se valeu a magistrada no momento do levantamento do crédito, sem qualquer evidência de desvio disciplinar, não cabendo ao CNJ, enquanto órgão de controle administrativo, adentrar no mérito da decisão de cunho judicial, mesmo que eventualmente equivocada, pois a impugnação deve ser feita através dos meios de impugnação previstos no ordenamento processual civil.

3. Nos termos do art. 41 da Lei Complementar n. 35/79 (LOMAM), “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”.

4. Os princípios da independência e da imunidade funcionais obstam, via de regra, a possibilidade de punição de magistrado pelo teor dos entendimentos manifestados em seus julgados. A relativização ocorre em situações excepcionais, a exemplo daquelas em que reste evidenciada a quebra do dever de imparcialidade, impropriedade ou excesso de linguagem.

5. In casu, não se constatou no decisum impropriedade ou excesso de linguagem, tendo se baseado em hermenêutica e motivação judicial da magistrada acerca das normas orientadoras da matéria.

6. Não ensejam punição disciplinar os julgamentos que decorram do entendimento livremente manifestado pelo magistrado (livre convencimento motivado), sem nenhum indício de desvio ético ou de conduta, sob pena de chancelar “infração disciplinar de opinião”.

7. Ademais, a competência constitucional do Conselho Nacional de Justiça é restrita ao âmbito administrativo do Poder Judiciário, não lhe cabendo exercer o controle de ato de conteúdo judicial para corrigir eventual vício de ilegalidade ou nulidade.

8. Exame de matéria eminentemente jurisdicional não enseja a intervenção do Conselho Nacional de Justiça, por força do disposto no art. 103-B, § 4º, da CF.

Recurso administrativo não provido. 

 S34

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Plenário Virtual, 16 de agosto de 2019. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Dias Toffoli, Humberto Martins, Aloysio Corrêa da Veiga, Iracema Vale, Daldice Santana, Valtércio de Oliveira, Márcio Schiefler Fontes, Fernando Mattos, Luciano Frota, Maria Cristiana Ziouva, Arnaldo Hossepian, Maria Tereza Uille Gomes e Henrique Ávila. Não votaram os Excelentíssimos Conselheiros André Godinho e, em razão da vacância do cargo, o representante da Ordem dos Advogados do Brasil.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0006469-96.2017.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SECCAO DO RIO G DO SUL
Requerido: FABIANA DOS SANTOS KASPARY


RELATÓRIO


           

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator): 


Cuida-se de recurso administrativo interposto pela ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL contra decisão do então Corregedor Nacional de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha, que determinou o arquivamento da presente reclamação disciplinar formulada em desfavor da Juíza de Direito da 18ª Vara Cível de Porto Alegre – RS, FABIANA DOS SANTOS KASPARY.

A recorrente reitera, neste recurso, a inconformidade da conduta da magistrada de exigir que o advogado junte procuração específica para recebimento de valores e que a responsabilidade disciplinar está submetida à magistrada também na atividade decisória.

Para tanto, alega que a conduta da juíza é uma clara afronta ao que prescreve o art. 105 do CPC e que não pode cada magistrado, como bem entender, criar seus próprios requisitos para as atividades dos advogados.

Sustenta que, no caso, a exigência da magistrada extrapola a esfera jurisdicional, causa procrastinação dos processos e fere o princípio da celeridade processual.

Requer a reconsideração da decisão que determinou o arquivamento do presente procedimento ou o encaminhamento do recurso ao Plenário do CNJ para apreciação.

É, no essencial, o relatório. 

 

S34

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0006469-96.2017.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SECCAO DO RIO G DO SUL
Requerido: FABIANA DOS SANTOS KASPARY

 


VOTO


O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator): 


Preenchidos os requisitos do art. 115 do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, conheço do recurso administrativo e passo à análise das razões que o embasam.

Inicialmente, destaco que o recurso se limita à matéria da responsabilização da magistrada em relação à exigência de que o advogado junte procuração específica para recebimento de valores.

A recorrente repisa os argumentos de que, se o advogado possui poderes especiais para receber e dar quitação, não é válido o ato restritivo de expedição, em seu nome, de alvará para levantamento de crédito.

Em síntese, alega violação dos deveres funcionais da magistrada que, ao interpretar a norma insculpida no art. 105 do CPC, impõe ao advogado obstáculo ao exercício de sua atividade, procrastina o andamento dos processos e fere o princípio da celeridade processual.

