Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0006428-90.2021.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE MATO GROSSO
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO - TJMT



PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO - TJMT. LEI ESTADUAL N. 11.077/2020. CUSTAS JUDICIÁRIAS. TRIBUTO. TAXA DE SERVIÇO. NOVAS HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA. MAJORAÇÃO DA ALÍQUOTA. ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA ANUAL E NONAGESIMAL. OBSERVÂNCIA SIMULTÂNEA. DECISÃO DO STF EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCIDÊNCIA TEMPORAL E MATERIAL DA LEI. PROCESSOS DISTRIBUÍDOS A PARTIR DE SUA VIGÊNCIA. UNIDADE PROCESSUAL. ADOÇÃO EXPRESSA. ATOS, INCIDENTES E RECURSOS. INEXISTÊNCIA DE NOVO PROCESSO. FATOS IMPONÍVEIS PRATICADOS SOB A VIGÊNCIA DA NOVA LEI. IRRELEVÂNCIA. APLICAÇÃO DA TABELA ANTERIORMENTE VIGENTE. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. A lei que promove alteração na disciplina das custas judiciárias para instituir novas hipóteses de incidência e majorar a alíquota de tributos não é exigível antes do decurso de noventa dias, tampouco no mesmo ano-exercício financeiro, tomada a publicação por referencial.

2. É descabida a consideração de ato, incidente ou de recurso como novo processo para fins de incidência de maior carga tributária que, de modo expresso, foi afastada por dispositivo legal de unívoca interpretação.

3. O emprego da analogia não pode resultar na existência de tributo não tipificado em lei.

Procedência do pedido para determinar ao TJMT que se abstenha de aplicar as hipóteses de incidência e alíquotas majoradas de custas do foro judicial instituído pelo art. 6ª e itens do art. 13 da Lei n. 11.077/2020 a atos, fases e incidentes processuais de processos distribuídos até 31 de dezembro de 2020.

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, julgou procedentes os pedidos, com determinação ao Tribunal, nos termos do voto do Relator. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Plenário Virtual, 20 de abril de 2023. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, Sidney Madruga, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0006428-90.2021.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE MATO GROSSO
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO - TJMT


RELATÓRIO


Cuidam os autos de Procedimento de Controle Administrativo movido em 20 de agosto de 2021 pela Seção do Estado de Mato Grosso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT) contra atos do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso (TJMT) relativos à sistemática de imposição de custas processuais disciplinada pela Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020.

Insurge-se a Ordem, em síntese, contra a cobrança de custas processuais segundo parâmetros fixados pela nova lei em recursos de apelação e em outros atos processuais relacionados a processos distribuídos antes de sua vigência.

Alega que o art. 15 da norma em comento estatui regra que limita o âmbito de incidência do novo diploma legal apenas “aos processos que forem distribuídos” após a data de entrada em vigor da nova legislação.

Noticia que, após o início de cobranças de custas processuais na interposição de recursos e de outros atos processuais com os valores da nova tabela, requereu o saneamento da irregularidade pela Corregedoria-Geral da Justiça de Mato Grosso. Informa que o feito foi indeferido sob o argumento principal de que a lei “busca ressalvar os fatos geradores ocorridos antes da sua vigência, mas em hipótese alguma cria a ultratividade das tabelas de custas praticadas no momento da distribuição inicial do processo” (id 4454270, p. 3).

Sustenta que a lei estadual optou, de modo inequívoco, por adotar o sistema da unidade processual, sem qualquer dispositivo que permita a aplicação da nova tabela de custas do foro judicial a processos pendentes.

Argumenta que a interpretação dada pelo Tribunal ao art. 15 da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, considera equivocadamente que atos e fases processuais devem ser considerados como fato gerador autônomo para fins de geração de obrigação tributária, o que autorizaria a imposição dos novos valores ainda que o processo tenha sido distribuído antes do início da vigência da lei.

