EMENTA

 

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. ART. 28 DA RESOLUÇÃO CNJ N.135/2011. APURAÇÃO PRELIMINAR NA ORIGEM. ARQUIVAMENTO DO EXPEDIENTE. SUBMISSÃO DA DECISÃO À ANÁLISE DO CNJ. CONTRARIEDADE AO ORDENAMENTO JURÍDICO (ART. 83, I, DO RICNJ). INSTAURAÇÃO DE REVISÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR NO CNJ.

1. Revisão de processo administrativo disciplinar julgado pelo Colegiado de Tribunal de Justiça (art. 103-B, § 4º, V, da CF). Contrariedade ao ordenamento jurídico (art. 83, I, do RICNJ). 

2. Magistrado que, então em exercício na Comarca de São Pedro do Piauí (Município com apenas 13.654 habitantes no interior do Piauí, conforme IBGE/2010) teria admitido, processado e inclusive deferido pedidos de medida liminar e ainda, estendido seus efeitos após a formação da angularidade processual, em ações ajuizadas por entidades de proteção ao crédito que não possuem domicílio do foro de competência do juiz, ou forjam a existência de um na cidade, tudo em ofensa ao princípio do juiz natural e eventual fraude processual, afastando restrições de crédito de valores superiores a 1 Bilhão de Reais, dando azo inclusive à apuração da conduta no âmbito penal. 

3. Hipótese em que o órgão censor local, sem aprofundar na apuração da questão atinente à violação dos deveres de prudência e cautela do magistrado ao receber, na longínqua Comarca de São Pedro do Piauí, ações de entidades de consumidor envolvendo vultosas cifras, de demandantes que ali não possuem domicílio real, deferindo-lhes liminares de alcance jurídico efetivamente descomunal e depois ainda estendendo-as a outras partes –, passou-se ao largo da imputação efetivamente existente, sobre a qual não se fez considerações relevantes, decidindo-se pelo arquivamento do PAD à motivação de que as liminares deferidas não teriam causado prejuízo por não terem sido deferidos os pedidos de indenização por danos morais.

4. Conclusão pela necessidade de instauração, de ofício, da revisão de processo disciplinar, fundada no art. 83, inciso I, do RICNJ. 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, decidiu pela instauração de revisão disciplinar, nos termos do voto da Relatora. Presidiu o julgamento o Ministro Luiz Fux. Plenário Virtual, 29 de abril de 2022. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Luiz Fux, Maria Thereza de Assis Moura, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Sidney Madruga, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello. Não votaram, em razão das vacâncias dos cargos, os Conselheiros representante da Justiça do Trabalho, representante do Ministério Público Estadual e os representantes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

RELATÓRIO        

A EXMA. SRA. MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORREGEDORA NACIONAL DE JUSTIÇA (Relatora):

Cuida-se de pedido de providências instaurado, nos termos da Portaria CNJ n. 34 de 13/9/2016, para dar cumprimento ao disposto nos arts. 9º, § 3º, 14, §§ 4º e 6º, 20, § 4º, e 28 da Resolução CNJ n. 135, de 13/7/2011, diante da comunicação da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Piauí acerca da instauração de processo administrativo disciplinar em desfavor de FRANCISCO DAS CHAGAS FERREIRA, Juiz de Direito da Comarca de São Pedro do Piauí/PI.  

Trata-se do Processo Administrativo Disciplinar n° 0750018-11.2020.8.18.0000, instaurado em face do Magistrado Francisco das Chagas Ferreira, julgado em 01/03/2021, oportunidade em que, por unanimidade, os membros do Tribunal Pleno do TJPI, lhe promoveram o arquivamento acolhendo o voto do Desembargador Relator ao argumento de que “não houve violação, pelo Requerido, ao dever previsto no art. 35, I, da LOMAN, bem como o previsto nos arts. 24 e 25, ambos do Código de Ética da Magistratura, sendo escusável a sua conduta, que se constitui em ato isolado, resultante de circunstâncias objetivas, que excluem a caracterização de infração disciplinar.” (Id 4289941, p. 21). 

