Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0007691-60.2021.2.00.0000
Requerente: FABIO DE OLIVEIRA RIBEIRO
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ

 


RECURSO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. UTILIZAÇÃO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PELO PODER JUDICIÁRIO. LIMITES. RESOLUÇÃO CNJ 332/2020. REGULAMENTAÇÃO PELA PORTARIA CNJ Nº 271/2020. ARQUIVAMENTO. RECURSO IMPROVIDO.

1. Utilização de modelos de Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário.

2. A Resolução CNJ 332/2020 determina a observância de critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça substancial, além de ressalvar a necessidade de que seja observada a compatibilidade com os Direitos Fundamentais.

3. O uso da Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário foi regulamentado pela Portaria CNJ nº 271/2020, que também criou uma plataforma para depósito e armazenamento de todos os modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos pelos Tribunais, denominada Sinapses.

4. Recurso improvido.

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente. Ausente, circunstancialmente, o Conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Plenário, 18 de outubro de 2022. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, Sidney Madruga, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia (Relator) e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

 

RELATÓRIO 

O EXMO. SR. CONSELHEIRO MÁRIO GOULART MAIA (RELATOR): Trata-se de recurso administrativo interposto por Fabio de Oliveira Ribeiro, contra decisão que determinou o arquivamento do Procedimento de Controle Administrativo (PCA), através do qual o requerente demonstra sua preocupação com a utilização de Inteligência Artificial pelos órgãos do Poder Judiciário.

Monocraticamente, compreendi que a questão foi adequadamente tratada pelo Conselho Nacional de Justiça, ao editar a Resolução CNJ 332/2020, para dispor sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário, dada a ausência, no Brasil, de normas específicas sobre o assunto. 

No recurso, Fabio de Oliveira Ribeiro pede a reforma da decisão, por entender que os fundamentos apresentados não atacaram a questão principal suscita, qual seja, a ignorância: 

“Os advogados não conhecem os segredos dos recursos tecnológicos empregados pelos Tribunais. Portanto, eles não estão nem mesmo em condições de alegar qualquer tipo de ilegalidade ou prejuízo decorrente de uma rotina maliciosa colocada em prática pela Inteligência Artificial que aprecia a admissibilidade, as preliminares ou o mérito dos recursos”.

 

Assevera em suas razões que o respeito à publicidade e à transparência se tornam irrelevantes, “pois na prática nunca será possível ao advogado provar que foi vítima de um engodo processual codificado por programadores. Na superfície uma decisão poderá parecer correta, mas o erro provocado deliberadamente pelo “fantasma na máquina” permanecerá ignorado”.

Enfatiza que não obstante a decisão tenha considerado “que eventual descumprimento das obrigações constantes do normativo, bem como a omissão ou manipulação intencional dos dados e modelos poderão ser comunicados ao plenário do CNJ, que poderá instaurar o procedimento correspondente, para a apuração das providências a serem adotadas”, essa atuação não tem como ser feita por um advogado “que não tem conhecimento de programação e não tem acesso às camadas sigilosas da inteligência artificial empregada pelo Tribunal poderá demonstrar a existência de ‘manipulação intencional dos dados’”.

É o relatório. 

Brasília, data registrada no sistema.

 

Mário Goulart Maia

Conselheiro

 

VOTO 

O EXMO. SR. CONSELHEIRO MÁRIO GOULART MAIA (RELATOR): Trata-se de recurso administrativo contra decisão que determinou o arquivamento dos autos, nos seguintes termos (Id 4551023):  

DECISÃO

Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo (PCA) proposto por Fabio de Oliveira Ribeiro, através do qual demonstra sua preocupação com a utilização de Inteligência Artificial pelos órgãos do Poder Judiciário.

Afirma que “as prerrogativas profissionais dos advogados, a igualdade das partes e o princípio da publicidade tendem a desaparecer quando o Judiciário utiliza recursos de Inteligência Artificial [...]”.

Suscita dúvida quanto a adequada programação dos sistemas que utilizam esse tipo de recurso tecnológico e quanto à possibilidade de existirem “segredos tecnológicos” e “rotinas maliciosas” por trás da admissibilidade, análise das preliminares ou o mérito dos recursos.

Na sequência, formula questionamento sobre eventual responsabilização pelos abusos judiciais que possam vir a ser praticados com a utilização de Inteligência Artificial.