Defende que o princípio setorial da legalidade estrita impede a cobrança de tributos sem a subsunção do fato a todos os elementos obrigatórios caracterizadores da norma – no particular, a ausência de regra prevendo, de modo específico, a incidência da nova alíquota sobre atos e fases processuais praticadas em processos distribuídos antes da data em que a norma majorante de tributo se tornou eficaz.

Ao destacar o considerável aumento no valor da alíquota incidente sobre as custas processuais, requer a concessão de medida antecipatória dos efeitos da tutela final pretendida para suspender a aplicação da nova lei a atos e fases de processos distribuídos na vigência do regime de cobrança anterior.

No mérito, busca ver definitivamente repelida a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça mato-grossense ao art. 15 da Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020 (publicada no Diário Oficial de 13 de janeiro de 2020), de modo a afastar sua incidência sobre processos distribuídos antes de 11 de abril de 2020.

O feito foi distribuído à relatoria da Conselheira Candice Lavocat Galvão Jobim. Em 25 de agosto de 2021, a então Relatora postergou a análise do pedido liminar e determinou a notificação do TJMT para que, no prazo de 5 (cinco dias), se manifestasse quanto aos fatos descritos na inicial (id 4457014).

Em resposta, a Desembargadora Maria Helena Gargaglioine Póvoas, presidente do Tribunal, prestou informações em 31 de agosto de 2021 (id 4465539).

Defende, em suma, que cada um dos itens das tabelas de custas judiciais anexas à Lei n. 7.603, de 27 de dezembro de 2001, com redação dada pela Lei n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, constitui fato gerador autônomo – é a incidência isolada de cada um deles que dá origem à obrigação tributária.

Rechaça os precedentes citados pela requerente como aplicáveis à espécie, por não guardarem relação com a situação ora posta.

Defende não haver qualquer afronta à legislação, pois a hipótese de incidência prevista em lei abrange ato processual praticado já na vigência da nova norma, como a interposição de recursos de apelação e de agravo de instrumento – que, por demandar nova distribuição, daria causa ao “[nascimento de] novos processos” (id 4465539, p. 5).

Transcreve manifestações técnicas da Coordenadoria Financeira do Tribunal e da Corregedoria-Geral da Justiça, todas defendendo a legalidade da cobrança.

Em 8 de setembro de 2021, a Conselheira Relatora indeferiu o pleito liminar (id 4472016), sob o fundamento de que o risco que se busca repelir vige desde janeiro daquele ano, fragilizando o requisito de contemporaneidade do risco alegado. Ponderou, ainda, a emergência de potencial dano reverso com a redução de receitas. Restituído o prazo regimental para manifestação do Tribunal.

Informações complementares, remissivas àquelas prestadas quando da manifestação prévia ao exame da cautelar, foram ofertadas pelo TJMT em 5 de outubro de 2021 (id 4502114).

Redistribuídos os autos em 9 de dezembro de 2021 por aplicação da regra prevista no art. 45-A, § 2º, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ).

Em 4 de fevereiro de 2022, o Conselho Seccional da OAB-MT apresentou pedido de reconsideração da decisão que indeferiu o pedido liminar (id 4605119).

É o relatório.

 

Luiz Fernando BANDEIRA de Mello
Conselheiro Relator

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VOTO


Considerações introdutórias sobre a Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020

A aparente singeleza da questão posta nos autos não resiste a um olhar mais aprofundado sobre a questão controvertida em debate, que demanda reflexões sobre hermenêutica jurídica e sobre princípios e regras de direito tributário e de direito intertemporal.

A questão controvertida em discussão neste procedimento de controle administrativo é a adequada interpretação do art. 15 da Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, do Estado de Mato Grosso, cuja redação é a seguinte:

Art. 15. As custas previstas nesta Lei se aplicam aos processos que forem distribuídos após a data da vigência desta Lei.

Antes de esquadrinhar a causa de pedir próxima, faz-se necessária breve digressão para que se contemple, de modo panorâmico, o arcabouço normativo da tributação mato-grossense sobre serviços judiciários.