Não obstante os argumentos da recorrente lançados na inicial, a decisão recorrida adotou a seguinte fundamentação (Id 2367375):


 

[...] “Na origem, após a manifestação da magistrada requerida, entendeu-se pelo arquivamento do expediente, haja vista tratar-se na verdade de reclamação de cunho eminentemente jurisdicional, além de não restar caracterizado mínimo indício de ilícito administrativo por parte da juíza requerida.

Confira-se o seguinte excerto do parecer emitido pela Juíza Assessora da Corregedoria adotado in totum pelo Corregedora-Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

 

A questão envolvendo a OAB/RS, sua Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas dos Advogados e a Magistrada ora representa, Dra. Fabiana dos Santos Kaspary, não é nova.

De fato, já tramitaram 03 expedientes sobre o tema, dois nesta Casa (0010-11/002978-7 e 0010-15/003903-1) e um no próprio CNJ (0005725.77.2012.00.000).

Em todos eles, houve o arquivamento, sem imposição de qualquer sanção disciplinar à Magistrada, porque se entendeu que a questão era jurisdicional.

E, de novo, se há de reafirmar isso.

Das informações da Magistrada se vê que o entendimento reiteradamente esposado em suas decisões tem lastro em regras gramaticais, no sentido de que a conjunção ‘e’, na expressão receber e dar quitação não é o mesmo que ‘receber, dar quitação’, pois a vírgula, na segunda espécie, tem função gramatical diversa da conjunção ‘e’.

Ou seja, a Magistrada interpreta restritamente os poderes especiais conferidos pelo CPC. E o faz à luz de interpretação razoável (para dizer o mínimo) das regras gramaticais e da própria teleologia da lei, que, ao excepcionar poderes, exige que sejam interpretados restritivamente.

A postura da entidade representante, assim, na verdade, busca ressuscitar o chamado ‘crime de hermenêutica’, que já Rui Barbosa repudiava de forma solar:

‘Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortes’.

 

Do exposto, não se vê qualquer infração disciplinar passível de apuração por parte desta Casa Correcional, motivo pelo qual opino pelo arquivamento do presente expediente, com as comunicações de praxe à entidade representante, à Magistrada e ao CNJ.

 

Ante o exposto, com fundamento no art. 19 do Regulamento Geral da Corregedoria Nacional de Justiça, sem prejuízo da apreciação de fato novo ou da insurgência de algum interessado, arquive-se o presente feito”.

 

Assim, como bem fundamentado na decisão ora impugnada, observa-se que a magistrada, em verdade, utilizou-se do poder geral de cautela que lhe é atribuído para determinar a juntada de procuração específica para levantamento de créditos.

Evidencia-se, ainda, que atuou de boa-fé, com a preocupação substancial de conferir absoluta transparência aos atos processuais, mormente no que diz respeito à liberação de valores em favor dos demandantes, e, mesmo que possa ter havido equívoco na interpretação, este se deu no âmbito jurisdicional, no qual há meios processuais adequados para a respectiva impugnação.

De outro lado, as decisões estão embasadas em regras gramaticais e hermenêutica que, ainda que não majoritária ou contrária ao entendimento e interesse da recorrente, não incorre em “impropriedade ou excesso de linguagem”.

A própria LOMAN, em seu art. 41, prevê que o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, salvo nos casos de impropriedade ou excesso de linguagem.

Desta forma, de maneira cristalina, os elementos constantes dos autos não são capazes de consubstanciar qualquer violação de deveres atinentes ao exercício da magistratura por parte da magistrada reclamada.

Ainda que se possa afirmar que a independência e a imunidade funcional do magistrado não são absolutas, isso só se justifica de modo extremamente excepcional, fundada em situações tipificadas na lei, não observadas no caso em tela.

Como apontado na decisão acima transcrita, não há que se falar em abuso de liberdade e independência funcional, mas direito de compreensão da magistrada, pois as exigências de procuração justificadas por interpretação legal razoável são partes integrantes da motivação judicial, derivada da análise de elementos processuais, e não ultrapassam os limites de sua imunidade.

Não houve alegação – e muito menos prova – de que a magistrada poderia, ainda que em tese, revelar a quebra do dever de imparcialidade ou qualquer outro desvio ético ou de conduta.

