Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0004709-39.2022.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE SÃO PAULO
Requerido: VALDIRENE RIBEIRO DE SOUZA FALCAO

EMENTA 

RECURSO ADMINISTRATIVO EM RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. APURAÇÃO ADEQUADA PELA CORREGEDORIA REGIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL DA 3ª REGIÃO. ARQUIVAMENTO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE PRÁTICA DE INFRAÇÃO DISCIPLINAR. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Nos termos do entendimento do Conselho Nacional de Justiça, é inadmissível a instauração de procedimento disciplinar quando inexistentes indícios ou fatos que demonstrem que o Magistrado tenha descumprido deveres funcionais ou incorrido em desobediência às normas éticas da magistratura.  

2. Não se colhem dos autos elementos de que a atuação da magistrada foi desprovida de urbanidade, ofensiva à dignidade profissional e pessoal da advogada e infringências às normas do Código de Processo Civil e Estatuto da OAB.  

3. Recurso administrativo não provido.

 

 ACÓRDÃO

Após o voto do Conselheiro Marcello Terto (vistor), o Conselho, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Presidiu o julgamento o Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário Virtual, 26 de março de 2024. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão, Caputo Bastos, José Rotondano, Mônica Autran, Alexandre Teixeira, Renata Gil, Daniela Madeira, Giovanni Olsson, Pablo Coutinho Barreto, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto e Daiane Nogueira. Não votou o Excelentíssimo Conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0004709-39.2022.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE SÃO PAULO
Requerido: VALDIRENE RIBEIRO DE SOUZA FALCAO

RELATÓRIO

O MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):

 

1. Trata-se de recurso administrativo em reclamação disciplinar instaurada pela ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO DE SÃO PAULO – em desfavor de VALDIRENE RIBEIRO DE SOUZA FALCÃO, juíza federal da 9ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Campinas, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

A requerente alega, em síntese, que, em 23 de maio de 2022, quando a advogada Roberta Rodrigues da Silva se preparava para participar de audiência virtual como defensora constituída de quatro acusados na ação penal n. 0003820-30.2017.4.03.6105, em trâmite na 9ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Campinas, recebeu a notícia do falecimento do seu pai e, abalada, acostou aos autos pedido escrito para redesignação de audiência, diante da excepcional circunstância que a impedia de exercer o ato de defesa, tendo diligenciado ao cartório para alertar a serventia a respeito do ocorrido.

Não obstante o abalo psicológico sentido com a notícia, a advogada entrou no ambiente virtual no qual seria realizada a audiência (o que teria ocorrido com uma hora de atraso) e pediu a redesignação do ato.

Contudo, segundo afirma a entidade reclamante, em atitude desumana, a Juíza indeferiu o pedido, sob o fundamento de que os quatro acusados possuíam dois defensores constituídos, bem como que o outro defensor não teria apresentado justificava para a sua ausência ao ato a ser realizado no ambiente virtual.

Assinala, no entanto, que não houve tempo para comunicação do ocorrido ao outro defensor constituído, razão pela qual ele não esteve presente, tanto que a juíza nomeou defensor ad hoc às partes que são representadas nos autos judiciais pela advogada em questão.

Analisando o feito, a então Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, verificou que os fatos aqui narrados se relacionavam aos mesmos analisados no bojo do Pedido de Providências n. 0000040- 92.2022.2.00.0403, que manteve o arquivamento determinado pelo Corregedor Regional da Justiça Federal da 3ª Região (id 4808552). Assim, decidiu pelo arquivamento da presente Reclamação Disciplinar para evitar duplicidade apuratória.

A reclamante interpôs recurso administrativo (id 4822609). Analisando o feito, entendi pela necessidade de melhor análise dos fatos, motivo pelo qual reconsiderei a decisão anterior e deleguei a apuração para a Corregedoria local para reanálise da matéria, com a possibilidade da coleta de outros elementos.

Concluída a nova apuração dos fatos, a Corregedoria Regional local entendeu, novamente, pelo arquivamento da Reclamação, comunicando a decisão a esta Corregedoria Nacional.

Pela decisão de id 5278703 entendi que houve uma apuração satisfatória pela Corregedoria de origem, motivo pelo qual determinei o arquivamento da presente Reclamação Disciplinar.