A Lei Estadual n. 11.077, de 2020, alterou substancialmente o regime de custas processuais vigente no Estado de Mato Grosso. Como enunciado em seu art. 1º, o diploma altera e inclui dispositivos na Lei Estadual n. 7.603, de 27 de dezembro de 2001, que “fixa o valor de custas, despesas e emolumentos relativos aos atos praticados no foro judicial, institui o Selo de Autenticação e dá outras providências”.

Dentre outras cláusulas, a nova lei prevê novas hipóteses de incidência de tributo (custas dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, por exemplo), dá novo regramento ao selo de autenticidade do Poder Judiciário e, no que interessa a este procedimento, redesenha as tabelas de custas do foro judicial e promove atualização de valores e aumento de alíquotas.

Confira-se:

Descrição da hipótese de incidência

Lei 7.603/011

Valor (R$)

Lei 11.077/20

Valor (R$)

Majoração (%)

Tabela A – Segunda instância

 

 

 

01 Recursos oriundos do 1º grau

 

 

 

Causas de valor inestimável e nas de até R$ 41.343,13

R$ 375,89

R$ 413,40

9,98%

Causas com valor acima de R$ 41.343,13

R$ 375,89

3% valor da causa

(até R$ 87.895,00)

229,96% até 23.283,17%

02 Agravo de Instrumento

R$ 155,88

R$ 330,72

112,16%

04 Feitos originários

 

 

 

Causas de valor inestimável e nas de até R$ 41.343,13

R$ 413,40

R$ 413,40

0%

Causas com valor acima de R$ 41.343,13

1% valor da causa

(até R$ 34.605,14)

2% valor da causa

(até R$ 87.895,00)

100% até 153,99%

Tabela B – Primeira instância

 

 

 

01 Ações e procedimentos em 1º grau

 

 

 

Causas de valor inestimável e nas de até R$ 41.343,13

R$ 413,40

R$ 413,40

0%

Causas com valor acima de R$ 41.343,13

1% valor da causa

(até R$ 34.605,14)

2% valor da causa

(até R$ 87.895,00)

100% até 153,99%

Tabela C – Cejusc 

 

 

 

01 Homologação de acordo

Sem previsão

1% acordo

(até R$ 87.895,00)

-

 

Como se vê, algumas das alíquotas foram majoradas até consideráveis 23.283% (vinte e três mil duzentos e oitenta e três por cento), como no caso da interposição de recurso em causa originária do primeiro grau de jurisdição a que se atribuíra valor superior a R$ 2.929.833,33 (dois milhões novecentos e vinte e nove mil oitocentos e trinta e três reais e trinta e três centavos).

Por provocação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a majoração de alíquotas patrocinada pela Lei Estadual n. 11.077, de 2020, foi levada ao Supremo Tribunal Federal.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade de autos n. 6.330, autuada em 10 de março de 2020, foram impugnados os arts. 6º e 16 e itens das tabelas A (itens 1, 2, e 4), B (item 1) e C (item 1) do art. 13 da Lei por alegado malferimento a preceitos constitucionais diversos. Apontou-se infringência às garantias de acesso à justiça e de ampla defesa, aos postulados de proporcionalidade e razoabilidade, aos princípios setoriais tributários da capacidade contributiva e do não confisco e, finalmente, às regras da vedação de utilização da taxa para fins meramente fiscais e da anterioridade do exercício financeiro.

Em 19 de março de 2020, o Ministro Alexandre de Moraes, sorteado relator, deferiu a medida cautelar para suspender a eficácia dos dispositivos impugnados até 31 de dezembro de 2020. O Relator reconheceu potencial infração ao princípio da anualidade tributária, previsto no art. 150, III, “b”, da Constituição da República, decretando “a impossibilidade de os artigos impugnados serem aplicados no exercício financeiro” em curso à época.

O mérito da causa foi analisado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 16 de junho de 2020. Por maioria, a Corte julgou a ação parcialmente procedente, tornando definitiva a medida liminar para conferir interpretação conforme ao art. 16 da Lei Estadual 11.077, de 2020, que vincula a eficácia dos dispositivos impugnados ao início do exercício financeiro subsequente.

