PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. REAVALIAÇÃO DE PENALIDADE DE ADVERTÊNCIA APLICADA A JUIZ DE DIREITO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. APROPRIAÇÃO DE ESTÁTUA DE DOM QUIXOTE. MOVIMENTAÇÃO DO BEM DENTRO DO PRÓPRIO TRIBUNAL. AUSÊNCIA DE CONDUTA INEQUÍVOCA E DOLOSA DE INCORPORAÇÃO DA OBRA DE ARTE AO PATRIMÔNIO PARTICULAR DO MAGISTRADO. INEXISTÊNCIA DE MANIFESTA DESPROPORCIONALIDADE ENTRE A PENA APLICADA PELO TRIBUNAL E OS FATOS EM ANÁLISE. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

 

 ACÓRDÃO

Após o voto da Ministra Rosa Weber (Vistora), o Conselho, por maioria, julgou improcedente o pedido, nos termos do voto do Conselheiro Mauro Pereira Martins. Refluiu do voto apresentado em assentada anterior, o Conselheiro Richard Pae Kim. Vencidos os Conselheiros Luis Felipe Salomão (Relator), Conselheiros Vieira de Mello Filho, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Giovanni Olsson e a Presidente Rosa Weber, que votavam pela instauração de revisão disciplinar em desfavor do requerido. Lavrará o acórdão o Conselheiro Mauro Pereira Martins. Ausente, circunstancialmente, o Conselheiro Vieira de Mello Filho. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Plenário, 23 de maio de 2023. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão (Relator), Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, Sidney Madruga, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0007159-23.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: JOÃO CARLOS DE SOUZA CORRÊA


RELATÓRIO

            

 O MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):  

 

 

Cuida-se de pedido de providências instaurado nos termos da Portaria CNJ n. 34 de 13.9.2016, a fim de cumprir o disposto nos artigos 9º, § 3º; 14, § 4º e § 6º; 20, § 4º; e 28 da Resolução CNJ n. 135, de 13.7.2011, em virtude da comunicação da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro à Corregedoria Nacional de Justiça, referente ao julgamento do Processo Administrativo Disciplinar n. 0025716- 29.2020.8.19.0000 em desfavor do Juiz de Direito João Carlos de Souza Correa.


No caso, instaurou-se processo administrativo disciplinar em desfavor do ora requerido, a fim de apurar condutas incompatíveis com a integridade pessoal, profissional e probidade no exercício da magistratura.


A Presidência daquela Corte informou que o PAD n. 0025716- 29.2020.8.19.0000 foi julgado na Sessão Plenária do dia 27/09/2021. Esclareceu que, não tendo sido atingido o quórum legal, foi observado o que estabelece o art. 21, parágrafo único, da Resolução CNJ n. 135 e que o Tribunal, por maioria, aplicou a pena de advertência ao magistrado, de acordo com o voto do Desembargador Bernardo Moreira Garcez Neto, relator designado.


Confira-se o teor da ementa do acórdão prolatado (ID 4522996):

 

 


Processo administrativo disciplinar. Juiz Titular do XVIII Juizado Especial Criminal da Regional de Campo Grande. Apropriação da estátua de Don Quixote do acervo patrimonial do fórum de Armação de Búzios. Dolo de apropriação configurado diante da evidente diferença entre o bem apropriado e aquele que o representado agora diz ser de sua propriedade. Devolução da estatueta, após de 1 ano e 7 meses em cumprimento à intimação do então Corregedor deste TJERJ. Conduta incompatível com a integridade que se espera de um magistrado. Violação aos artigos 35, inciso VIII, e artigo 37 da LOMAN e ao artigo 18 do Código de Ética da Magistratura. Aplicação da pena de advertência, que prevaleceu, por onze votos contra seis, sobre a proposta de disponibilidade. Representação procedente. Vencido o relator, que julgava improcedente a imputação.

 

 

Eis a justificativa apresentada para aplicação da pena mais branda (ID 4522996, p. 34-35):


 

103. Por todo o exposto, em juízo de adequação e de proporcionalidade na fixação da pena aplicada sobre os fatos descritos e comprovados nestes autos, meu voto, acompanhado pelos cinco outros desembargadores, foi pela imposição ao requerido da pena de disponibilidade, uma vez que qualquer outra menos severa seria desprovida de valia para atingir as finalidades da sanção administrativa.

104. Porém, a maioria do Colegiado (11 Desembargadores) preferiu acompanhar a Desembargadora Elisabete Filizzola Assunção, que aplicou a pena mínima (advertência), sob o fundamento de que não havia antecedentes na ficha de penalidades do requerido.

 

 

Discordando da conclusão da Corregedoria local em relação à penalidade aplicada, porque contrária à evidência dos fatos graves constatados no procedimento e insuficiente para reprimir as faltas praticadas pelo magistrado e violadoras do art. 35, inciso VIII, e o art. 37 da Lei Complementar nº 75/79, Lei Orgânica da Magistratura Nacional e o artigo 18 do Código de Ética da Magistratura, e considerando a possibilidade de instauração de ofício de revisão disciplinar para um possível redimensionamento da sanção disciplinar, determinei a intimação do magistrado, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, querendo, apresentasse defesa prévia (ID 4542177).


Em sua manifestação prévia, o magistrado informou que propôs perante este CNJ Revisão Disciplinar em face do acórdão proferido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na qual sustenta ser caso de absolvição. Informou, ainda, que a RevDis em questão foi protocolada no dia 16 de dezembro de 2021 e distribuída à relatoria da Conselheira do CNJ Flávia Pessoa (n.º 0009145-75.2021.2.00.0000). Por fim, encartou aos autos a cópia da referida peça processual (ID 4582445). 


É o relatório.

 

J4/F33

 

VOTO DIVERGENTE

 

Adoto o bem lançado relatório do eminente Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, porém peço a máxima vênia para divergir do substancioso voto apresentado.

Examinando-se criteriosamente as questões postas no presente feito e atendo-se especificamente aos fatos que o permeiam, verifico que foi doado uma obra de arte (estátua de Dom Quixote) para o fórum de Búzios/RJ.

De plano, importante salientar que fórum não possui personalidade jurídica, tampouco patrimônio próprio, de modo que, em verdade, a obra de arte foi doada para o acervo do Tribunal de Justiça do Estado.

E, na oportunidade em que o magistrado foi removido da sua comarca para outra comarca, a estátua foi transportada/movimentada para o gabinete da localidade de destino do requerido.

À vista desse cenário fático, foi atribuído ao juiz a irregularidade de uma apropriação para o seu próprio patrimônio do bem referenciado.