Irresignada, a reclamante interpôs recurso administrativo alegando que: a) a matéria foi analisada pela Corregedoria de Justiça local do TRF da 3ª Região,  mas poderia ser novamente analisada por esta Corregedoria Nacional de Justiça nos termos do art. 103-B, § 4º, inc. III, da Constituição Federal; b) restou demonstrada a infração disciplinar praticada pela magistrada ao proferir decisão manifestamente ilegal em descumprimento dos deveres funcionais de urbanidade e cooperação, sobretudo, porque deveria ter analisado a questão do ponto de vista humanitário e não somente processual; c) a postura da magistrada não foi dotada do devido cuidado, empatia, solidariedade e compreensão para com a advogada, profissão a qual a Carga Magna atribui essencialidade à Administração da Justiça; d) a conduta da magistrada ofende o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana; e) a magistrada não garantiu o mínimo para que a advogada desenvolvesse a sua atividade laborativa, sobretudo porque a notícia do falecimento do seu genitor provocou a perda da capacidade temporária do exercício da advocacia.

Requer a reforma da decisão impugnada para instauração do competente processo administrativo disciplinar para apuração dos fatos.

A juíza reclamada apresentou contrarrazões em id 5416458.

A Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE protocolou pedido requerendo ingresso como terceira interessada (id 5422912).

É o relatório.

F34/J17

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0004709-39.2022.2.00.0000
Requerente: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE SÃO PAULO
Requerido: VALDIRENE RIBEIRO DE SOUZA FALCAO

 

VOTO

O MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):

2. No presente caso, após análise das razões recursais, subsiste a conclusão de que não há elementos que autorizem divisar, ainda que em perspectiva, a prática de conduta infracional a justificar a deflagração ou seguimento de procedimento administrativo, quer de natureza investigativa, quer punitiva.

Inicialmente, a decisão que determinou o arquivamento desta reclamação disciplinar (id 5278703) foi proferida por entender-se que não há elementos suficientes à caracterização da prática de infração disciplinar pela magistrada. Observou-se que não há indícios da ausência de urbanidade da magistrada no trato com os advogados na condução da audiência ora questionada. Além disso, indicou-se que a alteração da decisão proferida é matéria de cunho eminentemente jurisdicional.

Portanto, houve a indicação de que a apuração realizada pela Corregedoria local foi criteriosa e, realmente, não foi comprovada a prática de falta funcional pela magistrada. A questão, portanto, foi enfrentada tanto pelo órgão correicional local como por esta Corregedoria Nacional, inexistindo o alegando entendimento de que a matéria já teria sido analisada pelo órgão local e que, portanto, seria despicienda a análise neste órgão nacional.

Nos termos do entendimento do Conselho Nacional de Justiça, é inadmissível a instauração de procedimento disciplinar quando inexistentes indícios ou fatos que demonstrem que o magistrado tenha descumprido deveres funcionais ou incorrido em desobediência às normas éticas da magistratura.

A recorrente considera que a decisão/conduta da magistrada de indeferir o pedido de redesignação da audiência devido à comunicação do falecimento do genitor da advogada de alguns dos réus algumas horas antes da audiência, violou dispositivos legais que ensejam a prática de infração disciplinar por falta de urbanidade e cooperação.

Porém, não se colhem dos autos elementos suficientes de que a atuação da magistrada foi desprovida de urbanidade ou ofensiva à dignidade profissional e pessoal da advogada. Não vislumbro, ainda, a ocorrência de infringências às normas do Código de Processo Civil e Estatuto da OAB. Houvesse alguma suspeita nesse sentido lastreada no conjunto probatório, seria caso de se deflagrar o procedimento administrativo disciplinar. Essa, contudo, não é a hipótese, como já indicado na decisão recorrida.

Constou da bem fundamentada decisão proferida pelo Corregedor-Regional de Justiça do TRF da 3ª Região:

(...) Estudando a situação ora descrita, inclusive à luz da normatização que se diz ter sido afrontada, somos por bem, para melhor compreensão do todo exposto, desconstruir o quanto argumentado pela parte Reclamante sob dois pontos de vista: um, de cunho subjetivo, e outro, de natureza objetiva.

Subjetivamente, tem-se a ocorrência de um infortúnio por parte da Senhora Advogada Roberta Rodrigues da Silva, qual seja, o falecimento do seu genitor horas antes do início de audiência a ser realizada pela Juíza Reclamada, fato ocorrido, como narrado pela entidade Representante da Senhora Causídica, em 23 de maio de 2022, perante a 9ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de Campinas, São Paulo.