 Transcrevo a ementa da decisão referida:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL 7.603/2001, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.077/2020 DO ESTADO DE MATO GROSSO. CUSTAS JUDICIAIS ATRELADAS AO VALOR DA CAUSA OU DA CONDENAÇÃO. POSSIBILIDADE. DESPROPORCIONALIDADE NA MAJORAÇÃO DOS VALORES. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 5º, XXXV E LV, 145, II E § 1º, E 150, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO OCORRÊNCIA. INTERPRETAÇÃO CONFORME. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DE EXERCÍCIO TRIBUTÁRIO (ART. 150, III, B, DA CF). PARCIAL PROCEDÊNCIA.

1. A jurisprudência firmada no âmbito deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL valida o uso do valor da causa como critério para definição do valor das taxas judiciárias, desde que estabelecidos valores mínimos e máximos. (Súmula 667 do SUPREMO; ADI 2.078, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 12/4/2011; ADI 2.040-MC, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 25/2/2000; ADI 2.696, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe de 13/3/2017).

2. Ao definir como parâmetro percentuais que, limitados a um teto correspondente a R$ 87.895,00, variam entre 1% e 3%, a incidir sobre o valor da causa ou do acordo homologado, além de estabelecer valores fixos não representativos de qualquer exorbitância para determinados processos e atos processuais (R$ 330,70 e R$ 413,40), a Lei 1.077/2020 do Estado de Mato Grosso manteve-se em sintonia com as balizas jurisprudenciais traçadas por este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

3. A norma impugnada fixa limites mínimos e máximos às custas processuais, que espelham valores e percentuais razoáveis para a adequada remuneração do serviço público prestado, de modo a não configurar qualquer ofensa ao acesso à justiça, à ampla defesa, ao princípio da capacidade contributiva, à vedação da utilização de taxas para fins meramente fiscais e ao princípio do não confisco. Constata-se parâmetro percentuais que, limitados a um teto correspondente a R$ 87.895,00, variam entre 1% (um por cento) e 3% (três por cento), a incidir sobre o valor da causa ou do acordo homologado, além de estabelecer valores fixos não representativos de qualquer exorbitância para determinados feitos e atos processuais (R$ 330,70 e R$ 413,40), em sintonia com as balizas jurisprudenciais traçadas por este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADI 3.826, Rel. Min. EROS GRAU, DJe de 19/8/2010 e ADI 2.655, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 26/3/2004, Rel. Min. EDSON FACHIN, Sessão Virtual de 22/5/2020 a 28/8/2020, acórdão pendente de publicação).

4. Impossibilidade de os dispositivos impugnados serem aplicados no exercício financeiro de 2020, haja vista a Lei que os alberga ter sido publicada no Diário Oficial de 13 de janeiro de 2020. Interpretação conforme à Constituição ao art. 16 da Lei 11.077/2020 do Estado de Mato Grosso, de modo a estabelecer que a eficácia do art. 6º e dos Itens 1, 2 e 4 da Tabela A, Item 1 da Tabela B e Item 1 da Tabela C, constantes do art. 13, do mesmo diploma legislativo, iniciar-se-á apenas em 1º de janeiro de 2021.

5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. (STF. ADI 6330/MT. Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES. j. em 16 jun. 2020)

Nessa ordem de ideias, tem-se que a Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, entrou em vigor em 11 de abril de 2020, após cumprido o período de vacatio legis fixado em seu art. 162. A eficácia dos dispositivos questionados na ADI n. 6.330/MT, contudo, operou-se apenas em 1º de janeiro de 2021, em respeito à decisão da Suprema Corte.

Aqui, encerro a necessária contextualização para voltar os olhos à controvérsia posta neste procedimento de controle.


O art. 15 da Lei e a incidência da nova norma

A eficácia plena da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, veio acompanhada de nova controvérsia. Desta vez, quanto ao modo de aplicação do art. 15 do diploma legal em análise.