Nesse particular, invocando-se as lições, institutos e conceitos do Direito Penal, a conduta de apropriação pressupõe que o agente exteriorize uma conduta inequívoca e dolosa de incorporar um bem pertencente a outrem ao seu patrimônio pessoal.

Na hipótese dos autos, entretanto, observa-se que, em momento algum, a estátua foi levada para a casa do magistrado ou transportada para fora do ambiente do Tribunal de Justiça.

O bem movimentou-se de um fórum para outro fórum, permanecendo, portanto, em domínio público. E mais, em momento algum, o Tribunal perdeu a posse sobre a obra.

Inclusive, quando da transferência da estátua de um fórum para outro, esta não foi transportada no veículo pessoal do magistrado, mas sim no transporte público do Tribunal, utilizando-se de sua logística.

Daí dizer que a obra de arte foi incorporada ou que o magistrado teve a intenção de incorporá-la ao seu patrimônio se distanciaria – e muito – da tipificação legal da conduta de apropriação ora imputada ao requerido.

Não se pode olvidar, contudo, que possíveis irregularidades possam ter ocorrido, a exemplo de eventual comunicação ao Tribunal ou questões de tombamento do bem. Aqui, porém, houve a punição por parte do Tribunal, aplicando-se ao magistrado a penalidade de advertência.

E, agora, em sede de revisão disciplinar, propõe-se a reavaliação da sanção aplicada ao requerido, para, ao final, aumentá-la.

Nessa perspectiva, sobreleva ressaltar que a revisão disciplinar, na sua via estreita de processamento e julgamento, é exigida manifesta desproporcionalidade entre a pena aplicada pelo Tribunal e os fatos em análise.

Tal desproporcionalidade, data máxima vênia, não existe na hipótese vertente, porquanto sopesadas as circunstâncias afetas à conduta do magistrado pela instância de origem. 

Há dúvidas, inclusive, se o magistrado deveria ser apenado. Todavia, nesse ponto, deixo de avançar em razão da tramitação, neste Conselho, de revisão disciplinar proposta pelo magistrado para o exame, justamente, da sua possível absolvição (RevDis 0009145-75.2021.2.00.0000, de relatoria do Conselheiro Giovanni Olsson). 

Ante o exposto, renovando todas as vênias, DIVIRJO do eminente relator, para julgar improcedente o pedido de providências.

É como voto.

Brasília, data registrada no sistema.

 

MAURO PEREIRA MARTINS

Conselheiro

 

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0007159-23.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: JOÃO CARLOS DE SOUZA CORRÊA

 


VOTO

 

O MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):  


Compete ao Conselho Nacional de Justiça “rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano” (art. 103-B, § 4º, V, da CF). 

   

Assim, tem-se que a pretensão revisional do CNJ, seja por meio de procedimento próprio, seja mediante o prosseguimento da apuração originária, deve ser exercida sob o limite temporal de um ano, a partir do julgamento disciplinar pelo Tribunal local, à luz do art. 103-B, § 4º, inciso V, da Constituição Federal. 

   

E nesse aspecto, é de suma importância invocar o precedente dominante deste Conselho, da lavra da Min.Nancy Andrighi “O prazo decadencial para o exercício, pelo CNJ, do poder de rever, de ofício, os processos disciplinares instaurados contra juízes e membros de tribunais deve considerar, como marco terminativo, a primeira manifestação formal de qualquer dos legitimados previstos no art. 86 do RICNJ, que expresse o interesse público na instauração da revisão disciplinar.” - grifei (CNJ – PP – Pedido de Providências – 0000884-73.2011.2.00.0000 – Rel. Min. NANCY ANDRIGHI – j. 24/03/2015). 



 

Sendo o termo inicial da decadência a data em que o CNJ é notificado do acórdão que aplicou a penalidade, na hipótese dos autos tal fato ocorreu em 26/10/2021 (ID 4522994). Em seguida, no dia 23/11/2021 (ID 4542177, fls. 19, primeiro parágrafo), a então Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, já cuidou de intimar o magistrado investigado para manifestação quanto à proposição de Revisão Disciplinar. Logo, restou clara e expressa a pretensão da Corregedoria Nacional de promover a revisão da sanção aplicada ao magistrado, de modo que este marco representou o termo final do prazo decadencial, porquanto restou objetivado para o magistrado o direito deste órgão sensório de buscar a revisão da sanção aplicada. 



É importante, ainda, realizar outra uma pontuação 



Ao ser intimado da pretensão revisional desta Corregedoria Nacional, o magistrado João Carlos de Souza Corrêa enviou o e-mail acostado nos autos no ID 4582444, ocasião em que informa que intentou no Conselho Nacional de Justiça pedido de revisão disciplinar (n° 0009145-75.2021.2.00.0000), sendo que fez juntar, na sequência, justamente a petição inicial de tal pedido (ID 4582445), deixando de apresentar específica defesa no presente expediente iniciado de ofício pela Corregedoria Nacional. Como se cuida de petição direcionada a feito de relatoria diversa, que acabará sendo julgado conjuntamente com a presente, convém que não se avalie aqui e agora os argumentos lá lançados de ordem de alegada nulidade do julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Com isso, em um cognição mais ampla, envolvendo os dois pedidos, poder-se-á ter melhor avaliação da tese. 



Ultrapassadas essas questões de ordem preliminar, adentra-se ao mérito. 



 

Admite-se a Revisão Disciplinar nas hipóteses previstas no artigo 83 do Regimento Interno do CNJ:  

   

Art. 83. A revisão dos processos disciplinares será admitida:  

 

I - quando a decisão for contrária a texto expresso da lei, à evidência dos autos ou a ato normativo do CNJ;  

II - quando a decisão se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;  

III - quando, após a decisão, surgirem fatos novos ou novas provas ou circunstâncias que determinem ou autorizem modificação da decisão proferida pelo órgão de origem. 

  

Partindo-se dessa premissa normativa, no caso dos autos, entendo que a aplicação da pena de advertência ao magistrado em questão, mostra-se contrária à evidência dos autos, merecendo os graves fatos praticados uma apuração mais detida por este Conselho, em sede revisional. 

 

Justifico.

 

 

A Lei Complementar n. 35/1979, em seu artigo 43, estabelece que a "pena de advertência aplicar-se-á reservadamente, por escrito, no caso de negligência no cumprimento dos deveres do cargo". 

  

Ocorre que as infrações disciplinares praticadas pelo magistrado vão muito além da negligência no cumprimento dos deveres do cargo.


