Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0004919-61.2020.2.00.0000
Requerente: RODRIGO BAPTISTA PACHECO e outros
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

 

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. VARAS DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E DO IDOSO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. EDIÇÃO DE PORTARIAS E OFÍCIOS COM REGULAMENTAÇÃO GERAL ACERCA DE DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. IMPOSSIBILIDADE. EXEGESE DO ART. 149 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDAS QUE AFRONTAM O TEXTO CONSTITUCIONAL. NECESSIDADE DE CONTROLE PELO CNJ. CONHECIMENTO EM PARTE E, NA PARTE CONHECIDA, PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. MODULAÇÃO DOS EFEITOS. EFICÁCIA EX NUNC. 

 

1. Procedimento de controle administrativo em que se pretende a declaração de nulidade de atos editados pela 2ª e 3ª Varas da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital do Estado do Rido de Janeiro, que teriam instituído regras gerais acerca de direitos das crianças e dos adolescentes.

2. Embora o ECA admita a edição de atos pelo Judiciário, fixa hipóteses para o exercício desse poder disciplinar/autorizador e é expresso em relação à impossibilidade de se conceber determinações de caráter geral (art. 149, Lei 8.069/1990).

3. As diretrizes que atualmente norteiam a proteção integral da criança e do adolescente desenharam uma nova sistemática de atuação, em que a função do Poder Judiciário permanece sendo relevante, mas que não deixa de prestigiar o papel de outros garantidores desse mosaico de direitos, como o Conselho Tutelar, o Ministério Público e a própria família.

4. Desse modo, conquanto seja “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (art. 70 do ECA) e a intervenção precoce seja a tônica dessa atuação (art. 100, VI, ECA), deve ser respeitado o arranjo de funções conferidas a cada responsável por esse sistema, sem qualquer interpretação ampliativa do texto legal.

5. Constatadas hipóteses em que se faz necessária a edição de portarias ou alvarás, tais documentos devem ser produzidos dentro dos limites traçados pelo ECA, regulando situações jurídicas individualizadas, sob pena de ofensa à previsão legal. Precedentes STJ e CNJ.

6. Não há, portanto, como preservar atos com caráter geral que, a pretexto de salvaguardar direitos, desbordaram da competência atribuída pelo art. 149 do ECA à autoridade judiciária e vilipendiaram mandamentos da Lei Maior, ao determinarem a retenção da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e condicionarem a liberação de recém-nascidos a uma decisão judicial.

7. Impossibilidade de o CNJ avançar sobre o exame de ofícios decorrentes da condução de processos judiciais. Natureza jurisdicional. Desnecessidade de determinação para cumprimento de previsão legal. Caráter cogente da norma.

8.   Pedidos conhecidos em parte e, na parte conhecida, julgados procedentes, para declarar a nulidade dos atos.

9. Modulação dos efeitos da presente decisão, a fim de que tenha eficácia ex nunc.

10. Possibilidade de utilização dos mecanismos de cooperação judiciária interinstitucionais como instrumentos de viabilização da questão ora posta.

 

 


 ACÓRDÃO

Após o voto do Conselheiro Richard Pae Kim (Vistor), o Conselho, por maioria, conheceu em parte dos pedidos e, na parte conhecida, julgou-os procedentes, modulando, contudo, os efeitos da decisão para declarar a invalidade dos atos com efeitos ex nunc, nos termos do voto do Relator. Vencidos os Conselheiros Vieira de Mello Filho, Mário Goulart Maia e Marcello Terto, que julgavam improcedente o pedido. Votou a Presidente. Ausente, justificadamente, o Conselheiro Sidney Madruga. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Plenário, 11 de abril de 2023. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins (Relator), Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0004919-61.2020.2.00.0000
Requerente: RODRIGO BAPTISTA PACHECO e outros
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RELATÓRIO

 

Trata-se Procedimento de Controle Administrativo, com pedido liminar, proposto pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ) contra atos editados pela 2ª e 3ª Varas da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital daquele Estado (2ª e 3ª VIJI).

Sustenta a requerente, em síntese, que, devido à relevância da proteção integral de crianças e adolescentes, suas diretrizes foram resguardadas não só por previsões legais (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) e instrumentos internacionais (Convenção sobre os Direitos da Criança), como também pelos próprios mandamentos constitucionais.

Nesse contexto, aduz que eventuais restrições aos direitos das crianças e adolescentes só poderiam advir da Constituição Federal ou de regramento legal. Registra, entretanto, que as portarias publicadas pelas varas requeridas (3/2015 e 1/2019) teriam invertido essa lógica protecionista, ao promoverem a segregação (acolhimento) em detrimento da proteção integral.

Explica que tal inversão ocorreria, porquanto os atos atacados teriam estabelecido que “as maternidades devem reter a Declaração de Nascido Vivo (DNV), nos casos em que a genitora residir em bairro indicado no art. 4º e não possuir o próprio Registro Civil de Nascimento (inexistência ou perda do documento)” e que “a liberação após a alta hospitalar ficará condicionada à decisão judicial, em situação que denote possibilidade de violação a direitos fundamentais de crianças e adolescentes”.

Afirma, desse modo, que, além de constrangerem “indevidamente a liberdade de crianças” e “representarem indevida e genérica intromissão na vida familiar de muitas famílias pobres”, os atos afrontariam o art. 149 do ECA, já que teriam feito interpretação ampliativa do referido dispositivo legal e estabelecido determinações de caráter geral.

Também assevera que os atos teriam fragilizado atribuições do Ministério Público, bem como usurpado funções do Conselho Tutelar, uma vez que caberia ao referido Conselho, e não ao juiz, receber previamente comunicações sobre casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente.

 Assinala, ainda, que os mencionados atos violariam os regramentos constitucionais, sobretudo aqueles garantidores da isonomia, e contrariariam a Política Judiciária Nacional De Enfrentamento À Violência Contra As Mulheres.

Por fim, afirmam que também ofende “o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório” a expedição de ofícios nominais que têm o intuito de promover investigações acerca da vida de cidadãos “sem que haja processos regularmente instaurados, não distribuídos, autuados e registrados”.

Diante de tais fatos, e amparado por manifestações favoráveis dos Conselhos Regionais de Psicologia e de Serviço Social, pugna para que sejam desconstituídas as “portarias e os atos judiciais-administrativos indicados nos itens acima (Portaria 3/2015 da 3ª VIJI, Portaria 01/2019 da 2ª VIJI, Oficio 131/2017 da 3ª VIJI e Ofícios nominais já expedidos às maternidades)”.

Pleiteia, outrossim, que seja vedada a expedição de novas portarias regulamentando o tema e proibida “a adoção do fluxo de trabalho aqui impugnado: emissão de ofícios com determinações às maternidades, sem a regular instauração de procedimento, ainda que de ofício. Nesse caso, instauração por iniciativa do juiz, não poderá o procedimento importar em afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem, ou em ritos previstos na Lei 8.069/90 como necessariamente contenciosos, tudo nos termos do art. 153”.

