Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: CONSULTA - 0002449-52.2023.2.00.0000
Requerente: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ

 


EMENTA

 

CONSULTA. EXIBIÇÃO DO NOME SOCIAL NOS SISTEMAS PROCESSUAIS DOS TRIBUNAIS.  CUMPRIMENTO DA RESOLUÇÃO CNJ N. 270/2018. DIREITO DE UTILIZAÇÃO DO NOME SOCIAL PELAS PESSOAS TRANS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (TRANSGÊNEROS).  DESTAQUE DO NOME SOCIAL. DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE, À VIDA PRIVADA, À HONRA E À IMAGEM. PROVIMENTO CNJ Nº 149/2023. DECRETO 8.727/2016. ADI 4.275/DF.

1.O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero”, de modo que “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”. (ADI 4275, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 01-03-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 06-03-2019 PUBLIC 07-03-2019).

2. A pessoa transgênero que externalize a sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração ou requerimento escrito que certifique essa sua vontade dispõe alternativamente do direito fundamental subjetivo (i) à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial ou (ii) à adoção de nome social, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.

3. A Resolução nº 270/2018 dispõe sobre o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados dos tribunais brasileiros, assegurando o destaque e predominância do nome social sobre o nome civil, como forma de desenvolver “o pleno respeito às pessoas, independentemente da identidade de gênero, respeitando a igualdade, a liberdade e a autonomia individual, que deve constituir a base do Estado Democrático de Direitos e nortear a realização de políticas públicas destinadas à promoção da cidadania e respeito às diferenças humanas, incluídas as diferenças sexuais”.

4. O direito fundamental à dignidade (art. 1º, III, da CRFB), à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X, da CRFB) permite que, no cabeçalho dos processos judiciais figurem em destaque apenas o nome social, evitando a exposição da identidade de gênero, sem prejuízo dos registros internos que façam a vinculação com o nome civil e o Cadastro de Pessoas Física – CPF (Resolução CNJ nº 270/2018, art. 2º, § 1º).

5. Nos processos antigos, o campo do nome social deve ser implementado e preenchido em primeira posição, seguido da menção do nome registral precedido de “registrado civilmente como” (Resolução CNJ nº 270/2018, art. 3º). No caso de alteração do nome de pessoa transgênero no registro civil, deve-se alterar o próprio nome civil no cadastro e atentar-se para o seu caráter sigiloso, razão pela qual a informação a esse respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, únicas hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral (Provimento CNJ nº 149/2023, art. 519).

6. Deve haver a vinculação entre nome civil, nome social e CPF, para que, em todos os processos em que figure como parte, advogado, defensor público, membro do Ministério Público, mediador, conciliador, árbitro, auxiliar da justiça, servidor ou juiz, a pessoa interessada possa ser identificada também pelo nome social. Essa atenção não torna menos importante a atualização dos processos com o nome social das pessoas interessadas.

7. Nas pesquisas que tenham como critério ou parâmetro o nome social devem aparecer nos retornos os processos vinculados aos nomes social e civil da pessoa interessada. É importante destacar, porém, que, em todos os processos relacionados, a pessoa deve ser destacada pelo nome social com que se identifica. Caso necessário, para evitar confusões, o nome social deve aparecer depois da indicação “nome social”, conforme dispõe o artigo 3º da Resolução CNJ nº 270/2018.

8. Caso o nome social já seja utilizado nos registros da Receita Federal, esse nome deve ser utilizado pelo tribunal nos processos sob a sua jurisdição, mantendo em seus bancos de dados a vinculação com o nome civil e o CPF, sem prejuízo de que a pessoa interessada seja intimada/notificada para se manifestar previamente. É sempre importante lembrar que alteração de registro civil não se confunde com adoção de nome social. Contudo, em qualquer hipótese, para evitar constrangimentos e violação de direitos fundamentais, é imprescindível se garantir que o banco de dados do tribunal ou do seu sistema de processo eletrônico esteja sempre atualizado.