O dispositivo sob exame, como visto, estabelece o âmbito material e temporal de aplicação da nova tabela de custas processuais: a norma incide sobre “processos que forem distribuídos após a data da vigência” (g. n.).

A Ordem dos Advogados do Brasil, em 4 de fevereiro de 2021, comunicou à Presidência do Tribunal de Justiça ter identificado irregularidade nas guias de preparo emitidas para recursos de apelação e de agravo de instrumento interpostos em processos distribuídos antes da vigência da nova lei (id 4454282, pp. 2-3). Em sua compreensão, o art. 15 da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, impõe a observância da nova tabela apenas para processos distribuídos após 1º de janeiro de 2021.

A decisão proferida pela Presidência do Tribunal de Justiça no Expediente n. 0005187-74.2021.8.11.0000, instaurado a partir da provocação da OAB-MT, revela interpretação distinta do mesmo dispositivo. A Corte considera que o objetivo do art. 15, ao excluir de seu âmbito de incidência os processos distribuídos antes de sua vigência, quis “ressalvar os fatos geradores ocorridos antes de sua vigência, mas não cria a ultratividade das tabelas de custas praticadas no momento da distribuição inicial do processo”. Por esta razão, tomado cada item da tabela de custas como constituinte de fato imponível autônomo, a tabela de custas da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, deveria ser observada sempre que a hipótese de incidência tributária se materializar, independentemente da data de distribuição do processo (id 4454282, pp. 31-36).

Para melhor compreensão da posição do TJMT a respeito do processado, transcrevo trecho das informações prestadas pela Corte a este Conselho Nacional:

No caso em comento, além das cobranças estarem sendo feitas a partir de fatos geradores ocorridos posteriores à Lei, destaco que quando da interposição dos Recursos de Apelação e do Agravo de Instrumento são feitas novas distribuições, nascendo novos processos, que serão remetidos aos Juízos e, se for o caso, enviados à instância superior para julgamento. Ou seja, além de constituírem fato gerador no momento da interposição, ainda são classificados como novos processos, o que torna ainda mais robusta a cobrança. (id 4465539, p. 5) (grifos do original)

 

No entanto, parece-me que admitir a interpretação proposta pelo TJMT ao art. 15 da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, demandaria não apenas desconsiderar duas expressões que, consigo, carregam conceitos jurídicos plenamente determinados: processo e distribuição (rectius: registro3).

Cintra, Grinover e Dinamarco identificam as plúrimas teorias que, a partir de distintos enfoques, buscam definir a natureza jurídica do fenômeno processual4. A compreensão de Bülow do processo como relação jurídica se funda na dialética entre as partes e o Estado-juiz, a quem incumbe definir o ato jurisdicional a partir de determinados pressupostos. Fazzalari, por outro lado, define o processo como procedimento qualificado pelo contraditório, a exigir que o conjunto de atos processuais coordenados e sucessivos, dirigido pela lei, se desenvolva com a participação dos sujeitos vinculados por uma relação jurídica. Já Kelsen, sob o prisma da teoria da norma jurídica, qualifica o processo como etapa intermediária de individualização da prescrição legal, em que se determina a incidência de determinada prescrição abstrata ao caso concreto5.

Ao tentar propor uma articulação conceitual que reconheça o processo como norma, como fato e como relação, Didier Jr. caracteriza o processo como “ato jurídico complexo pelo qual se busca a produção de uma norma jurídica por meio do exercício da função jurisdicional”6.

Sob o aspecto procedimental, o Código de Processo Civil (Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015) disciplina o exercício da função jurisdicional cível pelo Estado brasileiro. O processo, deflagrado por iniciativa da parte, desenvolve-se por impulso oficial em construção dialética que envolve as partes, terceiros juridicamente interessados (assistentes, denunciados, chamados, amici curiae) e seus respectivos procuradores, o magistrado e respectivos auxiliares e, eventualmente, representantes dos órgãos incumbidos do exercício de funções essenciais à Justiça (Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública).