Considerando que a conduta do magistrado, conquanto praticada no bojo de processo judicial, extrapola os limites do comum e do razoável e, ao contrário do que consta no voto do ilustre relator, não constitui ato isolado, entendi ser necessária a detalhada apuração dos fatos e determinei a intimação do representado para defesa prévia, diante da possibilidade de instauração de Revisão Disciplinar (Id 4552770). 

No Id 4625773, o magistrado reclamado apresentou defesa prévia alegando, em suma, que a imputação do Requerido referiu-se a conteúdo de ato judicial, inviolável pela via correcional, por se tratar de legítima manifestação do convencimento do julgador” e que "o TJPI entendeu corretamente não caber a atuação disciplinar, pois a esfera correcional não serve de instância recursal das decisões proferidas na própria jurisdição, além de não ser competente para interferir nas manifestações e conclusões dos magistrados no exercício de seu mister precípuo.”

Alega, outrossim, que o Regimento Interno do Conselho Nacional não prevê a admissão do Pedido de Revisão Disciplinar como sucedâneo de Recurso contra decisão prolatada em sede de Processo Administrativo Disciplinar e que “a decisão dos autos não operou com ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório, tampouco contrariedade à lei, a ato normativo do CNJ ou à evidência dos autos. O acórdão que se pretende revisar sopesou devidamente as provas dos autos, a conduta do Magistrado e os supostos danos havidos. Em nenhum momento existem hipóteses que autorizam a revisão disciplinar.”

É o relatório.

VOTO

A MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORREGEDORA NACIONAL DE JUSTIÇA (Relatora): 

Nos termos do art. 103-B, § 4º, V, da Constituição Federal, compete ao Conselho Nacional de Justiça “rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano".

Na mesma linha, o artigo 82 do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça estabelece que “poderão ser revistos, de ofício ou mediante provocação de qualquer interessado, os processos disciplinares de juízes e membros de Tribunais julgados há menos de um ano do pedido de revisão”.

Nessa esteira de intelecção, ressalte-se que o Conselho Nacional de Justiça possui competência disciplinar originária e concorrente, podendo instaurar originariamente, avocar ou revisar procedimentos disciplinares, sem prejuízo da atuação das corregedorias locais.

E a pretensão revisional do Conselho Nacional de Justiça, seja por meio de procedimento próprio, seja mediante o prosseguimento da apuração originária, deve ser exercida sob o limite temporal de 1 (um) ano, prazo decadencial que se inicia com o julgamento disciplinar pelo Tribunal local, à luz do art. 103-B, § 4º, inciso V, da Constituição Federal, que é interrompido com a decisão que determina a notificação do reclamado para defesa prévia, ato por meio do qual se inicia o procedimento de revisão de ofício.

Com efeito, conforme jurisprudência do CNJ, o prazo decadencial de um ano tem por termo inicial o trânsito em julgado da decisão do PAD e por termo final a primeira manifestação de qualquer um dos Conselheiros, do Procurador-Geral da República ou do Presidente do Conselho Federal da OAB, propondo a revisão, na forma do art. 86 do RICNJ (REVDIS 000884- 73.2011.2.00.0000, Rel. Min. Nancy Andrighi, 205ª Sessão Ordinária).

Assim, se entre o trânsito em julgado da decisão de origem e a decisão que determina a notificação para a defesa decorre menos de um ano, não se opera a decadência. 

Na hipótese dos autos, decisão da Corte local se deu em 01/03/2021.

Em 30/11/2021, discordando da conclusão do Tribunal local, determinei a intimação do Magistrado para que apresentasse defesa prévia (Id 4552770), sendo cabível a instauração de revisão disciplinar.

Posto isso, a revisão dos processos disciplinares é cabível nas hipóteses do art. 83 do RICNJ: 

 

Art. 83. A revisão dos processos disciplinares será admitida:

I - quando a decisão for contrária a texto expresso da lei, à evidência dos autos ou a ato normativo do CNJ;

II - quando a decisão se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III - quando, após a decisão, surgirem fatos novos ou novas provas ou circunstâncias que determinem ou autorizem modificação da decisão proferida pelo órgão de origem.