Determinada a intimação das magistradas (Id. 4034793), o cartório da 2ª VIJI noticiou que a magistrada que subscreveu a Portaria 01/2019 se exonerou do cargo (Id. 4092448)

A juíza titular da 3ª VIJI, por seu turno, defendeu a legalidade dos atos e informou que: a) a retenção da DNV destina-se a permitir o envio do documento ao Ministério Público, para a propositura de ação de registro civil do recém-nascido; b) a medida tem reduzido o número de crianças sem registro e os casos de venda de DNVs para angolanos; c) o Ofício 131/2017 tem por cautela evitar que o recém-nascido deixe o hospital em situação de risco; d) os ofícios nominais estão relacionados às situações apuradas em feitos judiciais (Id. 4064052).

Na sequência, sobreveio manifestação da requerente, por meio da qual refutou os argumentos apresentados pela magistrada e reiterou que os atos contêm, na verdade, “uma visão moralista e individualizante que responsabiliza exclusivamente as famílias por sua situação de vulnerabilidade social” (Id. 4069179).

Em petição juntada aos autos, o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) pleiteou o ingresso no feito como terceiro interessado (Id. 4074144).

Por considerar que haveria periculum in mora inverso no acolhimento do pedido de urgência, o meu antecessor indeferiu a medida liminar e requereu a manifestação da Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas de Infância e Juventude e Idoso (CEVIJ) e do Fórum Nacional da Primeira Infância (FONINJ) (Id. 4121085).

Em resposta, o FONINJ colacionou parecer, no qual consignou, em suma, que os ofícios nominais têm natureza jurisdicional e que não identifica irregularidades nos demais atos atacados. Sugeriu, ainda, que a DNV seja realizada de forma eletrônica, “com envio direto da maternidade para o Registro Civil de Pessoa Natural da área de abrangência ou para o posto de dentro da maternidade, onde houver” (Ids. 4131843 e 4131845).

Já a CEVIJ, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sustentou igualmente a legalidade das portarias e ofícios, ao assinalar que os problemas estruturais da assistência social do Estado e o déficit de Conselhos Tutelares ensejariam a adoção de providências pelos juízos, de modo a evitar violação de direitos de crianças e adolescentes (Id. 4145194).

Em nova manifestação, a magistrada Mônica Labuto Fragoso Machado, titular da 3ª VIJI, reiterou o caráter jurisdicional dos ofícios nominais, visto que estariam relacionados a processos judiciais (Ids. 4151450 e 4151451).

Ato contínuo, a requerente renovou as teses aduzidas na inicial, assim como pontuou que “nos casos impugnados neste procedimento, se observa a expedição reiterada de ordens sem que exista qualquer processo em andamento em relação a parturiente” (Id. 4172710).

Após novo exame dos autos, o meu antecessor indeferiu o ingresso do CONDEGE como terceiro interessado e determinou nova intimação da 2ª VIJI, para que informasse se a Portaria 1/2019 permanece em vigor (Ids. 4318778 e 4391739).

À vista da mencionada determinação, aquela unidade declarou que o ato segue vigente, sem prejuízo da atuação de rede de apoio e proteção estabelecida no ECA (Ids. 4400194, 440019 e 4441325).

Instado a se manifestar (Ids. 4445540, 4493742 e 4494984), o Ministério Público Federal defendeu a procedência do pedido, uma vez que “os atos expedidos pelas 2ª e 3ª Varas da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro carecem de respaldo legal devendo, pois, serem desconstituídos” (Id. 4517075).

É o relatório.

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0004919-61.2020.2.00.0000
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VOTO

 

Conforme relatado, a controvérsia suscitada no presente procedimento diz respeito à legalidade da Portaria 3/2015 e do Oficio 131/2017, editados pela 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital do Estado do Rio de Janeiro (3ª VIJI); da Portaria 01/2019, publicada pela 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso Capital do Estado do Rio de Janeiro (2ª VIJI); bem como de ofícios nominais que estariam sendo expedidos pelos juízos cariocas com regras voltadas à suposta proteção de crianças e adolescentes.

É preciso esclarecer, entretanto, que o que se busca apurar não é se os referidos atos conteriam (ou não) determinações restritivas dirigidas às unidades hospitalares ou maternidades da Capital, ao argumento de garantirem direitos das crianças e adolescentes.

Até porque, se fosse essa a dúvida, uma breve análise do feito já seria capaz de saná-la, ao evidenciar que é incontroverso o fato de que os atos da 2ª e 3ª VIJI compeliram as maternidades/hospitais localizados em suas áreas de competência a promoverem a retenção da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e a condicionarem a liberação de recém-nascidos a uma decisão judicial. Confira-se, por oportuno, a redação das portarias e do ofício impugnados:

  

Portaria 3/2015 – 3ª VIJI (Id. 4026423)

[...]

Art. 2º: Que as maternidades devem reter a Declaração de Nascido Vivo (DNV), nos casos em que a genitora residir em bairro indicado no art. 4º e não possuir o próprio Registro Civil de Nascimento (inexistência ou perda do documento), encaminhando o original da DNV a este Juízo, devidamente acompanhada de relatório circunstanciado, contendo endereço e telefone dos genitores.

[...]

Art. 4º:  A área de competência deste Juízo abrange os bairros pertencentes às Regiões Administrativas de Irajá (XIV-RA), Madureira (XV-RA), Jacarepaguá (XVI-RA) e Cidade de Deus (XXXIV-RA), quais sejam: Anil, Bento Ribeiro, Campinho, Curiricica, Cascadura, Cavalcante, Cidade de Deus, Colégio, Engenheiro Leal, Freguesia, Gardênia Azul, Honório Gurgel, Irajá, Jacarepaguá, Madureira, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz, Pechincha, Praça Seca, Quintino Bocaiuva, Rocha Miranda, Rio da Pedras – território de Jacarepaguá, Tanque, Taquara, Turiaçu, Vaz Lobo, Vicente de Carvalho, Vila Kosmos, Vila da Penha, Vila Valqueire e Vista Alegre. (grifo nosso)

 

 Ofício 131/2017/GAB – 3ª VIJI (Id. 4026424)

 

Pelo presente, determino a V.Sª que seja informada com urgência a esta VIJI qualquer situação de suposto abuso físico, sexual, drogadição dos pais e negligência grave envolvendo crianças e adolescentes, independentemente da comunicação ao CT, bem como informo que qualquer liberação destes infantes só poderá ser determinada por ordem judicial, não tendo o conselho tutelar qualquer atribuição para o deferimento de guarda provisória à família extensa. (grifos nossos)

 

                                                                                                                           Portaria 1/2019 – 2ª VIJI (Id. 4026425)

[...]

Artigo 2º - Qualquer situação observada pela Equipe da Unidade Médica ou Maternidade em atendimento médico-hospitalar que denote possibilidade de violação a direitos fundamentais de crianças e adolescentes deverá ser comunicada à 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital.

Parágrafo único – Nesse caso, a liberação após a alta hospitalar ficará condicionada à decisão judicial. (grifos nossos)

 

O que se pretende averiguar, portanto, é se, ao estabelecerem tais determinações, esses atos teriam violado o arcabouço constitucional e legal que alicerça os direitos das crianças e dos adolescentes, vulnerando balizas instituídas justamente para assegurar a proteção integral desses sujeitos.