A legislação processual confere ao magistrado instrumentos para garantir o avanço progressivo do processo, promovendo a distribuição dinâmica do ônus do tempo, zelando pela observância das regras e princípios que, como última instância, materializam o direito fundamental à prestação jurisdicional “adequada, efetiva e tempestiva”7.

Como fase última da construção do conteúdo semântico do vocábulo “processo”, é de rigor a depuração de significados outros que, embora povoem a doxa jurídica, não merecem abrigo sob o rigor metodológico que se demanda do operador da norma.

Nesse sentido, acorro novamente à seminal lição de Cintra, Grinover e Dinamarco:

Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais (processo administrativo, legislativo) e mesmo não-estatais (processos disciplinares dos partidos políticos ou associações, processos das sociedades mercantis para aumento de capital etc.).

Terminologicamente é muito comum a confusão entre processo, procedimento e autos. Mas, como se disse, procedimento é o mero aspecto formal do processo, não se confundindo conceitualmente com este; em um só processo pode haver mais de um procedimento (p. ex., procedimentos em primeiro e segundo graus). Autos, por sua vez, são a materialidade dos documentos nos quais se corporificam os atos do procedimento; (...) 8 (g. n.)

Uma vez estabelecida a definição de o que é e que não é processo, voltemos à norma paradigma: os fatos geradores e as correspondentes alíquotas das taxas de serviço instituídas pela nova lei “se aplicam aos processos que forem distribuídos” após sua entrada em vigor.

Impõe-se, como condição necessária para a incidência da regra, que ambas as condicionantes se revelem verdadeiras. Em outras palavras, a incidência das novas custas depende da simultânea verificação tanto da validade do antecedente (que exista um processo) quanto do consequente que o qualifica (que esse processo tenha sido distribuído após a entrada em vigor da Lei). A distribuição posterior é condição necessária — porém não suficiente — para que se verifique a hipótese de incidência da norma.

Distribuição é a solenidade de fixação de competência de determinado juízo dentre aqueles detentores de competência in abstracto para conhecer da matéria submetida à jurisdição.

Trata-se, como define Leonardo Carneiro da Cunha, de concretização da garantia constitucional do juiz natural:

Com efeito, o juiz natural aglutina a exigência de prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais, bem como a garantia de independência e imparcialidade dos juízes. Em outras palavras, a fixação da competência deve operar-se por critérios objetivos previstos em lei. Nesse contexto, pode-se afirmar que ninguém deve ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato, sendo certo que existe uma ordem taxativa de competências entre os juízos pré-constituídos, de forma que é vedada, proibida, afastada, defesa a possibilidade de haver, por qualquer um dos interessados, algum expediente tendente a “escolher” o juízo. Eis por que as regras de distribuição de competência concretizam a aplicação do juiz natural: estabelecem critérios gerais, prévios e objetivos para a identificação do juízo que irá processar e julgar a causa. No âmbito do processo civil, o art. 284 do CPC, ao exigir a distribuição dos processos onde houver mais de um juiz, concretiza a garantia do juiz natural. Não devem, em razão disso, ser desrespeitadas as regras de distribuição de causas – aí incluídos os casos de distribuição por dependência – cabendo, ademais, coibir as iniciativas de “escolha” do juízo.9

Nessa ordem de ideias, assiste razão ao Tribunal de Justiça quando, ao defender a legalidade das cobranças por todos os fatos geradores ocorridos após a plena eficácia da lei, afirma que a interposição de recursos demanda nova distribuição. Isso ocorre, ao menos, nos recursos devolutivos, em que o reclamo se dirige a órgão superior àquele que prolatou a decisão impugnada. Entretanto, recursos são classificados como meios de impugnação de pronunciamentos jurisdicionais com carga decisória, de natureza interlocutória ou de sentença. Os recursos na jurisdição cível, previstos taxativamente no art. 994 do Código de Processo Civil, não dão origem a processo, ainda que sua interposição demande a autuação em caderno procedimental apartado, como no agravo de instrumento.