Foram atribuídas ao magistrado as seguintes infrações disciplinares, ao que consta da Portaria nº 3/2020, de instauração do PAD (Id 4522996, p. 4):

 

 

1 – Induzir em erro o juiz auxiliar da Presidência, Marcello Rubioli, alegando ter esquecido da obra de arte de sua propriedade (figura equestre de Dom Quixote), no Fórum de Armação dos Búzios, quando, na verdade, tal estatueta havia sido levada em duas partes para o caminhão do Tribunal, em sua mudança realizada em 2012.

2 – Deixar de comunicar ao Tribunal de Justiça que a estatueta de Dom Quixote em pé com lança remetida, em 2017, ao seu gabinete na Regional de Campo Grande não era de sua propriedade.

3 – Deixar de atender à solicitação do Juiz Diretor do Fórum de Armação dos Búzios, em 2017, para devolução da estátua de um metro e oitenta centímetros.

4 – Incorporar ao seu patrimônio bem móvel integrante do acervo do Fórum de Armação dos Búzios, durante o período de 1 ano e 7 meses.

 



Para melhor compreensão da imputação, impende destacar a dinâmica dos fatos elencada no voto do Corregedor-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (ID 4522996fls. 6-35):

 

 

(…)

14. Processo administrativo disciplinar contra magistrado, para apurar condutas incompatíveis com a integridade pessoal, profissional e a probidade administrativa inerentes ao cargo público.

15. A sindicância preliminar que deu origem a este processo administrativo disciplinar foi instaurada a partir das informações prestadas pelo juiz Dr. Gustavo Fávaro Arruda, então Diretor do Fórum de Armação dos Búzios, por meio do Ofício 35/GAB 2018 (TJe 3/1-4).

16. Tendo em vista que, durante a tramitação do procedimento, o representado apresentou três versões distintas sobre a dinâmica dos fatos, faz-se necessária a descrição dos acontecimentos, a fim de que não haja dúvidas a respeito da gravidade da conduta apurada.

 

(i) Da dinâmica dos fatos.

17. Conforme constou do acórdão de abertura deste PAD, à época, o juiz Diretor do Fórum de Armação dos Búzios, Dr. Gustavo Fávaro Arruda, prestou informações à Presidência deste Tribunal de Justiça sobre objetos pessoais do investigado, bem como requereu auxílio para devolução de uma peça de cobre representando a figura de Dom Quixote, que estava na posse do ex-juiz daquela comarca (TJe 3/1-4).

18. A partir dos documentos acostados nestes autos, extrai-se que o Secretário da Direção do Fórum de Búzios, Nuno José dos Santos Neves – servidor público sob a matrícula nº 01/17.789, em 30.10.2017, informou ao Juiz Diretor que a estatueta havia sido doada ao Fórum daquela comarca, em 2013, pelo artista Carlos Sisternas Assumpção, “na época em que se encontrava na Direção o Sr. Peter Kissimian e como Juiz Diretor Dr. Marcelo Alberto Chaves Villas, inclusive o Sr. Carlos me informou que existe a data em que foi feita a doação na base da peça.” (sic - TJe 7/1)

19. Consta ainda daquela informação que o sumiço da escultura da personagem de Miguel de Cervantes somente foi notado após o seu doador e autor (especificador), Carlos Sisternas Assumpção, ter indagado ao Secretário da Direção do Fórum o porquê de a peça não estar mais na entrada do prédio. O artista pretendia fazer outra doação, desta vez com a obra de arte representando a personagem de Sancho Pança (TJe 7/1).

20. Com a notícia do desaparecimento, apurou-se que a peça havia sido encaminhada ao investigado, em 2017, após requerimento expresso dele, por meio de correio eletrônico enviado em 03.10.2017, ao auxiliar da Presidência, juiz Marcello Rubioli, nos seguintes termos (TJe 74/2): (...)

21. Com base nesse e-mail, na mesma data, o então auxiliar da Presidência, juiz Marcello Rubioli, encaminhou mensagem eletrônica ao Diretor-Geral de Logística do Tribunal (DGLOG) para o “cumprimento imediato da solicitação” (TJe 74/2). Há, ainda, informação do Chefe do SEMOP, Cleudeir Siqueira Barbosa, informando que foi autorizada a “transposição” da estatueta de Dom Quixote pelo juiz auxiliar da Presidência (TJe 74/3): (...)

22. A retirada e transferência da peça do Fórum da comarca de Búzios para o Fórum Regional de Campo Grande, na Capital, ocorreu em 09.10.2017, conforme Termo Provisório de Transferência de Carga Patrimonial, com a discriminação de que se tratava de uma “estatueta (Dom Quixote) bem particular”. Constou ainda a seguinte observação: “Bem pertencente ao Exmo. Juiz de Direito Dr. João Carlos de Souza Corrêa” (TJe 74/4). Vejamos: (...)

23. Portanto, toda a movimentação realizada pela Administração deste Tribunal de Justiça de transferência da peça para a posse direta do representado decorreu exclusivamente das informações prestadas pelo representado.

24. Após a comunicação do Secretário da Direção do Fórum de Búzios, Nuno José dos Santos Neves, o então juiz Diretor do Fórum, em 30.07.2017, determinou que fosse expedido ofício, “solicitando a restituição da obra de arte” (TJe 07/6): (...)

25. Em que pese o representado negue o recebimento de qualquer notificação neste sentido, o documento (TJe 7/5), assinado pelo Secretário da Direção do Fórum Nuno José dos Santos, datado de 31.10.2017, aponta o ofício endereçado a Mario de Lima Mattos Souza Netto, com a seguinte informação: (...)

26. Verifica-se que o destinatário do mencionado ofício se trata do Diretor da Divisão de Apoio aos Fóruns Regionais e de Interior (DIAFO), conforme documento do índice TJe 7/10-11, que faz menção ao processo administrativo 2017-188292: (...)

27. Tudo isso forma um paradigma de verossimilhança sobre o depoimento prestado pelo servidor público nestes autos, uma vez que os correios eletrônicos trocados entre os agentes públicos deste Tribunal de Justiça têm natureza jurídica de memorando, conforme o Manual de Elaboração de Atos Formais de Gestão Administrativa (MANPJERJ-002-01). Como consequência, gozam de presunção de veracidade.

28. Decorrido o tempo sem o retorno da estátua ao Fórum de Armação dos Búzios; em 15.05.2019, o Secretário da Direção daquele fórum certificou que a “escultura de metal em alusão ao personagem Dom Quixote...não foi devolvida” (TJe 17).