E o que revela o exame dos autos é que, a pretexto de salvaguardar direitos, as ordens impostas não só desbordaram da competência atribuída à autoridade judiciária pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como vilipendiaram mandamentos da Lei Maior que perfazem o manto de proteção dos direitos dessas crianças e adolescentes.

Com efeito, embora o ECA admita a edição de atos pelo Judiciário, fixa hipóteses para o exercício desse poder disciplinar/autorizador, e é expresso em relação à impossibilidade de se conceber determinações de caráter geral:

Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:

I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em:

a) estádio, ginásio e campo desportivo;

b) bailes ou promoções dançantes;

c) boate ou congêneres;

d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;

e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.

II - a participação de criança e adolescente em:

a) espetáculos públicos e seus ensaios;

b) certames de beleza.

[...]

§ 2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral.  (grifos nossos)

 

Logo, mostra-se patente que a autoridade judiciária não detém mais a prerrogativa de estabelecer medidas abstratas, por meio de portaria ou provimento, “que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor”, como lhe assegurava o revogado Código de Menores (art. 8º da revogada Lei 6.697/1979).

As diretrizes que atualmente norteiam a proteção integral à criança e ao adolescente (ECA) desenharam uma nova sistemática de atuação, em que a função do Poder Judiciário permanece sendo relevante, mas na qual também se conferiu prestígio ao papel de outros garantidores desse mosaico de direitos infantojuvenis, como o Conselho Tutelar, o Ministério Público e a própria família.

Dessa forma, conquanto seja "dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente" (art. 70 do ECA) e a intervenção precoce seja a tônica dessa atuação (art. 100, VI, ECA), há que ser respeitado o arranjo de funções conferidas a cada responsável por esse sistema, sem qualquer interpretação ampliativa do texto legal.

Nessa perspectiva, ditames que acabam por desnaturar essa conformação, por tentar restabelecer a proeminência do Poder Judiciário, não encontram mais lugar, sobretudo quando condicionam direitos a ordens de autoridades judiciárias. 

Se as varas requeridas identificaram situações que ensejariam uma atuação precoce, deveriam ter promovido um trabalho conjunto com os demais integrantes da rede de efetivação dos direitos das crianças e adolescentes e, inclusive, estimulado a participação das famílias envolvidas, em vez de se enveredarem pelo viés normativo.

Além disso, caso constatadas hipóteses em que se fazia necessária a edição de portarias ou alvarás, tais documentos deveriam ter sido produzidos dentro dos limites traçados pelo ECA, regulando situações jurídicas individualizadas, sob pena de ofensa direta à previsão legal, como se verifica in casu.

Tanto é assim que o Superior Tribunal de Justiça já assentou a impossibilidade de os magistrados editarem portarias abstratas e de caráter genérico que tratem de direitos das crianças e adolescentes:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. PORTARIA EDITADA POR JUÍZO DA COMARCA. RESTRIÇÃO DO DIREITO DE PERMANÊNCIA E LOCOMOÇÃO DE MENORES DESACOMPANHADOS DOS PAIS OU RESPONSÁVEL LEGAL EM RUAS E LOGRADOUROS PÚBLICOS. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO, ABSTRATA E SEM FUNDAMENTAÇÃO. ART. 149 DO ECA. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

1. O entendimento firmado em ambas Turmas que compõem a Primeira Seção desta Corte Superior é no sentido de que "é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria" (HC 207.720/SP, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, DJ de 23/2/12).

2. "Nos termos do art. 149 do ECA (Lei n. 8.069/1990), a autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, a entrada e permanência de criança ou adolescente desacompanhados dos pais ou responsáveis nos locais e eventos discriminados no inciso I, devendo essas medidas ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral, ex vi do § 2º" (REsp 1.292.143/SP, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Primeira Turma, DJe de 21/6/12).

3. Na caso em exame, a Portaria 17/04-DF que instituiu horário máximo de permanência de menores desacompanhados dos pais ou responsável legal nas ruas da Comarca de Itaporã/MS é de caráter geral, abstrata e sem nenhuma fundamentação de sua necessidade, razão pela qual não deve subsistir, por ofensa ao art. 149 do ECA.

4. Ordem concedida para declarar a ilegalidade da Portaria 017/2004-DF, de 5/5/04, editada pelo Juízo da Única Vara da Comarca de Itaporã/MS. (grifos nossos)

(HC 251.225/MS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, julgado em 13/11/2012, DJe 22/11/2012)

 

No mesmo sentido, consolidaram-se os precedentes deste Conselho:

 

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - PORTARIA DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE. TOQUE DE RECOLHER - NULIDADE.

1. É certo que o magistrado pode, mediante portaria ou alvará, e quando requerer o caso, disciplinar situações previstas no artigo 149 do ECA. Contudo, a portaria deverá se referir a situações concretas e específicas, não podendo, em qualquer hipótese, ser dotada de caráter geral e abstrato.

2. Falta de parecer prévio do Ministério Público, nos termos do ECA.

3. Não se pode permitir que ao magistrado, ser humano também acometido de influências sociais, convicções religiosas, familiares, seja conferida competência legislativa para edite, descontroladamente, atos dessa magnitude, sem qualquer proporcionalidade ou razoabilidade, regulamentando o direito de ir e vir das crianças e adolescentes.

4. Pedido que se julga procedente. (grifo nosso)

(Procedimento de Controle Administrativo 0002351-58.2009.2.00.0000 - Rel. Jorge Hélio Chaves De Oliveira - 89ª Sessão Ordinária - julgado em 08/09/2009).

 

À vista, portanto, desse cenário, nem mesmo os fundamentos apresentados pela magistrada titular da 3ª VIJI e pela Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas de Infância e Juventude e Idoso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro se mostram hábeis a legitimar os atos ora impugnados.

Isso porque, ainda que os fins colimados pelos atos tenham sido o de suplantar deficiências identificadas na assistência social e nos Conselhos Tutelares da cidade do Rio de Janeiro, bem como de cercear eventuais condutas fraudulentas (v.g. adulteração de DNVs), tais adversidades não têm o condão de franquear a adoção de medidas que extrapolam preceito legal e que avocam para o Judiciário poder normativo geral que este não detém.

Por essas razões, também não encontram guarida as justificativas ostentadas pelo FONINJ. Não é porque “têm nítido caráter de prevenção”, buscam “a preservação da própria cidadania da criança” e “inibe[m] a possibilidade de fraudes” (Id. 4131843) que as medidas propostas nos atos combatidos podem ser chanceladas. Se contrariam previsão legal e violam a lógica protecionista que circunscreve os direitos das crianças e adolescentes, não têm como prosperar.

Não por outro motivo, os atos foram igualmente rechaçados pelo Ministério Público Federal:

A pretensão da requerente encontra respaldo legal, uma vez que os atos ora em exame, ao editarem normas de caráter geral e abstrato, extrapolam a atribuição jurisdicional conferida pelo artigo 149 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

[...]