 

No presente caso, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí decidiu arquivar o Processo Administrativo Disciplinar à conclusão de que “não houve violação, pelo Requerido, ao dever previsto no art. 35, I, da LOMAN, bem como o previsto nos arts. 24 e 25, ambos do Código de Ética da Magistratura, sendo escusável a sua conduta, que se constitui em ato isolado, resultante de circunstâncias objetivas, que excluem a caracterização de infração disciplinar” (Id 4289941, p. 21), em acórdão assim ementado:

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM FACE DE MAGISTRADO. SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS DEVERES FUNCIONAIS ESTABELECIDOS NO ART. 35, I, DA LOMAN E NOS ARTIGOS 24 E 25, AMBOS DO CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA. INOCORRÊNCIA. ATUAÇÃO ZELOSA E CAUTELOSA DO MAGISTRADO NA CONDUÇÃO DOS FEITOS. IMPOSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO CORREICIONAL E DISCIPLINAR QUANTO AO CONTEÚDO JURISDICIONAL DAS DECISÕES, NOTADAMENTE QUANDO PROFERIDAS COM AMPARO EM PRECEDENTES DO PRÓPRIO TRIBUNAL. ARTS. 40 E 41 DA LOMAN. ARQUIVAMENTO DO PAD. 

1. É dever do magistrado cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício (art. 35, I, da LOMAN).

2. Evidenciada, na instrução processual, que a atuação do Magistrado Requerido no deferimento das liminares se deu de forma cautelosa e zelosa, porquanto não impôs, nem mesmo no primeiro processo, em que chegou a julgar com resolução do mérito, qualquer condenação pecuniária direta para as rés das ações aqui analisadas, estabelecendo limitações e restrições quanto ao âmbito de incidência da decisão – isto é, para que fossem beneficiários da decisão apenas os associados já vinculados às entidades autoras. 

3. As decisões liminares concedidas não possuem o condão de desconstituir qualquer crédito ou obrigação. Assim, por mais elevado que seja o valor das anotações das restrições de crédito promovidos em face de devedores, o simples fato de se reconhecer ilegítimo o procedimento dessa anotação não tem o condão de interferir na existência, na validade e na eficácia, em si, das referidas dívidas. 

4. Ir além, neste PAD, na análise do acerto ou do desacerto jurídico das decisões proferidas pelo Requerido esbarra no teor dos artigos 40 e 41 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que impedem o agir censor e correcional dos Tribunais sobre o conteúdo jurisdicional das decisões dos magistrados, em respeito à garantia da independência funcional. 

5. E, ainda que fosse viável ou possível a análise do conteúdo jurídico das decisões proferidas pelo Magistrado Requerido, restou demonstrado que o seu teor decisório não destoa do entendimento adotado por outros juízos do Estado do Piauí, naquele mesmo período temporal. 

6. Inexiste, no contexto dos autos, atos desidiosos do Magistrado Requerido aptos ou suficientes para embasar eventual condenação por descumprimento dos deveres do cargo. Isso porque, apesar de haver a possibilidade de a conduta de um Magistrado caracterizar concomitantemente ato jurisdicional e desvio funcional, é preciso que reste demonstrado concretamente o ato abusivo do Magistrado, ou seja, uma falha que se subsuma a uma das infrações disciplinares previstas na Lei Complementar n° 35/79 (LOMAN). 

7. Arquivamento do Processo Administrativo Disciplinar. 

 

Ocorre, contudo, que, ao contrário do que decidiu o Tribunal de Justiça, há indícios de conduta com relevância disciplinar. A avaliação feita neste voto é de que a decisão do Tribunal de Justiça contrariou frontalmente disposições legais e atos normativos deste Conselho acerca da responsabilidade de magistrado. Em consequência, o arquivamento deve ser revisto, pela contrariedade da decisão da origem ao ordenamento jurídico (art. 83, I), senão vejamos.