Assevera que “[a] desigualdade econômica entre os advogados não deve produzir um desequilíbrio processual. Isso quase sempre não ocorre quando o caso é julgado pelo juiz natural. Mas quando um recurso é previamente apreciado por uma Inteligência Artificial o resultado da demanda pode ser decidida não pelo critério jurídico e sim pela capacidade econômica que cada escritório tem de investir ou não em tecnologias de informação”.

Ao final, pretende a edição de norma para que os Tribunais sejam obrigados a divulgar os critérios utilizados em relação a Inteligência Artificial, inclusive rejeitando tal tecnologia caso venha ser a constatado algum tipo de desequilíbrio processual entre as partes.

É o relatório. Decido.

O inconformismo relatado nos autos está relacionado a adoção da Inteligência Artificial pelos órgãos do Poder Judiciário e sobre a possibilidade de que tal recurso seja utilizado apenas em benefícios das partes e advogados que possuem proeminência em relação a outras.

A utilização da Inteligência Artificial é uma realidade em vários ramos negociais e passou a ser utilizada com mais profundidade pelos órgãos do Poder Judiciário, haja vista a necessidade de encontrar soluções para resolver a grande quantidade de processos pendentes de julgamento.

Recentemente, registrei esse pensamento na obra Direito Fundamental de Acesso à Justiça[1] que escrevi em conjunto com o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, expondo que:

Ao se pensar em inovações científicas, em qualquer ciência, deve-se dar razão ao Professor Thomas Khun (1922-1996), quando explica que a evolução do pensamento científico e, portanto, o seu progresso, se acha nas quebras das uniformidades ou dos paradigmas. Quando o cientista se conforma com apenas reproduzir as vozes de ilustres cientistas do passado, é inevitável a estagnação do conhecimento, naquela área do saber. O Professor Thomas Khun não fez esta observação pensando na evolução do Direito, mas na evolução das ciências físicas. Ele não sabia, por conseguinte, que os juristas julgadores são institucionalmente impedidos, no modelo juslegalista, de adotar soluções inéditas ou originais, nas decisões dos seus casos. Ou seja, são impedidos de quebrar os paradigmas, são obrigados a ser conservadores.

Mas o que deve fazer um cientista, quando depara um paradigma de sua ciência, que não resiste ao teste de sua comparação com a realidade? O seu esforço inicial há de ser para confirmar a inadequação daquele paradigma ou a sua anomalia, revelada no teste de sua adaptação à realidade. Isso pode ser um caso isolado, que não afeta seriamente o paradigma. Mas, na medida em que esse insucesso se repete ou tende à reprodução, instala-se uma crise. É nas crises que surgem as alternativas ao paradigma obsoleto e a reação natural do cientista é perder a confiança nesse paradigma e a abandoná-lo. Então, exporá as razões da perda de confiança, suscitando discussões filosóficas sobre os seus fundamentos. Assim, o conhecimento transitará de forma simplista (repetitiva), para uma forma evolutiva (dinâmica) de resolução ou de superação de crise.

Preocupado com o alinhamento dos Tribunais em relação a essa temática, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução CNJ 332/2020, para dispor sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário, dada a ausência, no Brasil, de normas específicas sobre o assunto.

Esse normativo considera a Inteligência Artificial como importante aliado para a agilidade e coerência do processo de tomada de decisão, desde que observados critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça substancial, além de ressalvar a necessidade de que seja observada a compatibilidade com os Direitos Fundamentais.

Além disso, considera que “as decisões judiciais apoiadas pela Inteligência Artificial devem preservar a igualdade, a não discriminação, a pluralidade, a solidariedade e o julgamento justo, com a viabilização de meios destinados a eliminar ou minimizar a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos”.

Nessa perspectiva, o art. 2º da Resolução estabelece que a Inteligência Artificial “[...] visa promover o bem-estar dos jurisdicionados e a prestação equitativa da jurisdição, bem como descobrir métodos e práticas que possibilitem a consecução desses objetivos”.

Ressalta ainda a importância de que seja garantida a segurança jurídica e a igualdade de tratamento em casos absolutamente iguais. Além disso, prevê a necessidade de que os modelos de Inteligência Artificial sejam previamente “homologado[s] de forma a identificar se preconceitos ou generalizações influenciaram seu desenvolvimento, acarretando tendências discriminatórias no seu funcionamento”[2].

O § 3º, do art. 7º, da Resolução CNJ nº 332/2020, ressalva a possibilidade de descontinuidade do modelo de Inteligência Artificial caso não seja possível eliminar o viés discriminatório do padrão adotado.