As portarias que determinam a retenção de documento, assim como obstam a alta hospitalar, condicionando-a a decisão judicial – quando a genitora não apresentar registro geral ou se observada situação de abuso físico, sexual, drogadição dos pais e negligência grave –, não levam a efeito o princípio da proteção integral que norteia este ramo do direito. (grifos nossos - Id. 4517075)

 

Vale ressaltar, ainda, que a inobservância a preceito legal não é o único ponto que revela a ilegitimidade dos atos em exame.

Das peças aportadas ao presente PCA, verifica-se que a aplicação das regras do Ofício 131/2017/GAB também tem dado azo a verdadeiro discrímen entre parturientes, mormente àquelas sujeitas a vulnerabilidades sociais (v.g. drogadição).

É que, para cumprir as determinações constantes do referido ofício, as equipes de serviço social têm adotado, dentro de uma mesma maternidade, protocolos diferenciados para as puérperas que residem na área de competência da 3ª VIJI (Id. 4026437):



Vê-se, pois, que não há como permitir que medidas dessa natureza continuem produzindo efeitos, porquanto não só afrontam o princípio da isonomia (art. 5º, caput, CF/1988), como deixam de observar o próprio dever constitucional do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de discriminação (art. 227 da CF/1988).

Não bastasse isso, constata-se que os atos editados geram consequências que também caminham na contramão da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Resolução CNJ 254/2018), porque acabam por fragilizar direito de mulheres que já se encontram em situação de vulnerabilidade social.

Desse modo, inviável a manutenção das portarias impugnadas e do Ofício 131/2017. 

Quando se avança, porém, sobre a alegação de que haveria ofícios nominais sendo expedidos “sem que exista qualquer processo em andamento em relação a parturiente” (Id. 4172710, p. 8), não se encontram elementos probatórios que confirmem a tese da requerente.

O que se observa, na verdade, é que, em um dos ofícios colacionados aos autos foi feita referência a processo judicial (Id. 4026427) e que, em relação ao outro (Id. 4026426), não se pode afirmar que não estaria vinculado a um feito judicial:

 

                                           Id.4026427

 

 

 

                                                                   

    Id. 4026426

 

Nessa senda, cuidando-se de ofícios decorrentes da condução de processos judiciais, não há como este Conselho se debruçar sobre o pedido, já que, por possuírem natureza jurisdicional, escapam das atribuições que foram outorgadas a este Órgão pela Constituição Federal.

Por fim, no que se refere à pretensão de que seja vedada a “expedição de novas portarias regulamentando o tema”, reputo que se trata de pleito que também não deve ser conhecido, pois já regulado pelo próprio ECA, norma que, em razão de seu caráter cogente, torna despicienda determinação oriunda deste Conselho para sua observância.

Diante, portanto, de todas as considerações apresentadas é forçoso reconhecer que, a despeito do não conhecimento dos pedidos referentes aos ofícios nominais e à determinação genérica emanada do CNJ, devem ser acolhidos os pleitos de desconstituição das portarias impugnadas e do Ofício 131/2017. 

Ante o exposto, voto no sentido de CONHECER, EM PARTE, DOS PEDIDOS e, na parte conhecida, JULGAR PROCEDENTES os pleitos, para DECLARAR A NULIDADE da Portaria 3/2015 e do Ofício 131/2017, editados pela 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, bem como da Portaria 01/2019, expedida pela 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. 

Promovo, contudo, a modulação dos efeitos da presente decisão, a fim de que tenha eficácia ex nunc.

Ressalto, por fim, a possibilidade de utilização dos mecanismos de cooperação judiciária interinstitucionais como instrumentos de viabilização da questão ora posta, estando o Comitê Executivo da Rede Nacional de Cooperação Judiciária e o próprio núcleo de cooperação do Tribunal à disposição das partes, caso entendam ser oportuna a intervenção desses colegiados.

Cumpridas as comunicações de praxe, arquive-se o feito independentemente de nova conclusão. 

 


Brasília, data registrada no sistema. 

 

MAURO PEREIRA MARTINS 

Conselheiro Relator


Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0004919-61.2020.2.00.0000

Requerente: RODRIGO BAPTISTA PACHECO e outros

Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

 

VOTO-VISTA

 

- O Excelentíssimo Senhor Ministro LUIZ PHILIPPE VIEIRA DE MELLO FILHO:

Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo (PCA), proposto pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por meio do qual pretende que este Conselho desconstitua determinações das magistradas titulares das Varas de Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, formalizadas nos seguintes atos:

1) Portaria nº 3/2015, da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, que “dispõe em seu art. 2º que ‘as maternidades devem reter a Declaração de Nascido Vivo (DNV), nos casos em que a genitora residir em bairro indicado no art. 4º e não possuir o próprio Registro Civil de Nascimento (inexistência ou perda do documento), encaminhando o original da DNV a este Juízo, devidamente acompanhado de relatório circunstanciado, contendo endereço e telefone dos genitores”;

2) Portaria nº 1/2019, da 2ª Vara da Infância, Juventude e do Idoso da Comarca de Capital, que “estabelece no art. 2º que ‘qualquer situação observada pela Equipe da Unidade Médica ou Maternidade em atendimento médico-hospitalar que denote possibilidade de violação a direitos fundamentais de crianças e adolescentes deverá ser comunicada à 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital”, e art. 2º, parágrafo único, da Portaria n.º 01/2019 da 2ª VIJI, que determina que ‘a liberação após a alta hospitalar ficará condicionada à decisão judicial, em situação que denote possibilidade de violação a direitos fundamentais de crianças e adolescentes’”;

3) Ofício nº 131/2017, da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, ”enviado para a Maternidade Leila Diniz/Lourenço Jorge e outras”, que “estabelece que ‘seja informada com urgência a esta VIJI qualquer situação de suposto abuso físico, sexual, drogadição dos pais, e negligência grave envolvendo crianças e adolescentes, independentemente da comunicação ao CT, bem como informa que qualquer liberação destes infantes só poderá ocorrer se determinadas por ordem judicial, não tendo o Conselho Tutelar qualquer atribuição para o deferimento de guarda provisória à família extensa’”;

4) “Demais Ofícios Nominais expedidos especialmente pela 3ª VIJI, e também por algumas outras Varas de Infância e Juventude”, “contendo determinações às maternidades, em relação a gestantes específicas, conforme especificado na Tabela elaborada pela Equipe Multiprofissional (DOC 7) e nos exemplos de ofícios anexados”.

A decisão do relator se baseia nos seguintes argumentos:

1.                   Embora o ECA admita a edição de atos pelo Judiciário, fixa hipóteses para o exercício desse poder disciplinar/autorizador, e é expresso em relação à impossibilidade de se conceber determinações de caráter geral;

2.                   A aplicação das regras do Ofício 131/2017/GAB também tem dado azo a discrímen entre parturientes, mormente àquelas sujeitas a vulnerabilidades sociais (v.g. drogadição).

Com esses fundamentos, o voto do relator é no seguinte sentido:

Diante, portanto, de todas as considerações apresentadas é forçoso reconhecer que, a despeito do não conhecimento dos pedidos referentes aos ofícios nominais e à determinação genérica emanada do CNJ, devem ser acolhidos os pleitos de desconstituição das portarias impugnadas e do Ofício 131/2017. 