Extrai-se dos autos que o PAD foi instaurado perante a Corregedoria-Geral de Justiça do Piauí a partir de ofício do Ministério Público do Estado do Piauí que solicitou a averiguação das condutas do magistrado no bojo dos processos judiciais n. 0000844-28.2015.8.18.0072, 0000053-88.2017.8.18.0072 e 0000403-76.2017.8.18.0072, que envolviam pedidos de exclusão de diversas empresas associadas às entidades autoras dos cadastros de restrição de crédito (Associação de Proteção e Direitos do Consumidor, Associação Brasileira de Combate ao Tribunal de Exceção das Entidades Financeiras e dos Órgãos de Restrições de Crédito (ASBRARC) e Associação Nacional de Defesa do Pequeno Consumidor (ANADECO), nos quais as dívidas ultrapassavam a quantia de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais). 

Veja-se, a propósito, os seguintes excertos do voto condutor do acórdão que decidiu pela instauração de PAD perante a Corregedoria local (Id 3924558, p. 4 a 12, destaquei): 

 

Trata-se de pedido de providências formulado pelo Ministério Público Estadual em face do MM. Juiz de Direito Francisco das Chagas Ferreira, em razão da tramitação dos processos n°. 0000844-28.2015.8.18.0072, 0000053- 88.2017.8.18.0072 e 0000403-76.2017.8.18.0072. 

Segundo o órgão ministerial, os referidos autos têm como autores associações nacionais de proteção do direito consumerista, que ajuizaram as ações com o objetivo de excluir de cadastros de restrições de créditos inúmeras empresas, as quais o somatório das dívidas ultrapassa a quantia de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais). Sucede que, de acordo com o requerente, as referidas entidades não possuem domicílio em São Pedro do Piauí-PI e que o magistrado requerido já possui histórico de atuar em ações envolvendo vultosas cifras, nas quais os demandantes não possuem domicílio em São Pedro ou forjam a existência de um na cidade. 

Solicita, assim, a atuação desta Corregedoria na apuração dos fatos, bem como informa que foi instaurado Procedimento Investigatório Criminal.  

Notificado, o Setor de Controle de Processos deste Órgão manifestou-se informando a existência do processo n°. 0000043-42.2014.8.18.0139, instaurado em face do requerido, por objeto semelhante, já arquivado. 

(...) 

De acordo com o que consta nos autos, as partes autoras dos processos tratam-se de associações nacionais referentes ao direito consumerista, quais sejam, ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFESA DO PEQUENO CONSUMIDORANADECO, ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS DO CONSUMIDOR e ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COMBATE AO TRIBUNAL DE EXCEÇÃO DAS ENTIDADES FINANCEIRA E DOS ÓRGÃOS DE RESTRIÇÕES DE CRÉDITOS – ASBRAC, todas tem como objeto o pedido de que os nomes dos seus associados sejam retirados dos cadastros de inadimplentes das entidades de proteção ao crédito, como SPC e SERASA, com a concessão, inclusive, de tutela antecipada.  

Conforme consta nos autos dos processos n°. 0000844- 28.2015.8.18.0072, 0000053-88.2017.8.18.0072, a tutela foi deferida, no qual foi determinada a imediata exclusão dos nomes dos associados dos requerentes de todos os cadastros de órgãos de restrição de crédito, sob pena de pagamento de multa diária pelo descumprimento. 

De acordo com investigação do Ministério Público os requerentes não possuem domicilio em São Pedro do Piauí/PI, e que as associações com rol de associados que não possuem domicilio do Piauí, tendo apenas alugado um local para possível comprovação de existência no domicílio, inclusive com Pessoas Jurídicas com domicílio em São Paulo, por exemplo.  

Ademais, houve a extensão litisconsórcio ativo facultativo depois de formada a relação processual com a possível lesão ao princípio do juiz natural, posto que o magistrado deferia a inclusão de novos integrantes na associação, estendendo os efeitos de liminar já concedida.  

Por fim, o argumento do magistrado de desrespeito à imunidade das decisões judiciais em ofensa ao disposto no artigo 41 da LOMAN é inconsistente, pois não se trata de revisão dos atos de conteúdo jurisdicional proferidos pelo ora requerido, mas de fiscalização da atuação do magistrado em sua função judicante. 