O normativo ainda contempla a necessidade de que seja dada a devida publicidade e transparência em relação aos objetivos, resultados, documentação de riscos, instrumentos de segurança da informação, identificação de possível dano, auditoria e certificação de boas práticas e determina a publicação, em campo próprio, da relação dos modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos e utilizados pelos órgãos do Poder Judiciário (art. 11).

Em complementação à Resolução CNJ nº 332/2020, foi editada a Portaria CNJ nº 271/2020, que regulamenta o uso da Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário.

Essa norma cria uma plataforma para depósito e armazenamento de todos os modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos pelos Tribunais, denominada Sinapses. Além disso, estabelece que o descumprimento das obrigações, bem como a omissão ou manipulação intencional dos dados e modelos poderão ser comunicados ao plenário do CNJ, por qualquer membro, que poderá instaurar o procedimento correspondente, para a apuração das providências a serem adotadas (art. 20).

Feitas as considerações acima, entendo que o Conselho Nacional de Justiça como órgão central administrativo do Poder Judiciário se cercou de inúmeras cautelas antes de autorizar o uso da Inteligência Artificial pelos Tribunais, estabelecendo obrigações e responsabilidades.

Assim, entendo que o pedido formulado pelo requerente já foi adequadamente tratado no bojo da Resolução CNJ nº 332/2020.

Ante o exposto, determino o arquivamento dos autos com fundamento no artigo 25, X, do RICNJ.

Intimem-se.

Publique-se, nos termos do artigo 140 do Regimento Interno do CNJ.

Em seguida, arquivem-se independentemente de nova conclusão.

Brasília, data registrada no sistema.

 

Mário Goulart Maia

Conselheiro

Não vislumbro nas razões recursais argumento capaz de modificar a decisão terminativa.

Reafirmo-a por seus próprios fundamentos, por entender que inexiste no presente feito necessidade de intervenção do CNJ.

Como enfatizado na decisão, “[a] utilização da Inteligência Artificial é uma realidade em vários ramos negociais e passou a ser utilizada com mais profundidade pelos órgãos do Poder Judiciário, haja vista a necessidade de encontrar soluções para resolver a grande quantidade de processos pendentes de julgamento”.

E justamente em decorrência desse novo modelo que está sendo adotado e difundido, registrei a preocupação deste Conselho com esse tema, tanto que foi editada a Resolução CNJ 332/2020 para promover o alinhamento dos Tribunais em torno da ética, transparência e governança na produção e uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário, dada a ausência, no Brasil, de normas específicas sobre o assunto.

De fato, como registrado no decisum, a Inteligência Artificial apresenta-se como uma aliada para melhoria da prestação jurisdicional. Mas para que isso ocorra exatamente como o esperado, a Resolução CNJ 332/2020 determina a observância de critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça substancial, além de ressalvar a necessidade de que seja observada a compatibilidade com os Direitos Fundamentais.

Não é demais lembrar, em complementação à Resolução CNJ nº 332/2020, foi editada a Portaria CNJ nº 271/2020, que regulamenta o uso da Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário.

Como registrado na decisão, foi criada uma plataforma para depósito e armazenamento de todos os modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos pelos Tribunais, denominada Sinapses.

A necessidade de conferir publicidade aos modelos utilizados parece ser absolutamente incompatível com a ideia lançada pelo recorrente de que a ignorância dos advogados pode resultar na adoção de uma rotina maliciosa colocada em prática pela Inteligência Artificial que aprecia a admissibilidade, as preliminares ou o mérito dos recursos.

Não se deve presumir a má-fé na utilização da Inteligência Artificial pelo Poder Judiciário. Ao contrário, novas tecnologias surgem para que seja possível encontrar soluções para auxiliar na prestação jurisdicional célere e eficiente, de modo a atender os anseios dos cidadãos em tempo razoável.

Portanto, ainda que louvável a preocupação do nobre requerente, entendo que as normas do CNJ estabelecem parâmetros suficientes para o uso da Inteligência Artificial pelos Tribunais.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso e mantenho a decisão que determinou o arquivamento dos autos.

É como voto.

Intimem-se.

Publique-se nos termos do artigo 140 do RICNJ. Em seguida, arquivem-se independentemente de nova conclusão.

 Brasília, data registrada no sistema.

 

Mário Goulart Maia 

Conselheiro

 



[1] MAIA FILHO, Napoleão Nunes; MAIA, Mário Henrique Goulart. Direito Fundamental de Acesso à Justiça. Fortaleza/CE: Curumim, 2020. p. 115/116.

[2] Resolução CNJ nº 332/2020. Art. Art. 7º, § 1º.