9. Consulta conhecida e respondida com caráter normativo geral, nos termos do art. 89, § 2º, do RICNJ.

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, respondeu a consulta da seguinte forma nos termos do voto do Relator. Ausente, em razão da vacância do cargo, o representante do Tribunal Regional do Trabalho. Presidiu o julgamento o Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário Virtual, 1º de março de 2024. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão, Caputo Bastos, José Rotondano, Mônica Autran, Renata Gil, Daniela Madeira, Giovanni Olsson, Pablo Coutinho Barreto, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Daiane Nogueira e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: CONSULTA - 0002449-52.2023.2.00.0000
Requerente: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ


 

RELATÓRIO


Trata-se de consulta (Cons) apresentada pelo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ em que objetiva a deliberação deste Conselho Nacional de Justiça – CNJ em relação à exibição do nome social no sistema processual daquela Corte, tendo em vista o estabelecido na Resolução CNJ nº 270/2018 acerca do direito de utilização do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários.

Nos autos do Cumprdec nº 0007412-45.2019.2.00.0000, a Presidência do STJ relatou (Id 5102306, fls. 8 e 9) que instruiu procedimento interno, em atenção à prévia intimação deste Conselho, para apurar o cumprimento das diretrizes previstas na Resolução CNJ n. 270/2018.

Registrou, naqueles autos, que a Secretaria Judiciária do STJ apresentou à Presidência da Corte dúvidas no que tange ao cumprimento da referida Resolução, nos seguintes termos:

- No cabeçalho do processo deve figurar simultaneamente o nome social e o nome registral ou essa informação pode ficar apenas em outros registros processuais de forma subjacente?

- Processos anteriores ao estabelecimento do nome social, devem permanecer da forma original? Ou devem ser alterados para figurar o nome social?

- Ao realizar pesquisa utilizando como parâmetro o nome original, devem aparecer os processos com o nome original e os com o nome social?

- Ao fazer pesquisa utilizando como parâmetro o nome social, devem aparecer os processos com o nome social e os com o original?

- O sistema do STJ utiliza integração com a base da Receita Federal para cadastro de parte no processo. Havendo nome social na Receita e não havendo requerimento de escolha de opção qual nome figurar, qual será o padrão do sistema? O nome original? O nome social? Ou os dois?

Diante disso, a Presidência do STJ encaminhou o Ofício n. 1/2023 (Id 5102306, fl. 5) com intuito de sanar tais dúvidas.

Em despacho (Id 5102305), a Presidência deste Conselho determinou a autuação desta consulta e a sua subsequente distribuição, nos termos dos artigos 89 e seguintes do Regimento Interno do CNJ.

Considerando a especificidade da matéria e a condição da minha representação no CNJ, determinei o encaminhamento dos autos à Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB (CFOAB) para emissão de parecer acerca do tema.

Em 25/09/2023, o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), Beto Simonetti, trouxe aos autos o parecer, aprovado à unanimidade pela Comissão Especial de Diversidade Sexual e de Gênero do CFOAB (Id 5301400).

 

É o relatório

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: CONSULTA - 0002449-52.2023.2.00.0000
Requerente: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ

 


VOTO

 

Verifico, de antemão, a presença dos requisitos intrínsecos para a admissibilidade da presente consulta: (a) questionamento, em tese, de interesse e repercussão gerais referente à dúvida suscitada a respeito da veiculação do nome social de pessoas trans, travestis e transexuais em conformidade com o disposto na Resolução CNJ nº 270/2018; e (b) indicação precisa do seu objeto – a exibição do nome social no sistema processual do STJ – e formulação articulada.

A questão trazida oportunamente à apreciação do CNJ foi objetivamente tratada e sintetizada no julgamento da ADI nº 4.275/DF, pelo e. Supremo Tribunal Federal – STF, atentando para os diversos aspectos dos objetivos e dos direitos fundamentais condizentes com a não discriminação e a individualidade da pessoa humana, abarcando as dimensões da identidade e da opção de gênero, que, na atualidade, têm o nome no registro civil como uma das suas principais projeções sociais e jurídicas, in verbis:

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente.

(ADI 4275, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 01-03-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045  DIVULG 06-03-2019  PUBLIC 07-03-2019)

Ainda que vencido em maior extensão pela posição do e. Ministro Edson Fachin, o e. Ministro Marco Aurélio, enquanto relator originário da ADI 4.275/DF advertiu que já era “tempo de a coletividade atentar para a insuficiência de critérios morfológicos para afirmação da identidade de gênero, considerada a dignidade da pessoa humana. Descabe potencializar o inaceitável estranhamento relativo a situações divergentes do padrão imposto pela sociedade para marginalizar cidadãos, negando-lhes o exercício de direitos fundamentais.