Ante o exposto, voto no sentido de CONHECER, EM PARTE, DOS PEDIDOS e, na parte conhecida, JULGAR PROCEDENTES os pleitos, para DECLARAR A NULIDADE da Portaria 3/2015 e do Ofício 131/2017, editados pela 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, bem como da Portaria 01/2019, expedida pela 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. 

Em síntese, a decisão do relator não conhece dos pedidos no tocante aos ofícios nominais expedidos pela magistrada (iten 4 acima transcrito), por se tratar de matéria jurisdicional, além de reconhecer a nulidade das Portarias impugnadas e do Ofício 131/2017, da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital.

A Defensoria Pública requerente, por sua vez, trouxe alguns argumentos para fundamentar o pedido de anulação de todos os atos, dentre os quais destaco:

1.       Regularam de maneira geral e abstrata hipóteses não previstas na Lei 8.069/90 - crianças sendo privadas de sua liberdade de ir e vir.

2.       Usurpam a competência do Conselho Tutelar e do Poder Legislativo. Quem deve tomar providências inicialmente é o Conselho Tutelar. Caberia ao referido Conselho, e não ao juiz, receber previamente comunicações sobre casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente.

3.       Lei Federal 12.662, de 5 de junho de 2012, que regula a emissão da Certidão de Nascido Vivo - CNV, não traz qualquer vedação à entrega da DNV e não condiciona a entrega a possuir documentos.

Já as magistradas titulares dos juízos que editaram os atos em análise trazem as seguintes ponderações:

1.       A Portaria 03/2015 contribuiu para a redução do número de crianças sem registro civil, razão pela qual demonstra atendimento aos interesses das crianças e adolescentes e se alinha aos princípios da legislação especifica;

2.       A retenção da DNV destina-se a permitir o envio do documento ao Ministério Público, para a propositura de ação de registro civil do recém-nascido;

3.       A medida tem reduzido o número casos de venda de DNVs para angolanos;

4.       O Ofício 131/2017 tem por cautela evitar que o recém-nascido deixe o hospital em situação de risco;

5.       Os ofícios nominais estão relacionados às situações apuradas em feitos judiciais (Id. 4064052).

O FONINJ, ao ser provocado, colacionou parecer aos autos. Consignou, em suma, que os ofícios nominais têm natureza jurisdicional e que não identifica irregularidades nos demais atos atacados. Sugeriu, ainda, que a DNV seja realizada de forma eletrônica, “com envio direto da maternidade para o Registro Civil de Pessoa Natural da área de abrangência ou para o posto de dentro da maternidade, onde houver” (Ids. 4131843 e 4131845). Esclarece que:

“Ambos os documentos têm nítido caráter de prevenção visando a assegurar condição de cidadania às crianças que se enquadrem naquela narrativa. Ambas Portarias, 3/2015 e 01/2019, têm conteúdo que poderia ser deduzido em uma ordem de serviço, um memorando ou um oficio. O nome do ato não lhe confere substância própria.

(...)

Portanto não subtrai a responsabilidade do Juizado da Infância e Juventude em sua atuação preventiva, em articulação com a rede de atendimento, e em particular com o Ministério Público, o Conselho Tutelar e a própria Defensoria Pública, a confirmar a tese popular de que é “muito melhor desarmar a bomba, do que juntar os cacos após a explosão”.

A Portaria 3/2015, a viger há mais de cinco anos, diz que no caso de mães sem documento, esta sairá com a criança do hospital e a DNV deverá ser entregue a 3ª VIJI. Aparentemente esta determinação resultada da circunstância evidente de que esta mãe, sem seus próprios documentos, são conseguirá proceder o registro do filho, direito fundamental de exercício da cidadania. A providência será, pois, o imediato encaminhamento ao MP para que este órgão ingresse com ação de registro. Assim certamente, neste período todo, centenas de registro de crianças foram efetivados e que ficariam sem registro porque a mãe não é registrada, de maneira a não identificar indevida intervenção no âmbito da liberdade individual que não seja a busca da preservação da própria cidadania da criança.

Demais surgem questões adicionais, próprios da realidade do Rio de Janeiro. Esta providência inibe a possibilidade de fraudes, como: a) venda de DNV para imigrantes para visto de permanência; b) vista de DNV para angolanos para trafico internacional de crianças (fato denunciado no Programa Fantástico da Rede Globo); c) adoção à brasileira com o fornecimento de nome na DNV da adotante que não é habilitado o que a lei hoje diz que é trafico de crianças. Haveria a alternativa de a Defensoria Pública receber estas DNVs do hospital e ingressar com ação de registro. Para tanto manteria uma Defensora de referencia para cada maternidade da cidade do Rio de Janeiro.”

Já a CEVIJ, Coordenadoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sustentou, igualmente, a legalidade das portarias e ofícios, ao assinalar que os problemas estruturais da assistência social do Estado e o déficit de Conselhos Tutelares ensejariam a adoção de providências pelos juízos, de modo a evitar violação de direitos de crianças e adolescentes (Id. 4145194).

Por fim, o Ministério Público Federal também se manifestou nos autos e defendeu a procedência do pedido, uma vez que “os atos expedidos pelas 2ª e 3ª Varas da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro carecem de respaldo legal devendo, pois, serem desconstituídos” (Id. 4517075) e “indicam um possível viés de criminalização da pobreza e, de consequência, de ofensa aos princípios constitucionais da igualdade (CF, art. 5º, caput), da impessoalidade (CF, art. 37) e da dignidade humana (art. 1º, III), dentre outros”.

Com essa breve recuperação do que foi manifestado nos autos, passo a fazer as seguintes avaliações.

Em primeiro lugar, é preciso dar a devida relevância ao parecer do Fórum Nacional da Infância e da Juventude, que cuida da coordenação e execução de toda a política nacional para a infância e juventude no Poder Judiciário, embora seja evidente que o Plenário não é obrigado a acatar todas as orientações dos órgãos consultivos e colaborativos do CNJ,  mas que concluiu acerca da correção dos atos ora impugnados.

Tendo isso em perspectiva, passo a analisar os argumentos da requerente sobre as Portarias impugnadas e o Ofício 131/2017:

I) TESE DO CARÁTER GERAL DAS PORTARIAS - INOCORRÊNCIA

De início, importa reconhecer que as portarias não afrontam a norma do art. 149 do ECA (Lei n. 8.069/1990). A autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, a entrada e permanência de criança ou adolescente desacompanhados dos pais ou responsáveis nos locais e eventos discriminados no inciso I, devendo essas medidas serem fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral, ex vi do § 2º.

As portarias não se aplicam a todos indistintamente. Elas se aplicam à circunscrição da 3ª VIJI e determinam a retenção de documento, assim como obstam a alta hospitalar, condicionando-a a decisão judicial – quando observada situação de abuso físico, sexual, drogadição dos pais e negligência grave. Ou seja, a portaria se aplica a situações bastante específicas e determinadas que eventualmente ocorram dentro da competência dos juízos que a editaram. Retirar essa possiblidade sob o fundamento de caráter geral é tornar a norma do ECA que autoriza a edição de portarias sem efeito.