(...) Dessa maneira, em termos subjetivos, temos que a Senhora Advogada, é lícito conjecturar, esperava que a Juíza Reclamada suspendesse a audiência e a redesignasse para outra ocasião, expectativa movida por sentimentos descritos na Reclamação como humanidade, cuidado, empatia, solidariedade ou compreensão, diante do sucedido, isto é, do passamento do genitor da Senhora Causídica.

Com todas vênias, parece-nos que a questão subjetiva colocada foi, dentro do possível, notada por parte da Magistrada Reclamada, no momento em que, conforme verificamos das transcrições da audiência, prestou expressas condolências à parte Reclamante, de modo que, na nossa maneira de ver, o propalado desprezo pela infelicidade da Senhora Patrona e/ou, imbricadas, uma eventual falta de urbanidade ou, ainda, uma dita violação ao princípio da dignidade humana não teriam acontecido exatamente como relatado, pelo menos, não com toda a intensidade indicada.

(...) Elucubrando-se sobre o ato levado a cabo pela Juíza Federal Valdirene Falcão, v. g., o não deferimento da reivindicação para redesignação da audiência, temos que essa providência possui natureza eminentemente jurídica, i. e., objetiva, desprovida, portanto, e sempre ao nosso talante, de qualquer conteúdo que seja em sentido contrário, ou, noutra forma de falar, alguma perspectiva de que a não adoção do pedido poderia resultar de elementos motivacionais pessoais por parte da Reclamada, notadamente, porquanto, como já salientado nas informações da Magistrada, constou explicitamente enfatizado o feitio técnico-jurisdicional para o não deferimento do postulado pela parte Reclamante.

(...) Da análise das normas acima reproduzidas, afastada a vertente subjetiva da “quaestio” presentemente examinada, e que em decorrência desta teria a Magistrada Reclamada incorrido em infração disciplinar, tendo em conta o caráter eminentemente jurisdicional da decisão vergastada, também nos parece, “maxima concessa venia”, que não houve infração disciplinar na hipótese, e que nem seria específica e propriamente oportuna a inserção desta Corregedoria Regional para o caso, uma vez que a Reclamante se insurgiu justamente quanto à conveniência e discricionariedade da Juíza Reclamada para a não redesignação pleiteada, isso sem, evidentemente, adentrarmos ao acerto ou não do ato decisório em epígrafe.

(...) "Urbanidade", substantivo feminino, significa: “Reunião dos costumes, formalidades e comportamentos que expressam respeito entre pessoas; demonstração de civilidade; afabilidade. Característica do que é urbano, civilizado; civilidade.” (pesquisa efetuada no sítio dicio.com.br/urbanidade – Dicionário Online de Português, em 01/06/2023, 15h05min).

Voltando ao tema novamente, em momento algum a nós nos parece tenha havido qualquer espécie de altercação entre a parte Reclamante e a Juíza Federal Reclamada, no que concerne à forma como requerida a redesignação da audiência e o respectivo indeferimento do pedido.

Também nos restou a impressão de que a civilidade, a consideração e o respeito da Magistrada, quanto ao infortúnio da Senhora Patrona, não foram olvidados.

Sobre a atenção, cremos ser óbvia na hipótese.

Destarte, pensamos não haver descompasso na conduta da Juíza Reclamada, à luz do dispositivo legal em pauta.

(...) Rememoremos que o que aconteceu foi que, diante da constatação da existência de outro advogado constituído nos autos, e sua injustificada ausência ao ato processual, foi indeferida a reivindicação de redesignação da audiência, com a nomeação de patronos “ad hoc”.

Como consequência, impróprio invocar mais este comando de lei como ofendido pela Magistrada, até porque, semelhantemente, não se há de cogitar, na hipótese, de decurso de prazo e consequente extinção de direito de praticar ou de emendar o ato processual.

(...) No que concerne ao livre exercício da advocacia, não concebemos tenha ocorrido, por parte da Magistrada Reclamada, alguma ação no sentido de obstar a Senhora Advogada Reclamante de exercer seu mister.

O doloroso infortúnio havido foi de cunho particular da Senhora Causídica, caracterizando-se por ser fato extrínseco aos autos.

Obviamente, a Senhora Patrona não haveria de representar patrocinados como realmente não o fez.

Entretanto, a Juíza Reclamada fundamentou, insistamos, objetivamente, o porquê do indeferimento do pedido para redesignação do citado ato processual, haja vista a existência de outro advogado constituído para atuar no processo e sua injustificada ausência, nomeando-se, então, procuradores “ad hoc”, a afastar algum prejuízo na hipótese.