29. Somente após a intimação do investigado em 26.06.2019 (TJe 39), pelo então Corregedor-Geral da Justiça deste Tribunal (TJe 20), a obra de arte foi devolvida em 28.06.2019 ao local de origem (TJe 43).

30. São esses os fatos.

 



É de se destacar, ainda, a contradição das versões apresentadas pela defesa e as provas registradas no referido voto:

 

 

 

(ii) Da contradição entre as versões da defesa do investigado.

31. Na primeira versão apresentada pelo representado (TJe 69/1-5), ele afirmou que a estátua encaminhada ao seu gabinete foi “um presente ofertado pessoalmente pelo artesão Souto que fazia tais objetos à época, sendo certo que o mesmo já é falecido” e que “requereu junto a Egrégia Presidência desse Egrégio Tribunal, que tal objeto, fosse remetido para o meu atual Gabinete.” (sic – TJe 69/2-3, grifos do relator).

32. Portanto, ele confirma que provocou a Administração e requereu a mencionada estátua.

33. Por sua vez, na segunda versão, apresentada na defesa prévia por meio do advogado da Amaerj, ele repete que ganhou a estátua do artesão Soto. Porém, afirma que “a estátua fora enviada ao Juiz João Correa por equívoco, como afirmado textualmente pelo próprio Juiz Auxiliar da CGJ, Dr. Paulo Cesar Vieira de Carvalho Filho, usando a expressão como sua e não se referindo ao equívoco como citado por terceiros (melo de prova: doc. de fl. 30).” (sic – TJe 147/4).

34. Nesse momento, o representado muda a dinâmica dos fatos, pois, agora, impõe a terceiros a responsabilidade pelo “equívoco” na remessa da peça ao seu gabinete; quando na verdade, no e-mail encaminhado ao juiz auxiliar da Presidência (TJe 74/2), o requerido indica inclusive o local específico onde estava localizada a escultura que deveria ser encaminhada ao seu gabinete no Fórum Regional de Campo Grande, tal como demonstrado no item 20 deste voto.

35. Salienta-se também que, em sua defesa prévia, o representado tentou confundir a apuração dos fatos, colacionando foto da escultura de Dom Quixote de autoria do artesão Domingo Soto, apontando que se tratava de “meio de prova” (TJe 147/5): (...)

36. A foto a que se refere o investigado em sua defesa foi juntada por ele no índice TJe 153, com a figura de Dom Quixote montado a cavalo, sem fazer qualquer ressalva: (…)

37. Isso levou este Órgão Especial a aprovar os termos da Portaria nº 3/2020 de abertura do PAD, com base em duas figuras distintas da personagem de Dom Quixote (TJe196/22-23 e TJe 228).

38. Aproveitando-se da confusão criada por ele, o representado apresentou sua defesa no âmbito do PAD, com terceira versão dos fatos, nos seguintes termos (TJe 257/1-11):

“Em primeiro lugar, a afirmação de a estátua pertencente ao Requerido ser equestre é inverídica. O voto-relator instaurador do presente PAD presumiu que a estátua era equestre em razão do documento de fls. 153, o qual se revela uma reportagem jornalística sobre o artesão SOTTO, sendo a fotografia de Dom Quixote ali estampada, um mero exemplo do seu trabalho. (...)

Contudo, a defesa vai além e faz prova de que as estátuas aqui discutidas – a que pertence ao juiz-réu e a que foi doada ao Fórum de Armação dos Búzios – são idênticas.

Como se lê nas declarações anexas, subscritas pelo Dr. Adilson da Costa Azevedo (doc. 01), Defensor Público que atuou junto ao magistrado requerido no Juízo de Armação dos Búzios; pelo Dr. Amélio Abrantes (doc. 02), hoje advogado e, na época, conciliador junto ao Fórum de Armação dos Búzios; e pelo Sr. Luiz Eduardo Gomes de Almeida (doc. 03), Oficial de Justiça ad hoc do TRE, a estátua jamais foi equestre, mas um Dom Quixote em pé segurando uma lança donde se conclui que era idêntica à que foi doada ao Fórum. (...)

Não existe prova nos autos de que a referida estátua tenha sido levada pelo juiz em 2012, quando da sua mudança, salvo o duvidoso testemunho de dois servidores declarando que levaram para o caminhão de mudança, em 2012, a referida estátua, inclusive em duas partes, como a indicar que fossem um homem a cavalo. A ESTÁTUA PERTENCENTE AO JUIZ JOÃO CORREA É UMA PEÇA ÚNICA. (...)

Quanto ao item 2 acima, reafirmamos que as estátuas, por serem idênticas, não chamaram a atenção do magistrado para o envio de estátua diversa do seu gabinete. (...) a estátua pertencente ao Fórum de Búzios jamais deixou o patrimônio público e, consequentemente, jamais ingressou no patrimônio particular do magistrado pois, como se verifica no Termo de Transferência de Carga Patrimonial de fls. 77 a estátua foi levada do Fórum de Búzios para o Fórum de Campo Grande no dia 09/10/2017 e, na certidão de fls. 79, há afirmação de que a estátua permaneceu no gabinete do Juiz-requerido desde que ali fora entregue, só saindo para retornar ao Fórum de Búzios em 27 de junho de 2019.”

39. Como se viu, o representado (i) negou a existência de outra estátua equestre, cuja figura foi trazida por ele a estes autos; (ii) juntou declarações do Defensor Público lotado à época naquela comarca, bem como de outras pessoas, afirmando que a estátua existente em seu gabinete no Fórum de Búzios era “em pé segurando uma lança”; (iii) negou o depoimento dos servidores responsáveis por sua mudança, quando da sua promoção em 2012 e (iv) negou que a posse da estátua tenha sido transferida para sua esfera particular.

 

iii) Das provas dos autos

40. No intuito de demonstrar a identidade de figuras entre a estátua que “ganhou de presente” do artesão argentino Domingo Soto e aquela doada ao Fórum de Armação dos Búzios pelo especificador Carlos Sisternas Assumpção, o requerido juntou a declaração (TJe 257/9) do Defensor Público Adilson da Costa Azevedo, assinada em 14.08.2020.

41. No documento, o agente público informa que, durante as “inúmeras vezes” que entrou no gabinete do investigado para despachar, “dentre outras esculturas, suas, lá existentes, havia uma artesanal, de Dom Quixote, de latão em tamanho grande, em pé, com uma lança na mão” (sic).

42. Porém, arrolado pelo representado como testemunha de defesa, em seu depoimento prestado em 08.06.2021 (TJe 326/3), o Defensor Público afirmou, peremptoriamente e diversas vezes, que a escultura existente no gabinete do investigado no Fórum de Búzios era uma figura de Dom Quixote sobre um cavalo, com a lança na mão (22min22seg).