É cediço que a instauração de PAD ou mesmo de sindicância seja precedida de um rigoroso exame de admissibilidade, processando-se apenas aqueles casos em que se denote desvio de conduta ou efetiva falta funcional cometida por dolo ou fraude, rechaçando-se, de plano e liminarmente, questionamentos contra o mérito de decisões judiciais devidamente fundamentadas, o que não é o caso em comento. 

Os magistrados devem gozar de plena liberdade de convicção e autonomia pessoal no exercício do mister jurisdicional. Contudo o juiz requerido mesmo instigado pela parte contrária a se manifestar acerca dos fatos acima descritos, não procedeu com a devida cautela ao deferir a liminar determinando a retirada dos nomes dos autores do SPC/SERASA, cujo somatórios de dívidas ultrapassam R$ 1.000.000,00 (um milhão) e de partes não residentes no domicilio do Juízo da causa

Tais fatos são suficientes para se mostrar ao menos em tese a violação do arts. 35 da LOMAN e arts. 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura, mostra-se necessária a instauração de processo administrativo disciplinar, a fim de que sejam esclarecidos os fatos e aplicada a penalidade eventualmente cabível, sem afastamento. 

É O VOTO. 

 

Vê-se, pois, que a conduta que dera ensejo à instauração do PAD foi o fato de que o magistrado, então em exercício na Comarca de São Pedro do Piauí (Município com apenas 13.654 habitantes no interior do Piauí, conforme IBGE/2010) teria admitido, processado e inclusive deferido pedidos de medida liminar e ainda, estendido seus efeitos após a formação da angularidade processual, em ações ajuizadas por entidades de proteção ao crédito que não possuem domicílio do foro de competência do juiz, ou forjam a existência de um na cidade, tudo em ofensa ao princípio do juiz natural e eventual fraude processual, afastando restrições de crédito de valores superiores a 1 Bilhão de Reais, dando azo inclusive à apuração da conduta no âmbito penal. 

No entanto, sem sequer aprofundar na apuração – e especificamente na questão atinente à violação dos deveres de prudência e cautela do magistrado ao receber, na longínqua Comarca de São Pedro do Piauí, ações de entidades de consumidor envolvendo vultosas cifras, de demandantes que ali não possuem domicílio real, deferindo-lhes liminares de alcance jurídico efetivamente descomunal e depois ainda estendendo-as a outras partes –, passou-se ao largo da imputação efetivamente existente, sobre a qual não se fez considerações relevantes, decidindo-se pelo arquivamento do PAD à motivação de que as liminares deferidas não teriam causado prejuízo por não terem sido deferidos os pedidos de indenização por danos morais (Id 4289939). 

Assentou-se, em suma, no respaldo jurisdicional das liminares deferidas e na consideração de que “assim, evidencia-se, desde já, que a atuação do Magistrado Requerido no deferimento dessas liminares se deu de forma cautelosa e zelosa, porquanto não impôs, nem mesmo no primeiro processo, em que chegou a julgar com resolução do mérito, qualquer condenação pecuniária direta para as rés das ações aqui analisadas, estabelecendo limitações e restrições quanto ao âmbito de incidência da decisão – isto é, para que fossem beneficiários da decisão apenas os associados já vinculados às entidades autoras.” 

Todavia, da análise dos documentos que instruem este feito, depreende-se que a conduta do magistrado, conquanto praticada no bojo de processo judicial, extrapola os limites do comum e do razoável e, ao contrário do que consta no voto do ilustre relator, não constitui ato isolado, daí porque entendo necessária sua detalhada apuração. 

Com efeito, conforme consta no acórdão que deliberou pela instauração de PAD, a conduta do magistrado evidencia ausência de diligência e cautela necessárias ao magistrado no exercício da prestação jurisdicional e violam, em tese, o disposto no art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional LOMAN (segundo o qual constitui dever do magistrado cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício) e o disposto nos arts. 1º, 2º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional (que impõem ao juiz o dever de agir de forma prudente e cautelosa na condução dos litígios, devendo permanecer atento às consequências que as duas decisões podem provocar), a constituírem infração disciplinar. 