Semelhantemente, não idealizamos no que a decisão da Reclamada teria incorrido em desconformidade com o “princípio processual de cooperação entre as partes e o Juízo”, sem que incorramos num exame estritamente técnico-jurídico do assunto, o que foge dos lindes desta Unidade Correicional, o mesmo valendo para a alegada violação das “prerrogativas profissionais de toda a classe de Advogados”, esta, até porque, argumentemos apenas, consubstanciou-se em ato isolado dentro de um específico processo.

Conforme destacado na decisão proferida pela Corregedoria local, a magistrada manifestou suas condolências devido à situação vivida pela advogada quanto ao falecimento do seu genitor, bem como indeferiu o pedido de forma fundamentada. Não há indícios de falta de urbanidade por parte da juíza reclamada durante a condução da audiência ora questionada.

Ultrapassado esse ponto, percebe-se que a alteração da decisão proferida se relaciona à matéria de cunho eminentemente jurisdicional, como também pontuado na decisão proferida pelo órgão correicional local. Sendo certo, ainda, que foi manejado mandado de segurança contra ela, ao qual foi concedida a segurança para redesignar a audiência. Porém, mesmo essa decisão não evidencia a prática de infração disciplinar pela magistrada.

Decerto, os procedimentos disciplinares não podem ter prosseguimento em hipóteses cujas imputações não evidenciem a prática de condutas ilícitas por parte da magistrada, aptas à deflagração de processo administrativo disciplinar.   

Entendo, assim, que não foi comprovada a prática de falta funcional pela magistrada recorrida, restando adequada a apuração realizada pela Corregedoria Regional do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.


Ante o exposto, nego provimento ao recurso administrativo.    


É como voto.

 

F34/J17

 

 

Poder Judiciário

Conselho Nacional de Justiça

Gabinete do Conselheiro Marcos Vinícius Jardim

 


 

Autos:   

Reclamação Disciplinar - 0004709-39.2022.2.00.0000

Requerente:       

Ordem dos Advogados do Brasil - Secção de São Paulo

Requerido:         

Valdirene Ribeiro de Souza Falcao

  

 



 

VOTO DECLARAÇÃO

 

O EXMO. SENHOR CONSELHEIRO MARCOS VINÍCIUS JARDIM (VOTO DIVERGENTE)

 

Fundamentação


Adoto o relatório do eminente relator e acompanho a sua conclusão quanto ao mérito.

 Peço vênia, contudo, para aderir ao voto do i. conselheiro Marcello Terto, no tocante à proposta de submissão ao Plenário do Conselho Nacional de Justiça medidas para o adequado tratamento - com respeito, decência e dignidade – das situações da vida civil dos profissionais de todo o Sistema de Justiça que precisarem se ausentar dos feitos processuais, em razão de emergências pessoais e familiares, como a retratada nestes autos.


Dispositivo


Ante o exposto, nos termos do voto do relator, conheço do recurso e nego a ele provimento.

Ademais, acompanho a declaração de voto proferida pelo i. Conselheiro Marcello Terto, para submeter ao Plenário do Conselho Nacional de Justiça proposta para que se determine a regulamentação da matéria, a fim de que se evite a repetição de situações embaraçosas e indignas como a registrada nestes autos, que resultou, inclusive, na anulação da audiência e no atraso da tramitação do processo penal.

É o voto

Brasília, 26 de março de 2024.

 

 

Conselheiro Marcos Vinícius Jardim

 

 

 

Autos:   RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR - 0004709-39.2022.2.00.0000

Requerente:       ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DE SÃO PAULO

Requerido:         VALDIRENE RIBEIRO DE SOUZA FALCAO

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Adoto o relatório elaborado pelo eminente Relator, e. Ministro Corregedor Luis Felipe Salomão.

No que diz respeito ao mérito, tenho algumas ponderações a indicar ao Plenário deste Conselho, que não se caracterizam especificamente como uma divergência quanto à legalidade do ato em si, mas reflexões para melhor compreender a questão de fundo, relacionadas a ideia de dignidade da pessoa humana, ao exercício digno da profissão e à defesa da Advocacia enquanto função essencial à justiça.

No seu recurso administrativo, a recorrente pleiteia a verificação de eventual infração disciplinar praticada pela magistrada, sobretudo na ótica de não se ter examinado a questão sob o ponto de vista humanitário.

A recorrente indica que houve falta de cuidado, empatia, solidariedade e compreensão da magistrada para com a advogada diante de falecimento de seu pai (ascendente) pouco mais de duas horas antes do início da audiência.