43. O Defensor Público, ainda, confirmou que frequentou muitas vezes o gabinete do investigado (21min52seg), porque atuou durante os 6 anos em que o juiz esteve lotado naquela comarca.

44. O agente público também confirmou a existência de duas esculturas (22min40seg). Mas aquela com a figura de Dom Quixote em pé com a lança na mão ficava na entrada no prédio do Fórum, estando lá até hoje (23min05seg).

45. O requerido tenta retirar a força o depoimento do Defensor Público na instrução deste PAD, alegando que a contradição entre as versões prestadas na declaração escrita (TJe 257/9) e o depoimento colhido na audiência por videoconferência (TJe 326/3) é atribuída “os efeitos deletérios do tempo que o induziu em erro.” (TJe 390/4, grifei).

46. Para tanto, o investigado se valeu da oitiva da outra testemunha arrolada pela defesa, Luiz Eduardo Gomes de Almeida o qual confirmou a declaração anteriormente prestada (TJe 257/10), de que havia no gabinete do juiz uma escultura de cobre de Dom Quixote em tamanho grande com uma lança em sua mão e em pé.

47. Porém, extrai-se do depoimento da mencionada testemunha, que ela atuou, na comarca de Armação de Búzios como “oficial de justiça ad hoc” do TRE, apenas no ano de 2004. Segundo o depoente, a última vez que esteve no gabinete no investigado foi em 2004 (8min45seg).

48. Portanto, o período decorrido entre a última vez que essa testemunha esteve no gabinete do requerido no Fórum de Búzios (2004) e a data do depoimento prestado nestes autos (2021) é de 17 anos.

49. Aplicadas aqui as “regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece” (art. 375 do CPC), não é factível a riqueza de detalhes externados pela testemunha em seu depoimento na audiência por videoconferência, principalmente, por ter atuado naquela comarca pelo breve período de 1 ano, frise-se, há 17 anos.

50. Ainda que se admitissem as declarações da testemunha Luiz Eduardo Gomes de Almeida, também não é possível afirmar que a estátua que ele alega ter visto no gabinete do investigado em 2004 seja a mesma daquela transportada na mudança do juiz em 2012, conforme relatado no depoimento do servidor Nuno José dos Santos Neves (TJe 110/1-2). Afinal, entre 2004 (saída do oficial de justiça ad hoc da comarca) e 2012 (remoção do requerido) transcorreu o período de 8 anos.

51. Soma-se a isso o fato de que a testemunha afirmou em seu depoimento que, após ter ganhado a estatueta de Dom Quixote do artesão Soto, o representado “comprou outras, não sei se para presentear alguém” (9min49seg).

52. Assim, contrapondo os depoimentos do Oficial de Justiça ad hoc e do Defensor Público, o relato deste último é mais verossímil, na medida em que o agente público (i) atuou naquela comarca por 16 anos (25min53seg); (ii) estava lotado em Armação dos Búzios quando da remoção do investigado em 2012 (23min37seg); (iii) afirmou peremptoriamente a existência da estátua de Dom Quixote em pé na entrada o Fórum do Búzios (23min05seg) e (iv) confirmou a existência da estatueta com figura da personagem de Cervantes sentado no cavalo (22min22seg).

53. A informação constante do último item acima corrobora o depoimento do servidor público Nuno José dos Santos Neves (TJe 110/1-2), quando afirmou o seguinte:

“(...) que na época da doação o funcionário da direção era Peter Kissimian; tendo falado com Peter esse lhe disse que o artista plástico doou a peça ao Fórum de Búzios e isto ocorreu na época do juiz Marcelo Villas; que o juiz João de Souza deixou a Comarca de Búzios no ano de 2012 e que, na ocasião da mudança dele, ele levou uma outra escultura de Dom Quixote que ficava no gabinete dele e segundo apurou o depoente pertencia ao juiz João; que inclusive apurou que no ano de 2012 quando o juiz João deixou a Comarca e levou sua mudança, foi o servidor Cesar Alves Santana (operador do ar condicionado) e o servidor Marco Antonio (segurança) que levaram a estátua de Dom Quixote em duas partes para o caminhão do Tribunal, sendo que o depoente está se referindo à mudança feita no ano de 2012; repete que o envio da escultura feita por Carlos Sisternas foi no ano de 2017 e que são esculturas diferentes.”

54. Porém, ainda que se admitisse a inexistência da estatueta equestre, isso não é suficiente para afastar os fatos imputados ao investigado violadores da integridade pessoal, profissional e da probidade exigidas no exercício da judicatura. Vejamos: (...)

55. Como demonstrado no item 20 deste voto, o investigado foi específico quanto ao objeto e à localização da peça que deveria ser transferida para o seu gabinete no Fórum de Campo Grande, conforme se extrai trecho do correio eletrônico encaminhado por ele ao então juiz auxiliar da Presidência, Marcello Rubioli, cujo trecho é reproduzido novamente aqui (TJe 74/2): (...)

56. Salienta-se que o mencionado correio eletrônico foi encaminhado em 03.10.2017, portanto, mais de 5 anos depois da saída do representado da Comarca de Armação dos Búzios.

57. Não é razoável esperar que um juiz experiente e com muitos anos de carreira não tenha, minimamente, tomado o cuidado de confirmar se a estatueta localizada na entrada do Fórum de Armação dos Búzios era de sua propriedade, uma vez que passado tempo considerável desde sua saída da comarca.

58. Tal conduta, por si só, seria suficiente para imputar ao investigado a falta de prudência. Conforme os comentários ao art. 35, inciso I da LOMAN (ut Lourival Serejo. Comentários ao código de ética da magistratura nacional. – 1.ed. – Brasília, DF: ENFAM, 2011, p. 80):

“A prudência é a virtude a que o juiz precisa recorrer com mais frequência. A precipitação é inimiga da precaução que todo juiz precisa ter quanto aos seus atos e atitudes.”

59. No entanto, a situação fática aqui posta é mais grave do que a mera falta de prudência. Isso é evidenciado pelo comportamento posterior do requerido quando do recebimento da estatueta em seu gabinete no Fórum Regional de Campo Grande. Vejamos:

60. A narrativa dos acontecimentos exposta pelo representado não tem razoabilidade fática. Em um primeiro momento, o representado se dirige ao Juiz Auxiliar da Presidência, atribuindo ao objeto elevado valor intrínseco, ao dizer que “esqueci tão bela homenagem que foi prestada no dia da Justiça” (sic – TJe 74/2).