Para o e. Ministro Edson Fachin, cujo voto prevaleceu no Plenário do STF, existem dois fundamentos jurídicos para sustentar a posição do Supremo Tribunal Federal de que “a pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”. O primeiro, de base interna e constitucional, sustenta-se no direito à dignidade (art. 1º, III, da CRFB), à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X, da CRFB). O segundo, de influência externa, tem base convencional (art. 5º, § 2º, da CRFB) estratificada no direito ao nome (artigo 18 do Pacto de São José da Costa Rica), ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3 do Pacto), à liberdade pessoal (artigo 7.1 do Pacto) e à honra e à dignidade (artigo 11.2 do Pacto). Isso porque nenhum desses dispositivos constitucionais e convencionais deve se afastar ou mesmo tangenciar a tutela geral da personalidade fundada no princípio da dignidade humana.

Recorro mais uma vez ao voto de Sua Excelência, para transcrever ponto bastante elucidativo dos Princípios de Yogyakarta, documento apresentado pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas sobre a identidade de gênero – ONU, em especial quanto à aplicação da legislação internacional sobre direitos humanos para reforçar a noção e a importância do respeito à orientação sexual e à identidade gênero como expressão da personalidade da pessoa humana, uma vez que:

(...) referida à experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismo.

Aqui, não se está simplesmente a discutir a forma de apresentação do nome social pelas pessoas trans, travestis, transexuais ou transgêneros, na correta acepção da palavra, quando usuárias dos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados dos tribunais brasileiros, como retratado na Resolução CNJ nº 270/2018.

Há, no objeto desta consulta, a necessidade de se ir mais fundo e fazer devida relação entre a justificativa de se assegurar o direito fundamental à alteração do próprio nome no registro civil e o direito igualmente fundamental de qualquer pessoal se apresentar não necessariamente de acordo o seu sexo, mas com a sua personalidade, a sua identidade de gênero, a sua orientação sexual, ainda que haja contradição entre o estado civil e o modo de ser e agir perante si e a sociedade, situação ainda produtora em escala injustificável de desconforto, constrangimento e até mesmo violência moral e física.

Segundo cartilha divulgada pelo Governo Federal, transgêneros (femininos e masculinos) ainda são quem mais sofrem com o estigma, a discriminação e o preconceito vivenciados pela população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), devido a intolerância à identidade de gênero e/ou a orientação sexual, o que ocasiona em graves implicações no âmbito da violação de direitos.

Em razão disso, estabeleceu-se m marco na história do movimento contra a transfobia e pelos direitos humanos, quando o Ministério da Saúde organizou, em Brasília (DF), no dia 29 de janeiro de 2004, um ato nacional para lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, tendo em vista que a trajetória dessa população foi e continua sendo uma das mais vulnerabilizadas, sofrendo todo tipo de estigma e discriminação que impacta diretamente no acesso aos bens e serviços de saúde.

Nesse contexto, assim como o dia 29 de janeiro é celebrado todos os anos como o Dia Nacional da Visibilidade Trans, para que a sociedade registre os importantes passos que dignificam essa parcela da população, o ano de 2018 marcou a conquista do direito de alteração do prenome e do gênero nas certidões oficiais foi garantido no Brasil sem maiores burocracias.

A partir do julgamento da ADI 4.275/DF, a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ publicou o Provimento nº 73, de 28/06/2018, posteriormente incorporado pelo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial, que regulamenta os serviços notarias e de registro (Provimento nº 149, de 20/08/2023), passando a exigir que todos os cartórios de registro de pessoas do país realizassem a mudança de nome de transgêneros, sem a necessidade de processo judicial, “a fim de adequá-los à identidade autopercebida”, independente “de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico” (art. 516 c/c art. 518, § 1º).

Antes, se as pessoas transgênero quisessem alterar alguma documentação oficial precisavam realizar cirurgias, apresentar laudos de profissionais da saúde e diversos outros exames que compunham intermináveis e constrangedores processos judiciais, correndo o risco de o Poder Judiciário, ao final, impedir a adequação do registro civil.