Averbe-se em remate que o mero fato de não haver nas decisões do magistrado condenações pecuniárias ou anulações de dívidas, é inegável, a existência de enorme benefício econômico com a eliminação fraudulenta de restrições de crédito de consumidores, além da possível geração de risco econômico sistêmico, dado o montante envolvido (mais de um bilhão de reais). 

A propósito, a jurisprudência deste Conselho Nacional de Justiça admite a instauração de revisão disciplinar quando se constata que a decisão proferida no processo administrativo disciplinar instaurado na origem é contrária a texto expresso da lei ou à evidência dos autos. Confira-se o seguinte precedente:

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. INFORMAÇÕES EM CUMPRIMENTO AO DISPOSTO NO ART. 28 DA RESOLUÇÃO Nº 135/CNJ. APURAÇÃO. CORREGEDORIA DO TRT DA 4ª REGIÃO. ARQUIVAMENTO DA RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. POSSÍVEL INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS PARA MANTER A DECISÃO DIANTE DA GRAVIDADE DAS CONDUTAS IMPUTADAS AO JUIZ REQUERIDO. REVISÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR. 

1. Em cumprimento ao disposto no art. 28 da Resolução nº 135/CNJ, devem ser comunicadas à Corregedoria Nacional de Justiça as decisões de arquivamento dos procedimentos prévios de apuração, de instauração e os julgamentos dos procedimentos administrativos disciplinares relativos aos Magistrados vinculados a cada um dos Tribunais do país, à exceção do Supremo Tribunal Federal. 

2. No julgamento da reclamação disciplinar, o Órgão Especial do TRT da 4ª Região arquivou a reclamação disciplinar proposta em desfavor do juiz requerido. 

3. Embora tenham sido verificados indícios de violação aos deveres de cumprimento com independência, serenidade e exatidão das disposições legais e os atos de ofício, manutenção de uma conduta irrepreensível na vida pública e particular, de prudência, de imparcialidade, de integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro pelo magistrado, o Tribunal local arquivou a reclamação disciplinar. 

4. Na hipótese dos autos, constatou-se que o requerido possivelmente deferiu duas medidas liminares em sede de mandado de segurança autuado na origem sob o número 0000145-81.2014.5.04.0211, nos dias 14 e 21/03/2014, mediante o percebimento de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), para assegurar a manutenção dos vendedores ambulantes do “Camelódromo de Torres” em área pertencente à municipalidade local. 

5. A decisão do juiz requerido supostamente desrespeitou decisão judicial transitado em julgado na Justiça Comum, a qual determinava a desocupação da área litigiosa. 

6. A decisão proferida pelo Órgão Especial do TRT da 4ª Região apresenta possível insuficiência de elementos para manter o arquivamento da reclamação disciplinar, diante da gravidade das condutas imputadas ao juiz reclamado, que, a princípio, mostram-se contrárias ao Código de Ética da Magistratura Nacional e à LOMAN. 

7. Conclusão pela necessidade de instauração, de ofício, de revisão de processo disciplinar para verificação da necessidade de instauração de procedimento administrativo disciplinar em face do requerido, nos termos dos arts. 82 e 86 do RICNJ.

(CNJ - PP - Pedido de Providências - Corregedoria - 0005950-92.2015.2.00.0000 - Rel. Min. NANCY ANDRIGHI - 13ª Sessão Virtual – julgado em 24/5/2016) 

 

Portanto, consoante as evidências dos autos, mostra-se imprescindível uma apuração mais detida por este Conselho, em sede revisional, a fim de se averiguar a existência de elementos de infração funcional diante da conduta irrogada.

Ante o exposto, com fundamento nos artigos 82, 83, I e 86 do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, voto pela revisão do processo administrativo disciplinar instaurado na origem em face do juiz de direito FRANCISCO DAS CHAGAS FERREIRA, tendo em vista que a conduta do magistrado evidencia ausência de diligência e cautela necessárias ao exercício da prestação jurisdicional e viola, em tese, o disposto no art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional LOMAN (segundo o qual constitui dever do magistrado cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício) e o disposto nos arts. 1º, 2º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional (que impõem ao juiz o dever de agir de forma prudente e cautelosa na condução dos litígios, devendo permanecer atento às consequências que as duas decisões podem provocar). 

É como voto.