II) PRINCÍPIO DA IGUALDADE, DIGNIDADE E DIREITO DE IR E VIR – PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Quanto à matéria e às teses de “criminalização da pobreza e, de consequência, de ofensa aos princípios constitucionais da igualdade (CF, art. 5º, caput), da impessoalidade (CF, art. 37) e da dignidade humana (art. 1º, III)” e direito de ir e vir dos recém nascidos, precisamos ampliar a análise para toda a Constituição.  

A CF/88, antecipando a própria Convenção sobre os Direitos da Criança, consagrou o princípio da proteção integral. A Doutrina da Proteção Integral introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do artigo 227 da Constituição Federal, o dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

É fundamental observar que a proteção de que se cuida não se restringe aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, mas se amplia para a garantia do desenvolvimento pleno da criança. O Estado não pode existir apenas para salvaguardar o direito de ir e vir (invocado no caso em análise), mas deve se organizar e destinar seus recursos para viabilizar o desenvolvimento material, familiar, social, recreacional, espiritual etc. Na esteira do que decidiu o STF na ADI 2096/DF, cujo seguinte trecho reputo importante transcrever:

A adoção da doutrina da proteção integral representa a mais profunda transformação promovida pela Convenção dos Direitos sobre a Criança de 1989. Além de estender à população infantojuvenil, sem quaisquer distinções, todas as garantias decorrentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos demais Pactos Internacionais de Direitos da Pessoa Humana, amplia ainda mais o espectro protetivo inerente ao Sistema Global de Proteção às liberdades essenciais da pessoa humana, assegurando às crianças e aos adolescentes uma proteção qualificada que, projetando-se para além da tutela estritamente judicial dos seus interesses, abrange a integralidade de sua dimensão existencial, compreendendo o desenvolvimento pleno de suas relações familiares, sociais, comunitárias, educacionais, recreativas, materiais e também espirituais (...)

É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que a proteção aos direitos da criança e do adolescente (CF, art. 227, “caput”) qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, ajustando-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num “facere”, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que viabilizem, em favor dessas mesmas crianças e adolescentes, “(...) com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (CF, art. 227, “caput”). (ADI 2096, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-258 DIVULG 26-10-2020 PUBLIC 27-10-2020)

 

O adimplemento da proteção integral não se realiza, portanto, com uma atuação negativa, com a garantia de não intervenção do Estado na esfera da liberdade do ser em desenvolvimento, mas com a ação, com facere. O Poder Público tem o dever de tornar real a proteção da criança, garantindo-lhe a assistência integral, (CF, art. 227, “caput” e § 7º, c/c o art. 204, n. II) “sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, um de seus precípuos destinatários” (ADI 2096/DF).

Portanto, afirmar que o Estado não pode intervir no direito de ir e vir diante de suspeita de violência ou negligência contra a criança é desconsiderar completamente a orientação constitucional da proteção integral e seu significado, é ignorar o dever do Poder Público de agir diante de riscos a qualquer uma das dimensões dos direitos da pessoa em desenvolvimento.

A Portaria atacada não determina a retenção das mães puérperas que dão sinais de que não atenderão às necessidades das crianças recém-nascidas, mas condiciona a alta hospitalar. Ela não revela dissonância com os comandos constitucionais, mas traz conteúdo ao dever da proteção integral.

Conquanto não se admita discriminação às mães em situação de rua ou drogadição, é menos admissível que recém-nascidos sejam negligenciados diante dos profissionais de saúde confrontados com sinais de violência, abandono e risco.

III) PRIORIZAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. ATUAÇÃO COMPARTILHADA PELA REDE DE PROTEÇÃO.

As perguntas que se apresentam de plano aos que pretendem não reconhecer essa atuação dos juízos da infância são: quando seria adequado ao magistrado atuar diante de sinais de negligência? O magistrado é obrigado a esperar o Conselho Tutelar para agir? O que justifica condicionar a atividade jurisdicional diante de uma suspeita de ilícito, a propósito, o mais abominável que se pode imaginar, que é negligência ou violência contra crianças?

A resposta jurídica para esse problema é: não existe qualquer fundamento jurídico para condicionar o conhecimento de eventuais riscos à criança pelo Juízo da Infância ao prévio acionamento do Conselho Tutelar.

A rede de proteção estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente se mantêm atuando, não havendo qualquer impedimento nos atos impugnados ao desempenho de seu trabalho. Eventual alerta dos profissionais da saúde ao Juízo da Infância não impede que qualquer dos legitimados a defender os direitos da criança trabalhem.

É importante considerar, pelos limites que o Estado muitas vezes tem, a possiblidade de uma atuação insuficiente dos outros atores da Rede de Proteção. Isso nos direciona, imediatamente, para a necessidade de fortalecimento das iniciativas de seus integrantes, e não do contrário.

A manifestação do FONINJ nos encaminha da mesma forma: na compreensão de que os atos não afastam a atuação dos integrantes da Rede ao incluir o Judiciário nos alertas sobre eventuais riscos aos direitos da criança (ID 4131843):

Em realidade o pronunciamento judicial traz a reiteração de uma expressa disposição legal de que, havendo indício de violação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes que se opere imediatamente o acionamento da Rede de Proteção, onde, por evidente, se inclui a Segunda Vara da Infância e Juventude e do Idoso, sem prejuízo dos demais atores da rede. Nesta linha o Oficio 131/2017, da 3ª VIJI, item “3”. A ideia norteadora da irresignação suscitada diz com as atribuições do Conselho Tutelar. Criança e Adolescente enquanto responsabilidade de todos, não exclui, na esfera de atribuição de cada um dos integrantes da Rede de Atendimento, o acesso à informação ao comunicado de violação de direitos, inclusive, por evidente, o próprio Poder Judiciário e o Ministério Público. A competência constitucional é da família e Estado.

(...)

Por que o Poder Judiciário não pode ser informado de uma violação de direitos?

Afirmar o papel da Rede na proteção dos direitos fundamentais de crianças não extrai dos Juizados da Infância o dever de agir diante de violações de direitos dos recém nascidos. A Portaria não exclui, na esfera de atribuição de cada um dos integrantes da Rede de Atendimento, o acesso à informação ao comunicado de violação de direitos, inclusive, por evidente, o próprio Poder Judiciário e o Ministério Público. A Portaria não retira da Rede seu papel e não enfraquece sua importância. Apenas, em nome da proteção integral e o interesse da criança, amplia o acesso à informação do juízo competente.

Por fim, considero importante reconhecer que a defensoria demonstra atacar, por vias transversas, as eventuais decisões judiciais tomadas posteriormente ao cumprimento das portarias em questão. Em sua manifestação oral, ouvida atentamente pelo Plenário do CNJ, é revelada a preocupação com a “judicialização desnecessária” dos casos em razão do atendimento das orientações daquele Juízo (ou seja, com a comunicação, pela equipe médica, à 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital a respeito de qualquer situação que denote possibilidade de violação a direitos fundamentais de crianças e adolescentes). Afirma que as medidas enfraquecem o sistema de garantias e que são puladas etapas do sistema e bebes recém-nascidos são separados abruptamente das mães. A preocupação manifestada se dirige ao que os magistrados podem fazer após o cumprimento das determinações das portarias.