No atual estado da arte, basta reunir algumas certidões e documentos e levá-los a um cartório, que não precisa sequer ser o mesmo em que a pessoa foi registrada.

o nome social, entende-se aquele adotado pela pessoa, por meio do qual se identifica e é reconhecida na sociedade, sendo por ela própria declarado (Resolução nº 270/2018, art. 1º, § 1º). Continua, assim, uma alternativa para que se garanta a dimensão da identidade no que diz respeito à forma como a pessoa se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento ou mesmo com o registro civil.

Em relação ao nome social, não se dispensa considerar os aspectos da personalidade humana pontuados no julgamento da ADI 4.275/DF e a sua relação com a evolução da sociedade, abrangendo as mesmas características da personalidade, especialmente as relacionadas à identidade de gênero, à orientação sexual e ao nome social, na legislação pátria.

No curso dessa análise, torna-se importante lembrar o esforço de alguns entes federados em adiantar a incorporação dessa visão nas respectivas experiências administrativas. Para tanto, existem outras referências relativas ao nome social, sendo a primeira delas a normatização pela Secretaria de Estado de Educação do Estado do Pará (Portaria n. 16/2008-GS; Decretos nº. 1.675/2009 e nº. 726/2013; e Resolução nº. 210/2012-CONSEP); seguida por aquelas aprovadas pelos Estados do Piauí (Lei nº 5.916/2009), São Paulo (Decreto nº 55.588/2010), Pernambuco (Decreto nº 35.051/2010), Rio de Janeiro (Decreto nº 43.065/2011), Rio Grande do Sul (Decreto nº 49.122/2012), Mato Grosso do Sul (Decreto nº 13.684/2013), Bahia (Portaria nº 220/2009-SEDES), Paraíba (Portaria nº 41/2009-GS); pelo Distrito Federal (Decreto nº 34.350/2013); pelo Município de Manaus/AM (Portaria nº 151/2010-GS/SEMASDH); e pela União, que também criou normas para regulamentação oficial do instituto do “nome social” (Portaria MPOG nº 233/2010; Edital do ENEN de 2015; Resoluções nº 11/2014 e nº 12/2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros)

A retificação do registro implica a mudança efetiva das certidões. Para as pessoas transgênero que permanecem com os nomes inalterados nos documentos, existe a prerrogativa de adotarem o nome social, que igualmente proteja a respectiva identidade de gênero.

Atualmente, é o Decreto nº 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da Administração Pública Federal, direta, autárquica e fundacional, o qual precedeu de igual maneira o julgamento do STF na ADI nº 4.275/DF, em março de 2018.

Disciplinando, assim como a Resolução CNJ nº 270/2018, uma condição humana afeta à igualdade, à liberdade e com especial ênfase à intimidade, com naturais repercussões sociais, vale repetir as lições do professor romano Stéfano Rodotà, quando aduz que, muito mais que o sigilo, o aspecto ligado à intimidade traz a conotação de algo ainda mais complexo, porque vinculado à proteção da pessoa em razão das suas escolhas de vida “que devem ser protegidas contra o controle estatal e a estigmatização social”.

Não se descurou o Provimento nº 149/2023, no artigo 519, de atentar para o sigilo, ao prever que a alteração de dados relativos à pessoa transgênero “tem natureza sigilosa, razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral”.

Uma vez que a retificação não é obrigatória, em relação ao nome social, é indispensável saber também se o nome do registro civil deve permanecer confidencial e ser utilizado somente com autorização da pessoa ou para fins estritamente necessários de interesse público.

Em relação a essa parte do tema em discussão, transcrevo trechos do substancioso parecer, da lavra da Dra. Amanda Souto Baliza (OAB/GO nº 36.578), presidente da Comissão Especial de Diversidade Sexual e de Gênero do CFOAB, cujos fundamentos passam a integrar a presente decisão:

 

(...)

No cabeçalho do processo deve figurar simultaneamente o nome social e o nome registral ou essa informação pode ficar apenas em outros registros processuais de forma subjacente?

4. Entendemos que deve figurar somente o nome social no cabeçalho do processo permitindo que a pessoa não tenha sua identidade de gênero exposta, caso assim não o queira.

5. Os tribunais podem manter registros internos e sigilosos que façam a vinculação entre o nome civil e o nome social, devendo esse estar sempre em destaque.