Vislumbra-se não apenas o desrespeito à essencialidade da Advocacia, mas ofensa direta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana com a postura adotada pela magistrada.

Ao final, registra-se que a magistrada não garantiu o mínimo para que a advogada desenvolvesse a sua atividade laborativa, sobretudo porque a notícia do falecimento do seu genitor provocou a perda da capacidade temporária do exercício da advocacia.

Infelizmente, a vida tem dessas coisas. Não se escolhe a hora, nem o lugar ou mesmo como um ente querido virá a óbito. O problema consiste em oferecer ou garantir um tratamento ou acolhimento digno a quem fica.

No caso concreto, a realidade retratada com o falecimento do pai da advogada Roberta Rodrigues da Silva provocou um encadeamento de discussões processuais que desaguaram na anulação da audiência pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) no Mandado de Segurança nº 5019019-13.2022.4.03.0000 pelas óbvias razões de humanidade que relacionavam tempo e espaço em que os eventos se sucederam:

MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE REDESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA DA OAB. IMPOSSIBILIDADE DE COMPARECIMENTO DOS DEFENSORES CONSTITUÍDOS. MOTIVO JUSTIFICADO. PREJUÍZO. SEGURANÇA CONCEDIDA.

1. Reconhecida a legitimidade ativa ad causam da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção de São Paulo, Subseção de Santana, nos termos do art. 49, parágrafo único, da Lei nº 8.906/1994.

2. Há o alegado cerceamento de defesa a justificar a renovação da audiência de instrução, em razão do falecimento do genitor da advogada de defesa ocorrido no mesmo dia, poucas horas antes do início do ato processual.

3. Em que pese não terem sido apresentados documentos que justificassem a impossibilidade de comparecimento do outro advogado constituído, o falecimento do genitor da assistida ocorreu em momento muitíssimo próximo à audiência, o que tornaria difícil a mobilização às pressas para o seu comparecimento.

4. O fato dele estar presente nas audiências dos dias subsequentes, envolvendo a oitiva de um expressivo número de testemunhas arroladas pelas defesas réus, não afasta a necessidade de anulação da audiência por cerceamento de defesa.

5. De acordo com o § 1º do art. 265 do Código e Processo Penal, “A audiência poderá ser adiada se, por motivo justificado, o defensor não puder comparecer”, cabendo a este último provar o impedimento. Na hipótese sub judice, os documentos juntados comprovam que as alegações da impetrante.

6. Houve risco à defesa dos réus em razão da ausência da defensora constituída, mesmo com a nomeação de advogado ad hoc, o que pode ocasionar nulidade processual absoluta, por implicar grave afronta ao estatuto constitucional do direito de defesa e da garantia constitucional do due process of law.

7. Demonstrados os fundamentos aptos e suficientes para justificar a anulação da audiência, devendo o ato ser redesignado. Mantida a validade das demais audiências, anulando-se, contudo, os demais atos processuais realizados após o encerramento da instrução processual.

8. Ordem concedida.

É verdade que o Estatuto da OAB não prevê expressamente a hipótese de suspensão do processo ou de audiência no caso de falecimento do advogado ou de seu cônjuge, ascendente ou descendente.

As recentes alterações legislativas – 2016, 2019 e 2022 – preocuparam-se mais com a garantia do devido processo legal e com a ampla defesa dos representados, sem abordar o que reluz diretamente da Constituição Federal com o olhar sobre a "humanidade" com que também deve ser tratado o profissional da Advocacia.

Sem descer muito a fundo, poder-se-ia considerar o aspecto íntimo, moral, pessoal e familiar da advogada, compreendendo como tudo isso demandaria a colaboração do Sistema de Justiça com o momento sensível e a dor aguda imposta pelo momento.

Registre-se que, para a Magistratura, quando da edição da Lei Complementar n. 35/1979 (LOMAN), houve expressa previsão de afastamento do magistrado ou magistrada em tais situações:

Art. 72 - Sem prejuízo do vencimento, remuneração ou de qualquer direito ou vantagem legal, o magistrado poderá afastar-se de suas funções até oito dias consecutivos por motivo de:

I - casamento;

II - falecimento de cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

Quando editado – no ano de 1994 – o Estatuto da OAB previu a paridade de tratamento entre membros da Magistratura, Ministério Público e Advocacia. Acredito eu, por meio de uma interpretação sistemática e histórica, que o legislador da época acreditava na serenidade dos diversos atores do Sistema de Justiça, ao ponto de reservar à ética dos costumes e à boa-fé situações tais como a vivenciada pela advogada Roberta:

Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.