Mitidiero e Marinoni esclarecem:

O recurso é o “remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna”. Trata-se de clássica lição da doutrina brasileira, cujos traços ecoam os principais aspectos que costumam delinear o conceito de recurso na doutrina italiana e na doutrina alemã: o escopo de reexame de uma decisão dentro do mesmo processo.10 (g. n.)

Recursos não se confundem com ações impugnativas autônomas de pronunciamentos jurisdicionais — estas sim, caracterizadoras de novo processo. Neste último caso, a discussão se estabelece a despeito de ter se operado a coisa julgada, em que o direito à reavaliação do mérito da questão submetida à jurisdição se encontra precluso.

Como ensinou o professor Barbosa Moreira:

O exercício do direito de impugnação pode atuar de dois modos diferentes. No comum dos casos, ele tem como consequência fazer prosseguir o processo que até então vinha correndo, em geral com deslocamento da competência: do órgão que proferiu a decisão (órgão a quo) passa o feito àquele a que incumbe o reexame (órgão ad quem). Chamam-se recursos os meios de impugnação que assim atuam. Como, entretanto, o processo deve necessariamente terminar mais cedo ou mais tarde, são limitadas as possibilidades de impugnação por essa via. A lei trata de circunscrever o número de recursos utilizáveis, subordinando-os, ademais, a determinados requisitos de admissibilidade.

A título excepcional, em hipóteses taxativamente previstas, admite o ordenamento que se impugnem decisões por outros meios. Aqui, porém, o oferecimento da impugnação não fará prosseguir o mesmo processo em que se proferira a decisão impugnada: dará lugar à instauração de outro processo, capaz, embora, conforme o seu resultado, de influir no do primeiro.

Os meios de impugnação dividem-se, pois, em duas grandes classes: a dos recursos – assim chamados os que se podem exercitar dentro do processo em que surgiu a decisão impugnada – e o das ações impugnativas autônomas, cujo exercício, em regra, pressupõe a irrecorribilidade da decisão. No direito brasileiro, protótipo da segunda classe é a ação rescisória, eventualmente cabível para impugnar sentenças (de mérito) já transitadas em julgado (art. 485, caput).11 (g. n.)

Pode-se, é verdade, considerar que a apologia à interpretação filológica da regra não pode ser tomada por absoluta e que, portanto, admitir-se-ia distinta exegese do conteúdo da norma que se busca concretizar. Entretanto, a hermenêutica defendida pelo TJMT não resiste à interpretação sistemática do ordenamento jurídico estadual a respeito da matéria.

Afinal, a aplicação da unicidade processual para fins de incidência de novas regras de tributação sobre as custas processuais em Mato Grosso não é inédita. A própria Lei Estadual n. 7.603, de 2001, traz dispositivo quase idêntico que limita a eficácia da então nova disciplina tributária das custas judiciárias:

Art. 18 Os processos distribuídos até 1º de abril de 2002 continuarão regidos pela Lei nº 3.605, de 19 de dezembro de 1974, e suas respectivas tabelas, com as alterações posteriores.

Aqui, parece não haver controvérsia. Em 7 de março de 2018, a Corregedoria-Geral da Justiça não editou apenas o já mencionado Provimento n. 11, que atualizou os valores das tabelas de custas processuais constantes de anexo à Lei Estadual n. 7.603, de 2001. Nesta mesma data, editou-se também o Provimento n. 12, que tinha por objetivo atualizar os valores das tabelas de custas instituídas pela Lei Estadual n. 3.605, de 19 de dezembro de 1974.

Causa estranheza o fato de que, diante de idênticas situações jurídicas, o TJMT ofereça soluções distintas aos jurisdicionados. A própria existência do Provimento n. 12 comprova que, nos processos distribuídos até 1º de abril de 2002, aplica-se integralmente a tabela de custas fixada pela legislação de 1974, sobre as quais incide atualização monetária que se opera independentemente da edição de lei em sentido formal13.