61. Em seu interrogatório, em que pese o desdém empregado ao se referir à estatueta como um “boneco de latão” (2min52seg), o representado confirmou que o objeto lhe foi dado de presente no dia da Justiça, pelo artesão Soto, que “fazia o prêmio Justiça e Cidadania” (10min).

62. No mesmo depoimento, o juiz ainda afirmou que a estátua recebida de presente tinha 1,50m de altura (12min08seg), fazendo menção à altura aproximada de uma criança (14min24seg).

63. Porém, a estátua transferida do Fórum de Armação de Búzios tinha 1,80m (TJe 49/2). A diferença de tamanho entre as estátuas já seria suficiente para causar, no mínimo, um estranhamento ao investigado quando recebeu o objeto de dimensão díspar em seu gabinete no Fórum Regional de Campo Grande.

64. Afinal, se o “presente” tinha um elevado valor intrínseco, era razoável que o investigado soubesse que o formato de sua estátua era diverso daquela encaminhada pelo setor de logística deste Tribunal de Justiça.

65. Essa não é a única diferença.

66. A estatueta doada ao Fórum de Armação dos Búzios teve como especificador o artista plástico Carlos Sisternas Assumpção e, na base da peça, havia uma placa chumbada com o nome, o ano e o telefone do autor da escultura (TJe 49/3): (...)

67. Tal placa é de fácil visualização, pois está localizada na parte da frente dos pés da figura de Dom Quixote: (…)

68. Assim, não há como se admitir a alegação de identidade de estatuetas, nem tampouco, que não era possível ao representado perceber a diferença entre elas. Afinal, as peças eram de dimensões diferentes, especificadores diferentes e anos de criação diferentes.

69. Mas não é só! A indicação do ano da obra de arte (2013), impossível de passar desapercebida, era 1 ano posterior à saída do representado da comarca de Armação dos Búzios (2012).

70. Sobre este ponto específico, confiram-se as conclusões do Ministério Público em seu parecer (TJe 376/9):

“Note-se que o próprio Representado afirmou em seu interrogatório que nunca conheceu o artista Sisternas e que se removeu da Comarca de Búzios por volta de 2012, então, certo é que, mínima diligência de sua parte verificaria que a peça que lhe foi encaminhada pela Diretoria-Geral de Logística (DGLOG) não era a estátua que supostamente lhe foi presenteada em 2004 e que teria sido então alegadamente confeccionada pelo artista Souto. Bastava, para tal, simples verificação de placa descritiva existente na base da peça para que o interessado concluísse que a obra em tela não era a de sua propriedade e que, portanto, não se tratava de bem particular.”

71. Diante disso, todas as provas colhidas durante a instrução dão suporte à prova indiciária necessária, que indica o dolo do requerido de apropriar-se de bem móvel público.

72. No caso dos autos, ainda que se admitisse que a conduta inicial do representado - pedido de remessa da estatueta ao juiz auxiliar da Presidência - tenha sido culposa; a conduta consequente - de ter permanecido com a estatueta que, sabidamente não lhe pertencia, por 1 ano e 7 meses, - traduz a má-fé necessária a caracterizar o dolo de assenhoreamento do bem para si.

73. Nas lições de Cleber Masson (in Direito Penal: parte especial arts. 213 a 359-h - 8. ed. – São Paulo: Forense, 2018. p. 685), “apropriar-se” significa “comportar-se em relação à coisa como se fosse seu legítimo proprietário (animus domini). O funcionário público passa a agir como dono do objeto material, praticando algum ato que somente a este competia.”

74. Não há dúvidas de que, ao solicitar a peça para o seu gabinete no Fórum Regional de Campo Grande, o representado exerceu o direito de sequela. E, após a remessa, exerceu o direito de uso do bem. Ambos os poderes inerentes à propriedade, previstos no art. 1.228, caput, do Código Civil.

75. Importante demonstrar que, embora o tipo previsto no art. 313 do Código Penal exija que o erro de outrem ocorra espontaneamente, o delito estará caracterizado se o agente “contudo, descobrir o engano e, ainda assim, não devolver o bem, aí sim haverá o delito em estudo.” (ut Fernando Capez. Curso de Direito Penal, volume 3, parte especial: arts. 213 a 359-H - 17. ed. atual. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019).

76. No mesmo sentido são as lições de Cleber Masson (op cit) sobre o tipo do art. 313 do Código Penal:

“Finalmente, pode acontecer de o próprio funcionário público incidir em erro, tal como quando acredita possuir atribuições para receber determinado pagamento em dinheiro, quando na verdade não as tem. Nesse caso, ausente o dolo, não há falar em peculato mediante erro de outrem. Entretanto, se ele posteriormente constatar seu equívoco e, nada obstante, deixar de prontamente restituir a coisa ao seu titular, estará caracterizado o crime previsto no art. 313 do Código Penal.”

77. Isso demonstra a gravidade da conduta do investigado.

78. A doutrina, ora mencionada, também serve de fundamento para afastar a alegação de que não houve transferência do bem público para a posse pessoal do representado.

79. O que importa para a caracterização da conduta ilegal é o comportamento como se fosse proprietário do bem. Isso ficou demonstrado nestes autos diversas vezes, desde o requerimento de remessa da peça para seu gabinete no Fórum de Campo Grande até a omissão dolosa na restituição do bem público ao local para o qual ele fora doado.

80. Quanto à natureza pública do bem, a oitiva do criador da obra, Carlos Sisternas Assumpção, não deixou dúvidas quanto perfectibilização do contrato de doação. Confira-se, nesse sentido, o trecho do depoimento colhido na audiência realizada em 08.11.2019 (TJe 108):

“Que é artista plástico e reside na cidade de Búzios, sendo que no ano 2013 resolveu doar a escultura de Dom Quixote para o Fórum de Búzios, porque o personagem de Cervantes representa a busca pela justiça, ética e cidadania. Para formalizar a doação, procurou o Dr. Piter, que era o servidor responsável pela administração do fórum e através dele foi encaminhado do juiz Marcelo Villas, que na época exercia a função de juiz em Búzios. Que o juiz Marcelo Villas autorizou a doação ao Fórum e no dia da entrega da peça o depoente esteve pessoalmente com o juiz Marcelo Villas fazendo a doação; que o depoente doou a figura de Dom Quixote para o Fórum da Comarca de Búzios e jamais fez a doação da escultura para qualquer pessoa.”

81. O fato acima narrado é o que a doutrina denomina de doação manual. Ela está prevista no art. 541, parágrafo único, do Código Civil, destinando-se a bens móveis e de pequeno valor, que seguem incontinenti a tradição.