6. Importante ressaltar que o Decreto 8.727/2016, que trata do nome social na administração pública federal, considera que o nome civil deve ser exposto somente em circunstâncias excepcionais conforme dita seu art. 5º:

Art. 5º O órgão ou a entidade da administração pública federal direta, autárquica e fundacional poderá empregar o nome civil da pessoa travesti ou transexual, acompanhado do nome social, apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda e direitos de terceiros .

 

7. Além disso, o próprio CNJ no Provimento 73/2018, atualizado pela Resolução 149/2023, que trata da retificação de registro civil, considera a identidade de gênero como questão sigilosa também em seu art. 5º:

 

Art. 5º A alteração de que trata o presente provimento tem natureza sigilosa, razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral.

8. Recentemente o Governo Federal anunciou que o novo RG Nacional passará a exibir somente o nome social, tendo assim o nome civil ignorado, um movimento importante para preservar o direito à intimidade e ao sigilo da identidade de gênero das pessoas trans.

9. Nesse rumo, entendemos que deve ser respeitado o direito ao sigilo do nome civil, devendo haver apenas registros internos que façam a vinculação entre nome civil, social e CPF para evitar danos a homônimos ou terceiros.

Processos anteriores ao estabelecimento do nome social, devem permanecer da forma original? Ou devem ser alterados para figurar o nome social?

10. O direito à identidade de gênero é reconhecido pelo Estado brasileiro por meio de atos normativos como o Decreto 8.727/2016 e o julgamento da ADI 4275, em 2018, que reconheceu o direito à retificação de registro civil.

11. Por mais que sejam marcos do reconhecimento do direito ao respeito da identidade de gênero, não significa que pessoas trans passaram a existir somente após aqueles períodos.

12. Dessa forma, entendemos que os processos devem ser atualizados para que eventuais confusões sejam evitadas. Em situação similar, o provimento 73/2018 determina que os cartórios devem comunicar os juízos após a retificação de registro civil caso haja alguma certidão positiva, art. 4º, § 9º:

Art. 4º. ... § 9º Ações em andamento ou débitos pendentes, nas hipóteses dos incisos XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI e XVII do § 6º, não impedem a averbação da alteração pretendida, que deverá ser comunicada aos juízos e órgãos competentes pelo ofício do RCPN onde o requerimento foi formalizado.

13. Sendo assim, o nome social deve ser atualizado em processos antigos para evitar confusões jurídicas acerca da parte, afinal de contas, caso não seja atualizado, consultas futuras farão com que o nome civil seja exposto gerando constrangimentos desnecessários.

14. Uma possível solução para esse tópico é a intimação da parte para que se manifeste se deseja que o processo anterior seja atualizado conforme o nome social.

Ao realizar pesquisa utilizando como parâmetro o nome original, devem aparecer os processos com o nome original e os com o nome social?

 

15. Deve haver uma vinculação entre nome civil, nome social e CPF para que a pessoa seja identificada.

16. A questão da pesquisa reforça a necessidade de atualização do nome nos processos anteriores como questionado na última pergunta.

17. Entendemos que o nome social deve aparecer nas pesquisas, ainda que o processo conste documentação com o nome civil não retificado, garantindo a possibilidade de identificação da pessoa pela vinculação ao CPF.

Ao fazer pesquisa utilizando como parâmetro o nome social, devem aparecer os processos com o nome social e os com o original?

18. Os processos com o nome civil devem aparecer na pesquisa, mas na listagem deve constar o nome social.

19. Se necessário, para evitar confusões, o nome social deve aparecer logo após o campo denominado “nome social”.

O sistema do STJ utiliza integração com a base da Receita Federal para cadastro de parte no processo. Havendo nome social na Receita e não havendo requerimento de escolha de opção qual nome figurar, qual será o padrão do sistema? O nome original? O nome social? Ou os dois?

20. Caso o nome social seja usado nos registros da Receita Federal, deve ele ser usado pelo tribunal, mantendo em seus bancos de dados a vinculação entre nome civil e CPF.

21. Importante ressaltar que vários sistemas no Brasil, em especial os PJE, possuem um déficit enorme na atualização dos bancos de dados e pessoas trans, advogados e partes, passam constrangimentos em razão disso, então é necessário garantir que o sistema esteja com o banco de dados sempre atualizado sem necessidade de solicitação manual por parte da pessoa trans.