Art. 7º São direitos do advogado:

I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;

(…)

Mais recentemente, a Lei nº 14.365/2022 deixou ainda mais claro que o respeito e a consideração mútuos são imposições éticas a serem obedecidas por todos os atores da Justiça, no sentido também de preservarem a imagem, a reputação e a integridade dos advogados e advogadas, a fim de preservar condições adequadas para o exercício digno da profissão:

Art. 6º ...

§ 1º As autoridades e os servidores públicos dos Poderes da República, os serventuários da Justiça e os membros do Ministério Público devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho, preservando e resguardando, de ofício, a imagem, a reputação e a integridade do advogado nos termos desta Lei.     (Redação dada pela Lei nº 14.365, de 2022)   (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 14.508, de 2022)

 

§ 2º Durante as audiências de instrução e julgamento realizadas no Poder Judiciário, nos procedimentos de jurisdição contenciosa ou voluntária, os advogados do autor e do requerido devem permanecer no mesmo plano topográfico e em posição equidistante em relação ao magistrado que as presidir.   (Incluído pela Lei nº 14.508, de 2022)

Ao evocar o cerceamento da liberdade profissional da advogada, veio à mente o artigo 7º, I, da Lei Federal nº 8.906/1994, o qual acima transcrevi e grifei.

Coloquemo-nos no lugar da requerente: como desenvolver qualquer labor logo após ter sido impactada pela notícia do falecimento de uma pessoa que, provavelmente, fez de tudo para que Roberta Rodrigues da Silva pudesse “alçar voos mais altos”, ser chamada de “Dra. Roberta” e compusesse o Sistema de Justiça, do qual todos nós participamos?

Então, acredito que a prevalência do princípio da legalidade, ao invés do princípio da juridicidade, a prevalência de um regime duro e exacerbado de metas e rotinas, tenha, no caso concreto ora sob exame, privado a advogada de sua dignidade, enquanto pessoa, profissional, mulher e filha.

Sob a perspectiva da legalidade, o caso concreto dizia respeito à uma audiência criminal, em que foi nomeado defensor ad hoc, uma vez que o pedido de adiamentorealizado, na medida do possível e do razoável, de forma tempestivafoi negado pelo juízo de origem.

Como bem pontuou o Ministro Luis Felipe Salomão, a inobservância das normas processuais em discussão previstas no CPC enseja a nulidade relativa, sendo válidos os atos praticados, desde que não haja prejuízo aos interessados, sendo certo que tal norma visa preservar o interesse particular das partes (STJ. 4ª Turma. REsp 959755-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/5/2012).

Por outro lado, o que chama a atenção para este caso é que para os magistrados, há a possibilidade de substituição no exercício da jurisdição, nos termos do artigo 72, inciso II, da LOMAN. Para a Advocacia, o costume e as regras de urbanidade, idealizados na redação da Lei federal nº 8.906/1994, ao que parece, não subsistem mais.

Os costumes mudam. A sociedade civil tem novos hábitos. A urbanidade, a lealdade e o dever de cooperação tem a sua interpretação modificada a cada caso concreto. Contudo, a dignidade da pessoa humana – princípio fundamental da República Federativa do Brasil – não pode ser lembrada apenas quando convém.

O Código de Processo Civil, no seu artigo 1º, determina que o processo “será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. No Processo Penal, essas linhas principiológicas devem ser ainda mais vivas e presentes, para que se exija dos protagonistas da Justiça, mais do que o bom senso, a reciprocidade de tratamento em situações extremas como a morte de um ente querido.

Por essa razão, entendo ser oportuno propor que o Plenário deste Conselho Nacional de Justiça aprove medidas para o adequado tratamento - com respeito, decência e dignidade – das situações da vida civil dos profissionais de todo o Sistema de Justiça que precisarem se ausentar dos feitos processuais em razão de emergências pessoais e familiares como a retratada nestes autos.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, não obstante acompanhe o relator no aspecto disciplinar, com o desprovimento do recurso e manutenção do arquivamento da reclamação, submeto de ofício ao Plenário a proposta para que se determine a regulamentação da matéria, a fim de que se evite a repetição de situações embaraçosas e indignas como a registrada nestes autos, que, além de tudo, resultou na anulação da audiência e no atraso da tramitação do processo penal.

É como voto.