Sobre isso importa reconhecer que da anulação das portarias não decorre a diminuição da judicialização. Não se pode prevenir a judicialização diminuindo o acesso do juiz às informações. E, não seria preciso relembrar que as decisões judicias são passíveis de revisão jurisdicional e enfrentam recursos próprios, a serem manejados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

 

IV)             CONCLUSÃO

Depreende-se que as medidas em análise foram adotadas em um cenário dramático. São medidas extremas adotadas em um contexto extremo.

Todos os atores deste feito, partes e interessados, possuem os mesmos interesses e necessidades: a proteção integral das crianças. Esse objetivo comum será melhor atingido com a confluência de ações e a harmonização de suas atuações.

Esses interessados, além de diretamente afetados pela realidade que levou à edição dos referidos atos, são autoridades na matéria, com conhecimentos teórico e prático que merecem ser reconhecidos.

 A solução, no presenta caso, fica empobrecida se circunscrita a uma discussão meramente jurídico-legalista, embora pudesse ter sido encaminhada de forma diversa na comunhão dialogada de interesses.

Diante de todo o exposto, estando inviabilizada, nesta altura, outra alternativa pela via consensual, julgo improcedente o pedido com as vênias de estilo.

É como voto.

Brasília, data registrada no sistema.

 

Ministro LUIZ PHILIPPE VIEIRA DE MELLO FILHO

Conselheiro Relator

 

 

GMLPVMF/2

VOTO PARCIALMENTE DIVERGENTE

 

 

Acompanhando o bem lançado voto do eminente Conselheiro Relator no presente caso, Des. Mauro Pereira Martins, e rogando as mais respeitosas vênias ao profundo voto do digno Conselheiro Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, lanço a presente declaração de voto, por entender necessário registrar os  fundamentos jurídicos pelos quais acompanho Sua Excelência no conhecimento parcial dos pedidos e no julgamento de procedência e proponho, ao final, uma modulação dos efeitos jurídicos da decisão deste Plenário.

 

Como bem lembrou o nobre Relator, o artigo 8º do Código de Menores de 1979, o qual autorizava a expedição de portarias pelo juiz de menores para determinar medidas de ordem geral que, ao seu prudente arbítrio, fizessem-se necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor foi revogado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, não se cogita mais do antigo poder normativo do magistrado[1].

 

Mesmo o art. 149 do Estatuto, não trata, como pode parecer, de competência normativa do juiz, na medida em que “o Estatuto veda que o juiz elabore norma de comportamento social, que deve decorrer exclusivamente de processo legislativo, ao prever que as decisões judiciais”, ainda que formalizadas por meio de portarias como previstas no ECA, “devem estar adstritas a situações casuísticas, concretas e não gerais”[2].

Respeitada doutrina especializada[3] tem sustentado que o Juiz da Infância e da Juventude, no exercício de sua competência, pode expedir portarias em três (3) hipóteses:

 

(i)                Como responsável, sob o ponto de vista correcional, pela serventia do Juízo especializado, o magistrado ou a magistrada pode disciplinar internamente a atuação de seus servidores do cartório e/ou do gabinete, observando as normativas internas de seu tribunal de justiça, quando então praticará ato administrativo típico;

(ii)              Com fundamento no art. 191, o magistrado ou a magistrada poderá provocar a instauração de procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento, com natureza jurisdicional;

(iii)           E, em terceiro lugar, na hipótese do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o juiz ou juíza atuará, “caso a caso, quando provocado ou na forma do disposto no art. 153 do Estatuto”[4], devendo os atos ser devidamente fundamentados, vedadas as determinações de caráter geral, razão pela qual, para a maioria da doutrina e jurisprudência, essa portaria terá natureza jurídica de ato jurisdicional, decisório[5], e por isso sujeito ao controle processual, estando sujeito ao recurso de apelação, de acordo com o art. 199 do ECA.

           

Entretanto, penso que este rol não é exaustivo e pode haver outras hipóteses em que este instrumento denominado “portaria” poderá ser utilizado pelo magistrado ou pela magistrada da infância e da juventude. A mais relevante para o caso concreto é o de cooperação judicial ou interinstitucional.

 

Não pretendo aprofundar o tema neste voto. Entretanto, importante salientar que, movido pelo princípio constitucional da eficiência na administração pública (aplicável inclusive à administração judiciária), pela importância do processo de desburocratização instituído pela Lei nº 13.726/2018 e pelo princípio da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII), o Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) instituiu, por meio dos seus arts. 6º, 8º, 67 e 69, os princípios da cooperação e eficiência no processo civil, bem como os mecanismos de cooperação entre os órgãos do Poder Judiciário para a realização de atividades administrativas e para o exercício de funções jurisdicionais.

 

No intuito de conferir maior densidade a esses princípios e dispositivos processuais, este Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução n. 350, de 27 de outubro de 2020, que estabeleceu diretrizes e procedimentos sobre a cooperação judiciária nacional entre os órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades.

 

Embora tal resolução não traga expressamente a possibilidade de utilização do instrumento denominado portaria ou “portaria conjunta”, não vislumbro qualquer óbice a que o ato concertado possa também ser formalizado por intermédio desses institutos, sobretudo no caso da cooperação interinstitucional prevista no Capítulo IV da referida Resolução, que no meu modesto entender não envolve apenas os órgãos de cúpula das instituições previstas no art. 16, cujo rol é exemplificativo, mas também dos demais órgãos (desde que não haja violação das suas respectivas competências).

 

Aliás, existem fundamentos normativos específicos na área da infância e da juventude para o trabalho interinstitucional, que é considerado essencial para o legislador, como se extrai do Estatuto da Criança e do Adolescente quando este prevê expressamente: a)  a obrigatoriedade de formação profissional com abrangência dos direitos da criança e do adolescente que favoreça a intersetorialidade no atendimento da criança e do adolescente em seu desenvolvimento integral como diretriz da política de atendimento (art. 88, IX); b) a necessidade de atuação colaborativa entre as equipes interprofissionais da Infância e da Juventude e os técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar e comunitária (art. 28, § 5º) nos casos de colocação de crianças e adolescentes em família substituta; c) a colaboração entre órgão federal responsável pelas políticas indigenistas, equipes interprofissionais e antropólogos no caso de crianças e adolescentes indígenas; d) a obrigatoriedade de colaboração entre equipes interprofissionais a serviço da Justiça da Infância e da Juventude nos casos de  colocação em adoção, preferencialmente em apoio aos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida (art. 46, §§ 3º e 4º); e) a realização de ações com apoio do Conselho Tutelar local (art. 93, parágrafo único); f) a colaboração entre o Judiciário e os órgãos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar na orientação à família natural e à família substituta (art. 166, § 7º); e tantas outras hipóteses previstas nessa legislação que exige um trabalho sempre conjunto entre o Sistema de Justiça e o Sistema de Garantia de Direitos.