22. A título de exemplo, essa relatora, mesmo após a retificação de registro civil em 2020, teve que solicitar manualmente a atualização de dados em cadastros posteriores em vários PJEs porque, mesmo após a retificação na Receita Federal, o sistema constava o nome anterior, inclusive no próprio STJ que usa o sistema próprio CPE.

 

 

Muito embora tenha havido recuo do Governo Federal na unificação dos campos “nome do registro” e “nome social” e na manutenção do espaço reservado à identificação de gênero na nova Carteira Nacional de Identidade – CIN, conforme veiculado pela imprensa no final de 2023, destaca-se que, como observado anteriormente, o entendimento exposto no parecer do CFOAB converge em boa medida com a interpretação conforme atribuída pelo STF ao art. 58 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), no julgamento da ADI nº 4.275/DF.

Levando a efeito os direitos fundamentais à igualdade, liberdade e intimidade das pessoas transgênero, os artigos 2º e 3º da Resolução CNJ nº 270/2018 regulamentaram o uso do nome social nos processos eletrônicos, garantindo a possibilidade do uso do nome social às pessoas trans, travestis e transsexuais usuárias do Poder Judiciário, como também a magistrados, servidores e funcionários em igual condição, sempre com ordem de prioridade sobre o nome civil:

Art. 2º Os sistemas de processos eletrônicos deverão conter campo especificamente destinado ao registro do nome social desde o cadastramento inicial ou a qualquer tempo, quando requerido.

§ 1º O nome social do usuário deve aparecer na tela do sistema de informática em espaço que possibilite a sua imediata identificação, devendo ter destaque em relação ao respectivo nome constante do registro civil.

(...)

§ 5º Em caso de divergência entre o nome social e o nome constante do registro civil, o prenome escolhido deve ser utilizado para os atos que ensejarão a emissão de documentos externos, acompanhado do prenome constante do registro civil, devendo haver a inscrição “registrado(a) civilmente como”, para identificar a relação entre prenome escolhido e prenome civil.

 

Art. 3º Será utilizado, em processos judiciais e administrativos em trâmite nos órgãos judiciários, o nome social em primeira posição, seguido da menção do nome registral precedido de “registrado(a) civilmente como”.

Parágrafo único. Nas comunicações dirigidas a órgãos externos, não havendo espaço específico para registro de nome social, poderá ser utilizado o nome registral desde que se verifique que o uso do nome social poderá acarretar prejuízo à obtenção do direito pretendido pelo assistido.

O uso exclusivo do nome social está previsto tão somente no parágrafo único do artigo 5º da Resolução CNJ nº 270/2018, ou seja, nos instrumentos internos de identificação, mantendo o registro administrativo que faça vinculação entre o nome social e a identificação civil, in verbis:

Art. 5º Sem prejuízo de outras circunstâncias em que se constatar necessário, o nome social será utilizado nas seguintes ocorrências:

I – comunicações internas de uso social;

II – cadastro de dados, prontuários, informações de uso social e endereço de correio eletrônico;

III – identificação funcional de uso interno;

IV – listas de números de telefones e ramais; e

V– nome de usuário em sistemas de informática.

Parágrafo único. É garantido, no caso do inciso III, bem como nos demais instrumentos internos de identificação, o uso exclusivo do nome social, mantendo registro administrativo que faça a vinculação entre o nome social e a identificação civil

 

Nada obstante, as disposições acima colacionadas combinadas com o art. 5º do Decreto nº 8.727/2016 evidenciam que a regra é o uso do nome social, devendo tanto a redação como a interpretação da Resolução CNJ nº 270/2018 evoluir para que o nome civil da pessoa transgênero seja veiculado “apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda e direitos de terceiros”. 

 Ademais, cumpre ressaltar que o reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado desempenha um papel crucial na garantia do pleno exercício dos direitos humanos. Desse modo, é imperativo assegurar que não ocorram confusões jurídicas que resultem constrangimentos para pessoas ao acessar o Poder Judiciário ou consultar os processos judiciais eletrônicos.

Ainda que necessária a vinculação entre nome civil, nome social e CPF, é essencial que a pessoa seja identificada nos processos judiciais sempre pelo prenome e gênero com que se autoidentifica, seja no caso de retificação do registro civil, indene de dúvidas, ou de adoção de nome social.