82. Ressalta-se que, para fins administrativos, o fato de o bem não estar registrado no sistema de controle patrimonial não impediu a sua incorporação ao domínio público. Isso porque a Resolução TJOERJ nº 24/2012, vigente à época do fato, permitia a dispensa de autorização do Presidente do Tribunal de Justiça quando houvesse um pacto jurídico entre o doador e o Poder Judiciário (art. 8º, parágrafo único).

83. É essa a hipótese, na medida em que o juiz Diretor do Fórum de Armação dos Búzios à época, ao formalizar a doação da peça pelo doador, agiu por delegação do Presidente do Tribunal de Justiça, com a imediata incorporação da escultura ao patrimônio público. Frise-se, que o registro no sistema de controle do patrimônio é apenas mera formalidade, que não impede a perfectibilização do negócio jurídico com a transferência de propriedade, nos termos do art. 541, p. único, do CC e do art. 8º, p. único, da Resolução nº 24/2012, deste Tribunal. 

 

 

Nesse quadro, considerando a gravidade da infração praticada, que, inclusive, deu ensejo à comunicação para o Ministério Público por possível existência de improbidade administrativa (ID 4107981 - fls. 23 in fine), tenho que a aplicação da pena de advertência, não obstante o fundamento da decisão proferida (magistrado sem antecedentes), é absolutamente desproporcional em relação à procedência. Consequentemente, é imperiosa a abertura de procedimento revisional para análise de uma possível aplicação de sanção disciplinar mais rigorosa à hipótese, nos termos do artigo 83, inciso I, do RICNJ.

 

Não colhe ao magistrado, nesse momento, sua alegação não comprovada de que havia uma terceira outra estátua muito semelhante à estátua de Dom Quixote doada para o Fórum de Armação de Búzios após sua saída da comarca, o que o levou a erro na solicitação da peça e na manutenção da posse sobre a mesma. Primeiro porque não existe nenhuma prova desse fato nos autos. Segundo porque mesmo com eventual veracidade da tese, a qualidade da suposta peça semelhante (latão) permitiria ao magistrado imediata percepção de que não se tratava da mesma estátua; ao contrário disso, o magistrado recebeu a peça em 2017 e, por dois anos (até a devolução determinada), não manifestou a necessidade de devolução.

 

Nesse contexto, sem a existência comprovada dessa suposta terceira estátua de latão, semelhante à estátua doada após a saída do magistrado da comarca, permanece nos autos o evidente uso da estátua menor, de Dom Quixote com um cavalo, essa sim ganha pelo magistrado de um artista local falecido, como argumento para obter a posse da estátua maior de Dom Quixote, doada ao fórum após a saída do juiz da Comarca. Expediente grave que não se coaduna a sanção de advertência. 

 

Em suma, não vislumbrando adequada subsunção da penalidade imposta à infração praticada, é o caso desse Conselho Nacional se debruçar sobre a hipótese dos autos, promovendo a devida adequação entre os fatos praticados pelo magistrado e a devida sanção, como forma de cumprimento de sua a missão constitucional (artigo 103-B, § 4º, da CF).

 

Frise-se, aliás, que a jurisprudência deste Conselho Nacional de Justiça admite a instauração de revisão de processo disciplinar, quando da análise das informações prestadas pelo órgão censor local, constata-se que a sanção aplicada é inadequada ao contexto fático-probatório ventilado nos autos. Confira-se:

 

 

 

 

REVISÃO DISCIPLINAR. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ. CONHECIDO. APLICAÇÃO DE PENALIDADE DE ADVERTÊNCIA. DESNECESSIDADE DE CONDUTA DOLOSA. “PENALIDADE CONTRÁRIA ÀS PROVAS DOS AUTOS. PEDIDO DE APLICAÇÃO DE PENALIDADE DE CENSURA. PEDIDO DEFERIDO. PEDIDO DE CORREIÇÃO. INDEFERIDO. REVISÃO DISCIPLINAR PROVIDA.
- É passível de revisão a penalidade imputada a magistrado em desacordo com o conjunto probatório dos autos (art. 83, inc. I, do RICNJ).

- A Lei Orgânica da Magistratura Nacional é cristalina ao vincular a pena de advertência a atos omissivos, caracterizadores de conduta meramente negligente (art. 43)”. Precedente do CNJ.

- In casu, o represamento injustificado e a mora processual, por culpa de magistrado, atentam contra o dever do magistrado de não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar, previsto no art. 35, inc. II, da LOMAN, o que dá azo à penalidade de censura, nos termos do art. 42, inc. II, c/c art. 44, todos da LOMAN.

- Não se pode considerar culpado o magistrado, que em virtude de férias regulares, deixa de marcar audiências para esse período. Esse encargo é do seu substituto legal.
- A conduta reiterada do magistrado, que não recebeu recursos em sentido estrito do Ministério Público, contra decisão que concede habeas corpus (art. 581, inc. X, do CPP), sob a alegação de existência de recurso de ofício, é passível de aplicação da penalidade de advertência (art. 35, inc. I, c/c art. 42, inc. I, e c/c art. 43, todos da LOMAN).
- Outrossim, a conduta do magistrado de não abrir vista ao Ministério Público, nem antes nem depois da prolação de decisão que concedeu liberdade provisória, agindo em desacordo com o art. 333 e art. 310, ambos do Código de Processo Penal, também é passível de advertência, consoante o art. 35, inc. I, c/c art. 42, inc. I, e c/c art. 43, todos da LOMAN.

- A reiteração de condutas culposas e a verificação de procedimento incorreto do magistrado, ainda que desprovidos de má-fé, ensejam a aplicação da penalidade de censura, nos termos do art. 35, incs. I e II, c/c art. 42, inc. II, c/c art. 44, todos da LOMAN e do art. 4º da Resolução nº 135 do Conselho Nacional de Justiça.

- Não há necessidade de correição do CNJ em vara judicial que já foi alvo de procedimentos correcionais recentes por parte do Tribunal de origem, sem que haja qualquer elemento novo que não foi avaliado por este.

- Diante do exposto, julgo procedente a presente Revisão Disciplinar, consoante o art. 83, inc. I, c/c art. 88, ambos do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, para aplicar a penalidade de censura ao magistrado José Ribamar Oliveira Silva, nos termos do art. 35, incs. I e II, c/c art. 42, inc. II, c/c art. 44, todos da LOMAN e do art. 4º da Resolução nº 135 do Conselho Nacional de Justiça.”
[...] (CNJ - REVDIS - Processo de Revisão Disciplinar - Conselheiro - 00038628620122000000 - Rel. JEFFERSON LUIS KRAVCHYCHYN - 161ª Sessão - j. 11/12/2012, destaquei).