 

Da mesma forma, na Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, denominada de Marco Legal da Primeira Infância, verificamos que a atuação interinstitucional é primordial, na medida em que, por 14 (quatorze) vezes, esta legislação, que acaba de completar 7 anos em vigor, estabelece regras impondo de forma vinculante a intersetorialidade (arts. 6º, 7º, §§ 1º e 2º, 8º, parágrafo único, 24 e 30); a colaboração (art. 8º, caput); a parceria (art. 12, III); e também outras atuações em conjunto.

 

A atuação conjunta entre a rede de atendimento e o Judiciário pode inclusive exigir, para um trabalho concertado, um instrumento como uma portaria conjunta ou uma portaria do juízo, construído em parceria com os órgãos e atores envolvidos para o desenvolvimento de um fluxo, procedimento acordado entre todos para garantir a execução dos misteres previstos na Constituição Federal e nas legislações infraconstitucionais.

 

Às vezes, esses acordos ou regulamentações poderão ser realizados nacionalmente, como é o caso da entrega legal voluntária, a qual foi regulamentada pela Resolução nº 485/2023 deste Conselho Nacional de Justiça, órgão de estatura constitucional que possui competência normativa primária para disciplinar os temas fixados na Carta da República.

 

Em outras situações, possível a normatização administrativa para o caso de, por exemplo, garantir o direito ao registro de nascimento, como autoriza o art. 42 do Marco Legal da Primeira Infância, que modificou o art. 5º, § 2º da Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012 e estabeleceu a obrigação de os estabelecimentos de saúde públicos e privados que realizam partos interligarem-se, no prazo de um ano, mediante sistema informatizado (Sistema Nacional de Informações de Registro Civil - SIRC), às serventias de registro civil existentes nas unidades federativas que aderirem ao sistema interligado previsto em regramento do CNJ.

 

Como já salientado anteriormente, os magistrados e as magistradas não possuem poder de legislar, razão pela qual não podem alterar o regime jurídico em vigor. Entretanto, observando os serviços locais, as características regionais e até para ajustar as prioridades das políticas municipais da primeira infância e dos planos municipais da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes aos procedimentos judiciais, os fluxos na comarca poderão ser aclarados por acordo local.

 

Esses fluxos não podem, por evidência, violar diretamente a legislação e muito menos os direitos fundamentais.

 

No caso concreto, a despeito das boas intenções das portarias exaradas pela 2ª e 3ª Varas da Infância e da Juventude e do Idoso da Capital do Estado do Rio de Janeiro, as quais destinavam-se, sobretudo, a impedir condutas fraudulentas, os fluxos fixados não podem prevalecer. Como bem salientou o eminente Relator, não me parece que as portarias objurgadas gozem de fundamentos jurídicos aptos a autorizar seu reconhecimento como definidoras de fluxos acordados.

 

Em primeiro lugar, porque não há prova mínima de que o fluxo teria sido construído pelos órgãos do Sistema de Justiça e os hospitais, maternidades e serventias extrajudiciais. 

 

Em segundo, porque os protocolos não atingem de forma igual todos os serviços na Comarca da Capital, o que viola diretamente o princípio constitucional da igualdade, pois como bem salientado no voto que acompanho, “para cumprir as determinações constantes do referido ofício, as equipes do serviço social têm adotado, dentro de uma mesma maternidade, protocolos diferenciados para as puérperas que residem na área de competência da 3ª. VIJI (Id. 4026437)”. E, “[n]ão bastasse isso, constata-se que os atos editados geram consequências que também caminham na contramão da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Resolução CNJ 254/2018), porque acabam por fragilizar direito de mulheres que já se encontram em situação de vulnerabilidade social”.

 

Concordo com os juízos que devem ser garantidos os direitos fundamentais da genitora, assim como o direito do recém-nascido ao respectivo registro civil. Entretanto, retirar da primeira o direito de levar a versão original da Declaração de Nascido Vivo (DNV) não me parece a maneira mais acertada de assegurar esses   direitos.

Talvez seja mais adequado definir-se um fluxo com a remessa de cópia do DNV aos órgãos competentes, nos casos em que a genitora não comprovar ter registro ou documento civil, a fim de que o sistema de garantias acompanhe os casos e apoie esta última na promoção da regularização futura dos registros, o que exigirá ali a composição das vontades dos órgãos públicos, talvez com o apoio deste Conselho Nacional de Justiça e, mais especificamente, da egrégia Corregedoria Nacional.

 

Em virtude dessas razões e ainda dos muito bem delineados fundamentos do voto do Relator, acompanho a conclusão lançada por Sua Excelência.

 

No entanto, a despeito da nulidade que se declara, penso que os efeitos jurídicos da decisão deste Plenário do CNJ devem ser “ex nunc”, a fim de garantir a segurança jurídica e os direitos das crianças, adolescentes e até das genitoras  diante das medidas protetivas que já foram aplicadas nesses quase oito (8) anos e sob pena de violar os direitos registrais eventualmente garantidos por decisões judiciais prolatadas.

 

Importante a fixação desses efeitos, conforme exigência do art. 21, caput da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). É evidente que em casos específicos, nos quais tenham ocorrido anormalidades ou excessos, além da possibilidade de eventual nulidade ser reconhecida judicialmente, qualquer decisão fundada em uma das portarias poderá ser objeto de nova apreciação por este Conselho, nos termos do parágrafo único do referido art. 21.

 

As portarias impugnadas, que são atos administrativos – e só por isso podem ser objeto de controle pelo procedimento de PCA – não merecem que a invalidade que se reconhece alcance todos os atos praticados em função de sua observância. A segurança jurídica e a boa-fé impedem que se atribua, como regra, eficácia retroativa ao ato de invalidação. No presente caso, avança-se sobre direito de terceiros, em especial os nascidos-vivos, razão pelo qual os efeitos da declaração de nulidade devem ser “ex nunc”.

 

Diante do exposto, renovando as minhas mais respeitosas vênias aos que pensam em sentido contrário, declaro a nulidade da Portaria n. 3/2015 e do Ofício n. 3/2017, editados pela 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, bem como da Portaria n. 1/2019, expedida pela 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, divergindo do Relator apenas para fazê-lo com eficácia ex nunc, a contar da publicação deste acórdão.

 

É como voto.

 



[1] Conforme defendeu Antônio Fernando do Amaral e Silva. Em CURY, Munir; SILVA, Antônio Fernando do Amaral e; MENDEZ, Emílio García. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 450.

[2] ROSSATO, Luciano Alves; LEPORÉ, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 2ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 410.

[3] SANTOS, Ângela Maria Silveira dos Santos. In, MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2013. Também em CARNEIRO, Rosa Maria Xavier Gomes. As portarias expedidas pela autoridade judiciária com base no art. 149 do ECA e os novos paradigmas que regem o Direito da Criança e do Adolescente. Revista do Ministério Público, n. 25, Rio de Janeiro, jan./jun. 2007, p. 203-227.

[4] SANTOS, Ângela Maria Silveira dos Santos. In, MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 843.

[5] Vide STJ, REsp, 1.292.143/sp, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 21-6-2012.