                         Nas situações em que o tribunal integrar a sua base de dados com a de outro órgão da Administração Pública em que já consta a retificação do nome civil – como no caso do STJ, em que há a integração com a base da Receita Federal –, deve figurar o nome social adotado, sendo essencial que o tribunal mantenha o sistema atualizado e reservadamente vinculado ao nome civil, ainda que a pedido das pessoas interessadas. 

Essa providência, aliás, evitará que o constrangimento relatado pela Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da CFOAB se repita, em desabono à dignidade das pessoas transgênero.

Semelhante noção deve ser adotada nos processos anteriores ao estabelecimento do nome social, de modo que o prenome deve ser atualizado em processos antigos por meio da mencionada vinculação entre nome civil, nome social e CPF, para que, em consultas futuras, não se exponha em demasiado o nome civil, preservando a intimidade das pessoas transgênero.

                           Amparado nessas razões, conheço da consulta e a respondo objetivamente do seguinte modo:

a)      No cabeçalho do processo deve figurar simultaneamente o nome social e o nome registral ou essa informação pode ficar apenas em outros registros processuais de forma subjacente?

Resposta – No cabeçalho do processo deve figurar em destaque apenas o nome social, evitando a exposição da identidade de gênero, sem prejuízo dos registros internos que façam a vinculação com o nome civil e o Cadastro de Pessoas Física – CPF (Resolução CNJ nº 270/2018, art. 2º, § 1º).  

b)     Processos anteriores ao estabelecimento do nome social, devem permanecer da forma original? Ou devem ser alterados para figurar o nome social?

Resposta – Nos processos antigos, o campo do nome social deve ser implementado e preenchido em primeira posição, seguido da menção do nome registral precedido de “registrado civilmente como” (Resolução CNJ nº 270/2018, art. 3º). No caso de alteração do nome de pessoa transgênero no registro civil, deve-se alterar o próprio nome civil no cadastro e atentar-se para o seu caráter sigiloso, razão pela qual a informação a esse respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, únicas hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral (Provimento CNJ nº 149/2023, art. 519).

c)      Ao realizar pesquisa utilizando como parâmetro o nome original, devem aparecer os processos com o nome original e os com o nome social?

Resposta – Sim, deve haver a vinculação entre nome civil, nome social e CPF, para que, em todos os processos em que figure como parte, advogado, defensor público, membro do Ministério Público, mediador, conciliador, árbitro, auxiliar da justiça, servidor ou juiz, a pessoa interessada possa ser identificada. Essa atenção não torna menos importante a atualização dos processos com o nome social das pessoas interessadas.

d)     Ao fazer pesquisa utilizando como parâmetro o nome social, devem aparecer os processos com o nome social e os com o original?

Resposta – Sim, semelhante à resposta da pergunta anterior, nas pesquisas que utilizem como critério ou parâmetro o nome social devem figurar nos retornos os processos vinculados aos nomes social e civil da pessoa interessada. É importante destacar, porém, que, em todos os processos relacionados, a pessoa deve ser destacada pelo nome social com que se identifica. Caso necessário, para evitar confusões, o nome social deve aparecer após a indicação “nome social”, conforme dispõe o artigo 3º da Resolução CNJ nº 270/2018.

e)      O sistema do STJ utiliza integração com a base da Receita Federal para cadastro de parte no processo. Havendo nome social na Receita e não havendo requerimento de escolha de opção qual nome figurar, qual será o padrão do sistema? O nome original? O nome social? Ou os dois?

Resposta – Caso o nome social já seja utilizado nos registros da Receita Federal, ele deve ser aplicado pelo tribunal nos processos sob a sua jurisdição, mantendo em seus bancos de dados a vinculação entre nome civil e CPF, sem prejuízo de que a pessoa interessada seja intimada/notificada para se manifestar anteriormente. É sempre importante lembrar que alteração de registro civil não se confunde com adoção de nome social. Contudo, em qualquer hipótese, para evitar constrangimentos e violação de direitos fundamentais, é imprescindível se garantir que o banco de dados do tribunal ou do seu sistema de processo eletrônico esteja sempre atualizado.

 

É como voto.

 

Conselheiro Marcello Terto

 Relator