Em uma e em outra lei, o marco adotado para a definição do âmbito temporal de aplicação da nova norma é o mesmo: a distribuição do processo. Não há causa de discrímen que justifique a mudança do  entendimento da administração judiciária mato-grossense.

Justifico a incongruência. Tivesse o TJMT dedicado aos processos distribuídos antes de 1º de abril de 2002 a mesma ratio aplicada aos feitos aforados em data anterior à de eficácia plena da Lei Estadual n. 11.077, de 2020, considerando cada ato processual isoladamente para fins de incidência da hipótese tributária, inútil seria a atualização da tabela com valores aplicáveis a feitos iniciados quase duas décadas antes.

A nova lei estabelece, especificamente, condições materiais e temporais para sua vigência: os processos distribuídos a partir da data em que o diploma passou a produzir efeitos jurídicos concretos. Há expressa ressalva quanto aos processos já registrados e distribuídos — que se beneficiam da ultratividade da norma anterior modificada no particular, sob pena de se considerar como extinto o tributo pela ausência de tipicidade legal.

Portanto, o regime de cobrança de custas processuais no Estado de Mato Grosso rege-se, simultaneamente, por três leis: a) a Lei Estadual n. 3.605, de 19 de dezembro de 1974, aos processos distribuídos até 1º de abril de 2002; b) a Lei Estadual n. 7.603, de 10 de janeiro de 2001, aos processos distribuídos entre 2 de abril de 2002 e 31 de dezembro de 2020; e c) a Lei Estadual n. 7.603, de 10 de janeiro de 2001, com a redação que lhe fora dada pela Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, aos processos distribuídos a partir de 1º de janeiro de 2021.


Dispositivo

Em virtude de todo o exposto, voto no sentido de conhecer e de julgar procedentes os pedidos formulados neste procedimento de controle administrativo para determinar ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso que, em cumprimento ao art. 150, III, “b” da Constituição da República e ao art. 16 da Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, se abstenha de aplicar o regime de custas do foro judicial instituído pelo art. 6º e por itens das tabelas A (1, 2, e 4), B (1) e C (1) do art. 13 do mesmo diploma a atos, fases e incidentes processuais de processos distribuídos em instância originária até 31 de dezembro de 2020, devendo ainda regular, no prazo de 30 (trinta) dias, a devolução dos valores cobrados a maior àqueles que requererem.

Intimem-se. Intime-se o TJMT para que, no prazo de 30 (trinta) dias, comprove nos autos o cumprimento da deliberação plenária.

Luiz Fernando BANDEIRA de Mello
Conselheiro Relator



1 Valores atualizados monetariamente pelo Provimento n. 11, de 7 de março de 2018, da Corregedoria-Geral da Justiça de Mato Grosso, publicado em 12 de março de 2018 no Diário da Justiça (ed. 10.214), eficaz a partir de 2 de abril de 2018.

2 Lei Estadual n. 11.077, de 10 de janeiro de 2020, art. 16: “Esta Lei entra em vigor 90 (noventa) dias após sua publicação.”

3 Nos termos do art. 284 do Código de Processo Civil, o ato de registro é obrigatório e ocorrerá, invariavelmente, em todos os processos; a distribuição, entretanto, opera-se apenas quando há mais de um juízo competente, em tese, para conhecer a demanda.

4 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 295-311.

5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 263-264.

6 DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 85.

7 MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2017. v. I. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/115969805/v1/ document/116786581/anchor/a-116786581. Acesso em: 13 mar. 2023.

8 CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, op. cit., p. 296

9 CUNHA, Leonardo Viveiros da. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2017. v. III. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/115969954/v1/document/ 116796906/anchor/a-116796906. Acesso em: 13 mar. 2023.

10 MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2017. v. XVI. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/ 115970665/v1/document/116912669/anchor/a-116912669. Acesso em: 13 mar. 2023.

11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 29ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.  114.

12 KELSEN, op. cit., p. 388.

13 Código Tributário Nacional, art. 97, § 2º: “Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.”