 

 

Ante o exposto, com fundamento no que dispõem os artigos 82 e 86 do RICNJ, voto pela instauração, de ofício, da revisão de processo disciplinar para verificação da necessidade de agravar a penalidade aplicada ao Juiz de Direito João Carlos de Souza Correa.


Proponho, outrossim, uma vez instaurada da RevDis, sua distribuição ao Conselheiro Relator da RevDis 0009145-75.2021.2.00.0000, proposta anteriormente pelo Reclamado, por prevenção e para julgamento conjunto.

 

É como voto.                              

     

 

J4/F33

 

 

VOTO-VISTA CONVERGENTE

 

 A EXCELENTÍSSIMA MINISTRA ROSA WEBER, PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: 

Trata-se de pedido de providências autuado pela Corregedoria Nacional de Justiça em desfavor de João Carlos de Souza Corrêa, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Na 64ª Sessão Extraordinária de 30.11.22, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luiz Felipe Salomão, votou pela instauração de procedimento administrativo disciplinar contra o Magistrado, oportunidade em que o Conselheiro Mauro Pereira Martins pediu vista.

Em continuidade, na 5ª Sessão Ordinária de 2023 (11.04.23), após o voto do Conselheiro Mauro Pereira Martins (Vistor), julgando improcedente o pedido, no que foi acompanhado pelos Conselheiros Márcio Luiz Freitas, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello; e dos votos dos Conselheiros Vieira de Mello Filho, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim e Giovanni Olsson, acompanhando o Relator, pedi vista para melhor reflexão sobre o caso. 

Após a análise detida dos autos, adoto o bem lançado voto do Relator, e, no mérito, acompanho Sua Excelência quanto à procedência do pedido, com a finalidade de abertura de procedimento administrativo disciplinar contra o Magistrado acusado.

Registro, por oportuno, que, na origem, foi instaurado Processo Administrativo Disciplinar em desfavor do ora requerido, a fim de apurar condutas incompatíveis com a integridade pessoal, profissional e probidade no exercício da Magistratura, em razão de suposta apropriação de estátua do acervo do patrimônio do Tribunal, com devolução apenas após decorridos um ano e sete meses e em razão de cumprimento à intimação do então Corregedor local.

A Presidência do TJRJ deu conta de que o PAD n. 0025716- 29.2020.8.19.0000 foi julgado na Sessão Plenária do dia 27/09/2021, e que, não tendo sido atingido o quórum legal, por maioria, aplicou-se a pena de advertência ao Magistrado.

Contudo, a dinâmica dos fatos apurados revela que a pena de advertência pode ser desproporcional às condutas praticadas pelo Magistrado.

Inicialmente, é importante ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça, nesta etapa preparatória, está a formar convicção sobre a necessidade de revisão da pena imposta, não a revolver os fatos estabelecidos pelo Tribunal de origem. Busca-se, portanto, verificar a proporção entre os fatos estabilizados e a decorrência punitiva deles.

E o fato é que o Magistrado, de forma dolosa, induziu em erro Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal local, sob a alegação de que teria esquecido a obra de arte de sua propriedade (figura equestre de Dom Quixote), no Fórum de Armação dos Búzios. Contudo, tal estatueta havia sido levada em duas partes pelo caminhão do Tribunal, em sua mudança realizada em 2012.

Ainda segundo os autos, deixou o magistrado reclamado de comunicar ao Tribunal que a estatueta de Dom Quixote em pé com lança, que foi remetida em 2017 ao seu gabinete na Regional de Campo Grande, não era de sua propriedade, bem como deixou de atender à solicitação do Juiz Diretor do Fórum de Armação dos Búzios, para devolução da estátua de um metro e oitenta centímetros. Nesse cenário, é inegável que incorporou ao seu patrimônio bem móvel integrante do acervo do Fórum de Armação dos Búzios, durante o período de 1 ano e 7 meses.

Sendo assim, parece-me inafastável a conclusão do eminente Relator no sentido da necessidade de colocar-se novo olhar sobre a conduta praticada pelo magistrado e a pena que lhe foi cominada.

Tal reflexão firma-se na compreensão de que a conduta do Magistrado pode ir além da mera negligência no cumprimento dos deveres do cargo, apta a dar azo à aplicação da penalidade de advertência (art. 4º da Resolução CNJ 135/2011). Como restou demonstrado nos autos, o Magistrado, de forma dolosa, tentou por diversos meios se apropriar da estátua supramencionada, apenas não logrando êxito em razão das diligências do Tribunal.

Ora, a intenção deliberada de apropriação de bem público pelo Magistrado importa em acentuada culpabilidade, apta a gerar maior grau de reprovabilidade. Como deixei consignado no julgamento do Ag. Reg. no Habeas Corpus 168.674/DF, a posição e função exercida pelo infrator importa como “termômetro da intensidade do dolo” para a dosimetria da pena no direito penal, parâmetro que pode ser utilizado por referência para o direito administrativo sancionador. Confira-se:

 “Observo, quanto à culpabilidade do acusado, que tal vetor foi considerado desfavorável em função do réu ter ‘se aproveitado de sua condição de advogado contratado do Instituto para o desvio de dinheiro’, o que evidencia maior grau de reprovabilidade da conduta. Esta Suprema Corte já assentou que a culpabilidade serve como termômetro da intensidade do dolo delitivo (RHC 116.169/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 01.8.2013)”.

Nada obstante, caso instaurada a revisão disciplinar, a sua distribuição vinculada ao Conselheiro Giovanni Olsson, relator da RevDis 0009145-75.2021.2.00.0000, formulada anteriormente pelo ora Reclamado, por prevenção, permite que, no oportuno julgamento conjunto, todas as nuances apuradas nos procedimentos próprios da revisão sejam igualmente consideradas, dando a oportunidade para que o Plenário do CNJ majore, mantenha ou, ao revés, extinga a pena aplicada ao Magistrado.

Ante o exposto, pedindo vênia à divergência do Conselheiro Mauro Pereira Martins e aqueles que o acompanharam, acompanho integralmente o voto do Ministro Luis Felipe Salomão, para julgar procedente o pedido, com instauração de procedimento de revisão disciplinar contra o João Carlos de Souza Corrêa, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a ser distribuído ao Relator da RevDis 0009145-75.2021.2.00.0000.

É o voto.

 

Ministra ROSA WEBER

Presidente