Não obstante o desagrado da parte com a interpretação gramatical adotada pela magistrada, a via disciplinar não resguarda guarida no caso, sob pena de chancelar a perigosa tese da “infração disciplinar de opinião”.

O que se verifica na espécie é a tentativa da recorrente de imprimir - ao que afirma tratar-se de violações de dispositivos legais ocorridas em decisões judiciais - viés administrativo disciplinar.

Nestes termos, são insuscetíveis de punição disciplinar as decisões que decorram do entendimento livremente manifestado pelo magistrado (livre convencimento motivado), sem nenhum indício de desvio ético ou de conduta, desde que guardem relação com o objeto da causa.

Nesse sentido:

 

 

“PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 9ª REGIÃO. ATO JURISDICIONAL. NÃO CONHECIMENTO. ATO ADMINISTRATIVO LEGAL. CONHECIMENTO E IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

I – A exigência de que os advogados aptos a receber e dar quitação comprovem nos autos o repasse dos valores pertencentes a seus clientes, quando os alvarás de levantamento de valores sejam retirados/sacados pelos patronos, é ato privativo do magistrado na condução do processo e, se estiver maculado, pode e deve ser corrigido no plano estritamente jurisdicional.

II – Não compete ao Conselho Nacional de Justiça interferir na prática de atos judiciais e no poder de direção dos processos, por se tratarem de providências revestidas de nítido caráter jurisdicional, razão pela qual pedidos nesse sentido não merecem ser conhecidos. Precedentes.

III – A determinação de que sejam intimados todos os favorecidos mencionados nas guias de retirada expedidas pela unidade judiciária, quando no documento esteja autorizado o saque também por procurador, representa ato administrativo típico e, portanto, deve ser conhecido pelo CNJ. Contudo, por não se verificar qualquer ilegalidade no ato, que inclusive confere maior transparência processual, julga-se improcedente o pedido de sua invalidação. (CNJ - RA - Recurso Administrativo em PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0000340-17.2013.2.00.0000 - Rel. Carlos Eduardo Dias - 162ª Sessão Ordinária - j. 05/02/2013”.




"Se os argumentos desenvolvidos pelo recorrente, em essência, têm natureza jurisdicional – opções jurídicas de magistrado na condução de processo –, não cabe a análise pela Corregedoria Nacional." (CNJ - RA – Recurso Administrativo em RD - Reclamação Disciplinar - 0006698-56.2017.2.00.0000 - Rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - 275ª Sessão Ordinária - j. 07/08/2018)”.




"Não cabe ao Conselho Nacional de Justiça conhecer de reclamação disciplinar para controle da atividade jurisdicional do magistrado, haja vista que, nos termos da jurisprudência do Conselho, 'no exercício de suas funções jurisdicionais, os magistrados atuam com absoluta autonomia e independência na formação de suas convicções, pois a independência judicial constitui um direito fundamental dos cidadãos, inclusive o direito à tutela judicial e o direito ao processo e julgamento por um Tribunal independente e imparcial.' (Precedentes do CNJ)' (CNJ - RA – Recurso Administrativo em PETCOR - Petição Avulsa - Corregedoria - 0006086-65.2010.2.00.0000 - Rel. WALTER NUNES DA SILVA JÚNIOR - 116ª Sessão - j. 09/11/2010)”.


 

 

Por fim, a justiça ou injustiça na prestação jurisdicional, decorrente do juízo de cognição dos fatos, deve ser questionada por meio dos recursos próprios e não através de reclamação disciplinar.

O CNJ, cuja competência está restrita ao âmbito administrativo do Poder Judiciário, não pode intervir em decisão judicial para corrigir eventual vício de ilegalidade ou nulidade, porquanto a matéria aqui tratada não se insere em nenhuma das previstas no art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal.

Ante o exposto, ratifico o entendimento jurídico já expressado pela Corregedoria Nacional de Justiça de que a questão em apreço é de natureza jurisdicional e deve ser resolvida exclusivamente naquele âmbito, por não ter sido apurado o alegado desvio de conduta a justificar a responsabilização disciplinar e, por consequência, nego provimento ao recurso administrativo.

É como penso. É como voto.

 

MINISTRO HUMBERTO MARTINS

Corregedor Nacional de Justiça 

 

S28/Z10/S34

 

Brasília, 2019-08-28.